A
INDEPENDÊNCIA DA POESIA
Francisco
Manuel Antunes Soares
Com a independência de Angola, na
bicefalia
do 11 de Novembro de 1975, abria-se
também um novo período literário que, no entanto, só veio
a dar sinais a partir de 1980. A quase simultaneidade dos dois
factos (poético e político) pode condicionar as palavras que
se seguem à preocupação de estudar as relações entre arte
e política.
As relações entre literatura e política
não são lineares e por isso também não coincidem
exactamente no calendário as mudanças estruturais poéticas
e políticas. Acresce que, no mapa angolano da época, a única
literatura pública, visível, ainda vinha só de Luanda ou de
alguns angolanos a viver no exterior. A bicefalia era política
mas não literária. O que não quer dizer que deixemos de
reparar nas relações entre literatura e política.
Nos primeiros cinco anos depois da
independência a maioria dos poetas reprimidos pelo
colonialismo apressou-se a tirar da gaveta todos os
manuscritos proibidos e os que, por autocensura, escondera. O
entusiasmo com a 'dipanda' e a revolução fizeram também
sair muitas declarações de amor ao país e ao socialismo que
raras vezes atingiam densidade artística. Dá-se nessa
altura, com o estímulo típico das sociedades socialistas de
inspiração soviética ou chinesa, uma verdadeira inflação
de panfletos políticos em forma de verso e com pretensão
literária. O papel-moeda ficou banal e esgotou as já pobres
reservas poéticas do realismo socialista. A mundialização
avançara até ali por essa via, não debaixo das patas ou
garras do capitalismo liberal ou dito liberal (na verdade é
liberal para os outros), mas sob a rígida reprodução do
dirigismo partidário. A globalização tinha ali o nome de
'internacionalismo proletário'. E secava o meio local,
para além de limitar a circulação de bens culturais -
quer pelo avanço da guerra civil, quer pela rápida degradação
das condições materiais a todos os níveis, quer pelo
controlo ideológico anti-ocidental, anticosmopolita, contrário
a tudo o que saísse da órbita estrita das leituras recomendáveis
segundo o Partido. As prateleiras das pouquíssimas livrarias
estavam desertas ou repetiam infindavelmente listas de publicações
da UEA, aqui e ali alternadas com livros de doutrina e manuais
escolares.
A inflação panfletária, que abafou
publicamente a notícia de uma ou outra obra de maior rigor
estético, assentava bem neste ambiente. Ela tinha apenas em
contraposição uma atitude sóbria por parte de nacionalistas
de raiz modernista como David Mestre, Arlindo Barbeitos e Ruy
Duarte de Carvalho. Num tal contexto, os jovens procederam à
procura, por um lado, do que nos diferenciava no processo
globalizador; por outro, de uma actualização e exigência
estéticas sem qualquer espécie de condescendências
intestinas. Como acontece muitas vezes, voltaram-se mais para
os que antes eram minoritários, como por exemplo os três
agora mesmo citados.
A geração angolana que vai nascer e
interrogar-se neste caldo bipolar começa timidamente em
versos de escritores que estavam no limiar, como João Melo,
Adriano Botelho de Vasconcelos e Paula Tavares - atingindo
esta última poetisa um nível de contensão (o 'erro' é
intencional), sugestão e propriedade vocabular a meu
ver extraordinários. Em Paula Tavares notamos também uma
ligação estruturante às tradições orais, especialmente
aquelas que vinham dos povos oprimidos pelo colonialismo, e à
exigência estética contemporânea em toda a sua extensão.
Daí a comparticipação, nas acções da empresa literária,
com lucros de mercadorias culturais globalizadas (de precisa
radicação nos 'sixties') e profundamente localizadas
("cresce comigo o boi por que me vão trocar" - cito de
memória na pressa de uma viagem).
