A POESIA É O SEMPRE HOJE: O CONTEMPORĀNEO AMPLIADO
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tio : eso no es sólo un bucle pero una telaraña
tela que en francés es toile que parece etoile que es estrella
Lucas Parente
Fernando Mendes Rodrigues
Considerando a poesia hoje, chegamos à necessidade de evitar vigorosamente um tipo de leitura ingênua, que não abstrai o bastante, tornando o poema uma espécie de extensão dos confessionários e divãs de analistas. Ao contrário, uma abordagem adequada da poesia reconhece que "competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo que apenas pela força da linguagem, esta é a proeza do escritor". O como se do texto literário repercute na maneira como encaramos a realidade circundante, moldando-a de certa maneira. Trata-se do aspecto estético de toda concepção de mundo, do seu caráter de constructo. Lembremos que a palavra poiesis, ποιέω, é um verbo, uma ação, e que seu significado originário é "fazer", "fabricar", "produzir". A poesia, portanto, não se restringe à expressão do conteúdo afetivo de certo indivíduo. Muito pelo contrário, se utiliza destes afetos para extrair deles a marca do infinito, para produzir discurso através dos elementos primários da cognição. É como se o poeta pretendesse criar um simulacro do Fiat Lux, rompendo assim com todos os estratos acumulados sobre este. A poesia, portanto, é desde o princípio violência, justamente porque arrisca todas as narrativas que sustentam nossa relação com as coisas, conosco mesmo, enquanto coisas concebidas discursivamente.
Da vida não se sai pela porta:
só pela janela. Não se sai
bem da vida como não se sai
bem das paixões jogatinas drogas.
E é porque sabemos disso e não
por temer viver depois da morte
em plagas de Dante Goya ou Bosh
(essas, doce príncipe, cá estão)
que tão raramente nos matamos
a tempo: por não considerarmos
as saídas disponíveis dignas
de nós, que, em meio a fezes e urina
sangue e dor, nascemos para lendas
mares amores mortes serenas.
A poesia pensa. Assim como todas as disciplinas, ela tem uma maneira própria de se aproximar do seu objeto, de tomar para si a substância objetiva. No caso, o atributo eleito é justamente a antimatéria, as elipses, as bordas dos sistemas de sentido. Então o trágico é inerente à poesia, justo porque ela tem uma relação bastante direta com o momento, no sentido kierkegaardiano, como a síntese entre o tempo e a eternidade. A poesia pretende criar instantâneos de eternidade no tempo cronológico, expressando assim a tragédia humana, porque, embora tenhamos o anseio do infinito, vivemos no tempo que passa, na degradação — questão abordada por Antonio Cicero no poema "Huis Clos", localizado logo acima deste parágrafo. E como a poesia cria estes instantâneos? O primeiro passo é provocar o confronto entre os sistemas de sentido e seus limites. Depois, há uma movimento derivado deste, o confronto dos sistemas de sentido entre si. Um exemplo privilegiado destas duas etapas é o "Poema tirado de uma notícia de jornal", de Manuel Bandeira.
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num [barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
Num primeiro momento, a personagem é retratada sob o signo da exultação, no momento seguinte, se mata, e não quase não há trajeto entre estes dois movimentos. O espanto é inevitável, pois uma continuidade é negada abruptamente, um sistema de sentido se espatifa no ar. Podemos também perceber nesse poema o confronto entre o jornalístico e o poético, dois sistemas de sentido que poderíamos inclusive tomar como opostos pois, para o jornalismo, a experiência deve ser convertida em informação, enquanto para poesia é o contrário. O objetivo desses confrontos é extrair uma fórmula significativa de valor geral a partir de uma situação específica, algo como o mmc do discurso, o que há de mais elementar em sua constituição. Então a busca da simplicidade, movimento flagrante da poesia em todo o século XX, não é nada além uma maneira dela preservar sua individualidade, o que depende diretamente do aumento de sua potência, isso no sentido espinosista. Voltar-se para a notícia de jornal, para elementos que tradicionalmente não eram considerados poéticos, significa aumentar o número de atores em cena e, assim, a possibilidade de relativização destes atores, revelando o que há de distintivamente poético dentro de cada poema. No entanto, cabe notar que a introdução de certo prosaismo no ethos poético não foi estritamente uma iniciativa moderna, basta lembrar de toda a tradição satírica (Bocaccio, Villon). O movimento de que falamos é específico do século XX e se refere à concepção parnaso-simbolista de poesia, isso sob a ótica do contra-ponto histórico. O que estes poetas relativizaram não foi só uma poética mas, também, um espectro de valores que sustentava esta poética. O que se buscava era certa radicalidade, o despojamento de alguns elementos elencados entre os parâmetros parnaso-simbolistas, elementos tais como métrica, rima, assunto elvado, que em certo momento pasaram a ser encarados como demasiadamente arbitrários, convencionais. Toda a inquietação das vanguardas acabou aprimoramdo o conceito de poesia, pois hoje dificilmente alguém confundiria poesia com discurso rimado, metificado, etéreo, digo, alguém que tenha o mínimo de intimidade com este universo. O verdadeiro traço distintivo do discurso poético é a elaboração de instantâneos de eternidade. Despojada dos badulaques de Olavo Bilac e companhia, a poesia encontrou-se exposta em sua nudez. Vamos ao poema "Via", de Eucanaã Ferraz.
Eu caminhava nu, sem que você visse.
Pra que você visse, eu caminhava sem.
Você não via. Pra que você soubesse,
eu caminhava nem, sem que você visse,
eu caminhava livre, além do limite de
ser ninguém, sem remo e sem alento,
o andar isento quase de mim mesmo,
num estranho,cansado engano,
sem âncora, no vento, e mais contente.
Nu, livro ao avesso; nu, anel sem dedo;
nu, anel sem dentro; nu, a pedra
bruta; nu, um livro bruto, antes
do acabamento, cimento grosso,
na antemão da cal, da letra, descampado,
como se a mão de alguém me desenhasse,
antiqüíssimo, no dorso de um vaso.
Sem poder ser belo, sem poder ser feio,
coisa-coisa no espaço, no tempo, eu ia.
O sol me reconhecia: eu era o filho
mais novo do boro e do alumínio.
Meu passo exalava o hálito do barro.
As crianças me apontavam, riam.
Tudo se condensava à minha roda.
No entanto, nenhuma flor surgia
nos meus passos: os brejos permaneciam
sáfaros, cobertos de urzes, sem que nada
fosse esquivo, estranho ou intratável,
nenhum recife, navalha ou gesto sórdido.
E pra que se desse a ver, meu silêncio
dizia: cabelo, pelo. Sorri: os anjos de pedra
me acenaram. Eu caminhava sem,
em você, sem que você visse.
Nesse poema, as elipses abrem para o infinito, da mesma maneira que a referência a uma condição primitiva (de pré-consciência, talvez) nos remete à atemporalidade, num movimento ratificador. Não se pode atribuir a ele um tema específico, um campo semântico estrito, pois se trata justamente de um instantâneo de eternidade. E como nós expressamos a eternidade? Através da extração/expressão dos componentes mais elementares da compreensão das coisas, aqueles que, embora vagamente, todos os homens compartilham, em todos os tempos e lugares, o que Bruno Latour chama de matriz antropológica, que nós aqui chamaremos matriz cognitiva antropológica. Por mais desenvolvido que seja em seus meios de produção, todos os povos guardam certas noções elementares como céu e terra, alto e baixo, claro e escuro, dia e noite. É um pouco nesse sentido ecumênico que se direciona a pesquisa empreendida por Mircea Eliade no Tratado de história das religiões. Como um número x de povos se relaciona com a noção de céu? O que há de comum entre estas concepções? Questões que certamente não podem ser respondidas inequivocamente, isso porque tratam de coisas que só se dão à consciência através do súbito, da negação de uma continuidade que, numa perspectiva mais ampla, inclusive se afirma na relação com seus limites. É por isso que San Juan de La Cruz sentiu-se impelido a criar comentários que administrassem a interpretação dos seus "Cánticos Espirituales", forçando assim sua adequação à doutrina Católica, porque a poesia, em si, não admite a estagnação necessária para o estabelecimento de um sistema de sentido, para sua estratificação, porque ela lida justamente com aquilo que os pôem em xeque, porque é diabólica. Lembremos que a palavra diabolos, no contexto originário, se referia à entidade que se interpôe entre as coisas, provocando a divergência. Vamos agora ao poema "Revólver", de Armando Freitas Filho.