A poesia que se torna pública a partir de
1980, mas sobretudo a partir de 1985 (incluída a de Paula
Tavares), de forma geral aprofunda esta mistura - quer no
sentido de uma actualização estética balizada pelos
modernismos e as poéticas experimentais (que tocou todos
estes poetas e de forma notória José Luís Mendonça, João
Maimona, Lopito Feijoó - entre os que primeiro se
publicaram), quer no sentido da refundição modernista da
oratória tradicional (por exemplo em Lopito Feijoo), quer no
da transformação verdadeiramente poética (e muitas vezes irónica)
da oratória política (por exemplo em José Luís Mendonça,
Eduardo Bonavena e Lopito Feijoo), quer na refuncionalização
de provérbios, adivinhas, personagens míticas, crenças e
contos das tradições orais, em geral as de raiz banto (isso
aconteceu em vários destes poetas e sobretudo nos narradores
que se irão revelando a partir dos fins da década de 80).
Nesse último ponto é de notar que a recuperação das tradições,
como a abordagem de problemáticas sociais (fome, guerra, miséria),
não se faz agora numa direcção revolucionária ou partidária.
Porque não se faz propriamente em nenhuma direcção: vem de
dentro para fora sem se deixar conduzir. As tradições estão
lá pela sua própria força na memória pessoal, e a problemática
social está lá porque a vida a impõe, está lá como estão
as tradições, o amor, a ironia, a oratória: porque são
trazidos à palavra poética pela premência da vida
circundante e pela fundição magmática do poema.
Os primeiros sinais de mudança, no
interior da geração, anunciam-se por duas vias que, de certo
modo, retomam a dicotomia dos primeiros anos pós-independência,
a dicotomia entre a poesia empenhada ao Partido (pelo partido)
e a poesia tout court, simplesmente. Mas só na aparência
as duas vias se mantinham nessa dualidade. Uma das vias, a que
envolveu mais pessoas, é a das Brigadas Jovens de Literatura,
criação típica dos estados totalitários. Na mecanização
das suas estruturas políticas, na correspondente normalização
da criatividade em nome de uma ideologia globalizada, irrompem
inesperadamente os demónios da reivindicação identitária e
do modernismo estético (também sorvido na globalização da
negritude), que visam renacionalizar o discurso,
excepcionalmente numa direcção étnica marcada e contraditória
da emergência . Surgem também vozes líricas,
"alienadas" para os ditames da arte oficial, proliferando
em metáforas ousadas e de rigor estético actualizado para
qualquer parte do mundo, não apenas para aquela.
Historicamente falando, abandona-se, no ventre mesmo do
sistema, quer o velho realismo socialista ou neo (substituído
por uma actualização estética mais global), quer a
partidarização da literatura que lhe andava associada
(substituída por uma libertação estética de múltiplos
horizontes e assumidamente analógica). Publicações como os
cadernos Ohandanji, de onde sai Lopito Feijoo,
assinalam essas aspirações ao mesmo tempo juvenis e de uma
ânsia desmedida. Por ali entra no país também alguma
actualização estética tipicamente africana, da globalização
de referência africana, mesmo quando se trata de um autor da
vizinha República Popular do Congo. A partir daí os mitos da
negritude são transformados e refuncionalizados em moldes
novos que irão dar os seus frutos ensaísticos em Luís
Kandjimbo e poéticos em Lopito Feijoo.
A outra via foi desde o início
independente do sistema monopartidário implantado. Está
sinalizada sobretudo pela publicação da revista Archote,
quer nos ensaios quer na produção poética. Dela saiu um
ensaísta e investigador brilhante, Eduardo Bonavena, e por
ela passaram vários bons poetas dos que então se revelavam.
Foi um momento importante por dois motivos: pela liberdade de
espírito conscientemente assumida; pelo grau de exigência e
contemporaneidade estética e intelectual que os seus
principais protagonistas desenvolveram.