Cada dia é uma bala de roleta-russa. Cada casa, cada câmara pode estar por acaso vazia ou ocupada. No primeiro caso, depois do susto o dia pára, na cara da paisagem. Num segundo, dispara.
Armando toma a violência urbana, vítima preferida da imprensa, que a transforma num amontoado de informações gélidas — sim, a bomba estourou, assim como o dólar subiu —, e extrai dela o súbito, a possilbilidade de falência repentina, a experiência do risco, captada por sensores ancestrais. Mais uma vez, a abrangência do simples (cf. Arrigucci Jr.), produto de uma série de debates e polêmicas que se acumularam ao longo de todo o perído de vigência das vanguardas. O que se obteve, então, é uma poesia algo esclarecida, autoconsciente. Nesse sentido, os contemporâneos vivem uma situação altamente privilegiada, justo porque tem a seu dispor todo o legado formal das vanguardas, sem, no entanto, compartilhar suas ideologias. Esse poeta não se compromete conscientemente com nenhum sistema de sentido pré-estabelecido, seja majoritário ou não. Não canta um povo, como Homero ou Camões, não canta a religião, como San Juan de la Cruz, não canta as causas políticas, como Maiakovski e certo Drummond. E isso não quer dizer que ele tenha se enclausurado num formalismo hermético. Trata-se de um desdobramento da relação arquetípica entre o dentro e o fora — voltar-se para si visando o aprimoramento de sua relação com o todo.
Num nível mais profundo, o resultado formal da pesquisa elaborada sobre o conceito de poesia não é fácil de detectar, sob o risco de injustiça para com a infinidade de poetas que viveram nos séculos anteriores. Até que ponto o esclarecimento é positivo nesse campo? Tanto quanto em qualquer outro. Não podemos dizer que o conteúdo dito moderno tenha sido plenamente engendrado na modernidade. Todos os entes da realidade são mistos de tempos diversos. Por mais nova que seja uma tecnologia, podemos ter certeza de que em sua produção são empregados diversas técnicas cujo conceito é milenar. A curto prazo, no entanto, comparando os poetas contemporâneos com os vanguardistas, podemos inferir a maior modéstia dos primeiros, não afetados pela mesma megalomania dos outros, o que certamente é uma questão. Isso não quer dizer que não há espaço para a elaboração linguística, para uma poesia mais polissêmica. Cabe notar que a questão colocada se restringe a um substrato, assumindo concretude explícita de vez em quando e, de qualquer maneira, não necessariamente. O que se tem em vista é, por exemplo, a idéia de que a poesia poderia ser uma instituição ativa na formação da consciência política, que se poderia torná-la um instrumento de uso previsível. Sabemos que o papel da poesia na sociedade não se restringe a mero adorno, algo que tornaria a vida das pessoas simplesmente mais agradável. Sabemos que ela tem uma função radical. No entanto, submeter a mensagem poética a qualquer outro tipo de mensagem pode ser extremamente nocivo para a primeira. E é nesse sentido a referida vantagem dos poetas contemoporâneos. Desembaraçados de todas a super-estrutura, eles podem se debruçar mais tranquilamente sobre a maneira específica que a poesia tem de expresar o infinito presente no tempo cronológico.