O Archote
era também uma via de
heterodoxias conviventes, mais ainda (muito mais) que a das
Brigadas Jovens, vigiadas de perto (apadrinhadas...) pelo
sistema literário de então e que só depois manifestaram
claramente as suas diferenças internas. A heterodoxia
revelou-se desde logo uma característica geracional, que
antecipou em vários anos as tímidas mudanças de sistema político,
posteriormente consubstanciadas no jogo partidário, ainda
hoje em fase de consolidação e aperfeiçoamento. Os novos
poetas viviam, no efervescente caldo cultural e artístico das
suas inquietações, uma diversidade em que a literatura
antecipou a política.
A comemoração dos 10 anos de independência
nacional foi feita, no âmbito da política de apoio às
artes, típica dos sistemas totalitários e da fusão febril
dos conceitos de «nação», «estado», «governo», «partido»,
«revolução». Por isso ocasionou uma actividade editorial
febril por parte da União dos Escritores Angolanos.
Paradoxalmente o que ela tinha para revelar de novo era esta
geração heteróclita.
A UEA esteve sempre muito activa no campo
editorial e foi apadrinhada, logo de início (mesmo antes do
início), pelo Partido. Popularmente o seu prestígio aumentou
pelo facto de o primeiro presidente, Agostinho Neto, ser também
poeta e um dos principais animadores da iniciativa, junto com
outras figuras muito conhecidas. A poesia tinha então um
prestígio incomparável no país, a ponto de o mais carismático
líder da oposição, Jonas Savimbi, ter a preocupação de
mostrar que também era poeta, publicando letras que eram
cantadas pelos seus militantes e alguns outros poemas
condicionados por ritmos, prosaísmos e tópicos típicos das
canções populares de então e da poesia revolucionária. O
sistema aproveitou bem esse prestígio e apoiou
financeiramente a publicação de várias séries de livros
carimbados com o selo das comemorações dos 10 anos da
independência (e da revolução). Saíram nesse contexto
muitos dos livros da nova geração, paradoxalmente como
disse. Foi a primeira vez que se tornou patente para o público
leitor a transformação literária em curso nas camadas mais
novas da população letrada. Saltava já dali uma ideia de
conjunto e de conjunto heterodoxo, em que o percurso pessoal
era mais importante e desenvolvido que o percurso colectivo.
Apesar disso e acompanhando isso, alguns traços e tópicos
eram comuns: a recuperação e renovação do corpus
amoroso; a metaforização intensa com efeitos de surpresa; o
uso cuidado da língua portuguesa devolvida ao seu esplendor
poético (trabalho notório em José Luís Mendonça e João
Maimona); o recurso a fragmentos linguísticos e míticos das
tradições orais e populares urbanas e rurais ("Então
Kanhenga Xingu meu irmão...").
Os anos de revelação pública
prosseguiriam paulatinamente até mais ou menos 1992,
acentuando os diversos traços comuns e as diferenças
pessoais também. O sistema tinha entretanto, na sequência do
que ia sucedendo no bloco socialista (e especialmente na
URSS), começado a experimentar uma tímida recuperação da
iniciativa privada na economia. O ímpeto revolucionário e
programático era gradualmente substituído pelo que a vida
impunha e à pragmática política convinha aceitar. Parte da
poesia de Carlos Ferreira, desde então, se compreende a
partir da desilusão causada por essa e outras mudanças
igualmente pragmáticas. No percurso de abertura tímida,
quase encoberta, que o regime ensaiou face à iniciativa
privada a geração inflacionava a garrafa de oxigénio.
Conforme as pessoas cresciam e viajavam, conforme se tornavam
notadas fora do país também, a inflação punha a circular
mais livros, oriundos do estrangeiro para dentro de Luanda
sobretudo. Já não eram só as bibliotecas de alguns
modernistas mais velhos, como a de David Mestre, que lhes
abriam os olhos para caminhos novos, de Pound ao Concretismo
brasileiro, de Eugénio a Drummond de Andrade, do Surrealismo
francês ao português etc.. Esta movimentação foi crescendo
por movimentos inversos também: a pouco e pouco os que tinham
escolhido os caminhos do mundo voltavam, reviam amigos,
actualizavam conversas e referências, trocavam as suas produções
e as comentavam. Com isso foi a literatura preparando a
verdadeira reconciliação nacional, aquela que não precisa
de mortes para nascer. E com ela chegaram ao sistema literário
local as incontornáveis revelações dos exilados.