A poesia é vinculada em sua raiz ao infinito, um pressuposto do sublime. Apreendê-la no interior de um sistema de sentido, em uma finitude, é suprimir sua potência. Mas então voltamos à ressalva feita anteriormente. Não podemos dizer que a modernidade inventou todos os seus modos e temas. Trata-se, ao contrário, de uma questão de seleção e recombinação, procedimento sempre capaz de criar o novo do mesmo. Como nos mostra Michel Serres, Lucrécio já tratava de questões que, séculos e séculos mais tarde, seriam centrais na física moderna, disciplina que colaborou com um ambiente propício para a poesia nos últimos tempos. Não só através dos quantuns, mas também através de Einstein, a Física vasculhou, respectivamente, os infinitos do micro e do macro, questionando fortemente noções primais como espaço e tempo. Não só na poesia, como em diversas instâncias da sociedade, as relações de causalidade foram arriscadas. O épico (o todo) e o lírico (a parte) não têm mais fronteiras tão bem definidas — assim como o público e o privado, basta lembrar do Big Brother. Acredito que a "Ode Triunfal", de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, pode ser um bom exemplo nesse momento. Um trecho:
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes [volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
O que importa aqui não é o verso livre, nem o conteúdo "não-poético", mas a expressão farta de um sujeito que se dissolve no mundo através da porosidade da linguagem. Esse é um poema no qual se dá o pórprio pensamento poético, pois é traço deste a expressão da contiguidade entre as coisas através da extração/expressão dos elementos radicais de sua compreensão. A velocidade é uma daquelas noções básicas de que falamos há pouco, além de ser um tópico plausível dentro de uma leitura analítica da "Ode Triunfal". Sabemos que há uma relação proporcionalmente direta entre o aumento da energia cinética e o aumento do intercâmbio entre os corpos. Experienciamos diariamente a velocidade enquanto causadora da dissolução visual da fronteira entre as coisas. A velocidade dos meios de transportes possibilitou o Futurismo, que possibilitou uma nova concepção de poesia. Mas o que importa aqui não é o mapeamento dos saltos conceituais que se deram durante o tempo das vanguardas, mas o resultado panorâmico desse processo. Acredito que alguns trechos selecionados do ensaio "Poesia e Paisagens Urbanas", também de Antonio Cicero, podem ser de interesse.
"(...)o verdadeiro poeta faz questão de ser fiel à poesia propriamente dita, mas não necessariamente às aparências acidentais que ela terá assumido e que a contingência histórica terá posto á disposição dele".
"(...) quando determinada obra rompe com alguma tradição, isso não significa que essa rupura seja o seu sentido mais importante, ou tenha sido o motivo principal de sua produção: ela pode ser uma consequência inteiramente secundária".
"(...) nem sempre a ruptura se deve á vontade de romper com toda tradição; ás vezes ela manifesta, ao contrário, a vontade de reatar com uma tradição recalcada".
"(...)o seu feito principal (das vanguardas) foi de natureza não propriamente estética ou artística, mas puramente cognitiva e, mais precisamente, conceitual. Em outras palavras, não é que, a partir dessa experiência, a poesia tenha ficado melhor do que era, mas aprendeu-se alguma coisa a seu respeito que não se sabia antes. Trata-se de um aprendizado, de um descortinamento, de um progresso cognitivo, após o qual, por um aldo, conhece-se algo fundamental (ainda que negativo ) sobre a natureza da arte e, por outro, sabe-se que, antes desse aprendizado, isso que agora se conhece jamais havia sido adequadamente conhecido".
"(...) se considerarmos o efeito que a experiência dos movimentos de vanguarda teve em seu conjunto — e, em geral, malgré eux-mêmes —, devemos dizer que eles nos obrigaram a expandir a extensão da nossa noção de poesia. Justamente a poesia que buscava a sua especificidade ao negar de si absolutamente toda forma específica, sem com isso, deixar de ser poesia"
"Sabemos hoje que um poema não precisa, por exemplo, contar nenhuma história, nenhum mito, nem ter tema "elevado", nem sequer empregar vocabulário "nobre", nem usar formas tradicionais, nem obedecer a qualquer esquema métrico, nem ser composto de versos, nem ser rimao, nem ser rítimico, nem ser discursivo".
"Independentemente das ambições e das ilusões dos seus protagonistas, o fato é que nada disso realmente desapareceu. Todas as possibilidades formais descobertas continuam disponíveis e são empregadas em algum momento ou lugar. O verdadeiro sentido da vanguarda não foi a renúncia, mas a desprovincianização e a cosmopolitização da poesia. Ao mostrar novas possibilidades, o que a vanguarda fez foi relativizar as possibilidades antigas; mas relativizar uma coisa não é destruí-la".
Reiteramos nesta leitura a questão do despojamento da poesia, produto da pesquisa realizada por gerações acumuladas de poetas e teóricos sobre aquilo que é distintivamente poético dentro de um poema. Primeiro, os poetas se despojaram das formas fixas. Depois, despojaram-se da necessidade de abdicar das formas fixas —prática de Manuel Bandeira desde os primórdios do modernismo brasileiro. A partir do momento em que consideramos que há um tanto de eternidade em todo e cada poema, a questão sobre a face do poético fica inelutavelmente em suspense. Alcançar a simplicidade pode ser sinônimo de alcançar os elementos esssencias de um agenciamento, ou melhor, alcançar aqueles elementos que por sua própria natureza estão menos sujeitos às contingências do tempo, da degradação inclusive, e isso não subentende nenhum tipo de transcendência, pelo contrário. Vimos que a poesia lida diretamente com a matriz cognitiva antropológica, e não podemos ignorar o peso deste último adjetivo. Não se alcança o mundo além do véu de maia, além do campo sensitivo que nos cabe, isso à revelia da imaginação de quantuns e galáxias — até que ponto podemos saber do que se trata? Essa, aliás, é uma questão muito produtiva dentro de todas as formas de pensamento, a vontade de transcendência, pois, embora tenhamos a intuição do infinito, não podemos apreendê-lo inequivocamente. Nos sonhos, por exemplo, vivemos a abolição do tempo linear, mas não há nada determinável nesse âmbito. A poesia, então, trata justamente da imanência do infinito. Lembremos William Blake: "Se as portas da percepção se purificassem, cada coisa apareceria ao homem tal como é, infinita." Agora, encerremos o ensaio com o trecho de uma entrevista concedida por Eucanaã Ferraz a Heloisa Buarque de Hollanda.
HELOISA: É possível perceber perspectivas mais "democráticas" para a poesia neste século XXI ou ela ainda vai continuar como um artigo de luxo?
EUCANAÃ: Penso que neste novo século o poema estará onde sempre esteve, no livro, nas revistas, nos recitais, mas também nos portais da internet e assim por diante. Acredito nesta presença, mas considero que ela não representa exatamente democratização ou ampliação do público leitor. Mesmo em países sem os nossos índices imorais de analfabetismo, e nos quais os bens culturais estão de fato acessíveis, a poesia é um artigo de pouca circulação. Afinal, como seria possível o trânsito largo de uma linguagem que experimenta, arrisca, rompe com hábitos, exige tempo, atenção, disponibilidade intelectual e existencial? É claro que o investimento maciço em educação, pesquisa, produção cultural e formação de público pode exercer um papel positivo, aumentando em muito a rala presença da poesia no campo da cultura. Mas ela estará sempre aquém do cinema ou da música, por exemplo.
No entanto, o fato de a poesia ser um artigo para poucos não a torna, penso eu, um "artigo de luxo". Ela é um bem de produção, digamos, artesanal. Embora circule em meios industrializados, como livros e jornais, e agora nos ambientes eletrônicos, o poema é uma atividade de caráter individual. E, mais que isso, se a sua natureza "improdutiva" empurra-a sempre para fora da indústria, o seu imenso gasto não pode ser considerado supérfluo, pois pertence antes à ordem do erotismo. A idéia de luxo não combina com a natureza da poesia, que trabalha sempre com o essencial. Todo poema é, ao contrário, um voto de pobreza. E isto nem tem a ver com algum tipo de elevação espiritual ou salvação da alma. A aspiração do poema é exatamente impor-se na sociedade do consumo e do luxo como um objeto essencial.
De qualquer modo, estamos longe do quadro - por tantos vaticinado - de fim ou esgotamento da lírica. Ao contrário, ela se afirma a cada dia como espaço viável de inteligência, subjetividade e criação num mundo largamente dominado pela imagem, pela mídia e pela circulação tão avassaladora quanto acrítica de mercadorias.
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CIORAN, Emile. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FERRAZ, Eucanaã. Rua do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
______________. "Palavras plásticas". [online] Disponível na internet via: http://www.eucanaaferraz.com.br/sec_textos_view.php?id=13
FREITAS FILHO, Armando. Raro mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes. 2010.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 1994.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1974.
SERRES, Michel. O nascimento da física no texto de lucrécio. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
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Fernando Mendes Rodrigues, poeta carioca, graduou-se na Faculdade de Letras da UFRJ e publica sua obra em www.fernandomendesrodrigues.com. |
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