Elas marcaram o início de uma segunda
fase, dentro da que descrevemos, aí pelo fim dos anos 80,
mesmo 1989 se a memória não viajou também para muito longe.
A fase foi protagonizada precisamente por exilados. Nos países
europeus, onde vivia uma parte significativa de escritores
exilados, a poesia lírica em verso vinha geralmente perdendo
terreno. Se ao olharmos para Portugal e Brasil ainda vemos
poetas pujantes e um largo vigor lírico, em países como a
França ou a Inglaterra a narrativa secava a terra à sua
volta. Algo parecido com o que se passa no Portugal de hoje:
ninguém sabe de cor versos de um poeta mas toda a gente sabe
que Margarida Rebelo Pinto escreve estórias banais do
quotidiano em estrita observância, discursiva e noética,
dessa mesma banalidade. A poesia experimental movimentava-se
como quase sempre a partir de círculos de facto reduzidos,
ainda que abertos a todos. Alcançava um público estrito
apesar das performances em espaços públicos. A poesia lírica,
essa, não passava das gerações da II Guerra Mundial. Nenhum
nome nascido nos anos 50 e 60 se destacava nesses mercados já
na altura. A poesia lírica em verso rareava nas livrarias
comuns. Apesar da geração beatnick e de várias ondas
de recuperação do lirismo, nunca se passou do nível das
pessoas que se interessavam por isso e os centros comerciais
inundavam-se de romances prosaicos, contos da nossa vida que
eu acho que também é assim, não sei, fiction, fashion,
o reflexo dos brilhos que exibem o vestido e o modelo nos
vidros sujos dos carros da subcave. Os literatos carreiristas
aperceberam-se, nesses meios, de que tinham de escrever
romances para ganhar notoriedade, aumentando assim o rol de títulos
desinteressantes. Com tudo isso, os autores que tinham
crescido ou entrado na maturidade em Paris, Londres, ou mesmo
numa Lisboa que acordava lentamente do ranço e do gozo das
hortas atrás dos prédios, acompanhavam o movimento geral e
deram mais romancistas que poetas. É quando começam a
aparecer os grandes ficcionistas da geração. Inicialmente são
dois os nomes que sobressaem: José Eduardo Agualusa e José
Sousa Jamba. A novidade não tem só que ver com o género
literário, nem só com o facto, coincidente, de se tratar de
dois autores do nosso planalto central, cerne das duas guerras
civis. Um deles (José Eduardo Agualusa) vivia sobretudo em
Portugal e estava ligado a pessoas do círculo da revista Archote
e de uma oposição de esquerda ao sistema monopartidário; o
outro (José Sousa Jamba) veio de um acampamento de refugiados
na Zâmbia e de uma zona sob controlo da UNITA, tornando-se um
jornalista conhecido e respeitado em Londres. Para além
disso, a língua usada por Sousa Jamba, pela primeira vez no
país, era o inglês. João Maimona escrevera poemas em francês,
mas o francês estava mais próximo, quer pelo francesismo dos
portugueses no tempo colonial, quer pelas vizinhanças estratégicas
com os dois Congos no tempo da resistência nacional. Sousa
Jamba, para se tornar conhecido entre angolanos, teve que ver
a obra inaugural (até hoje a melhor), Patriotas, traduzida
do original inglês, mas ela foi publicada primeiro em inglês
pelo autor e na Inglaterra. Ela insere-se também numa série
anglófona de autobiografias (mais ou menos disfarçadas) de
romancistas africanos já nascidos ou crescidos depois das
independências. Um caso recente, inserido na série anglófona,
é o das Crónicas Abissínias de Moses Isegawa,
oriundo do Uganda e da Holanda mais tarde.
A parentela anglófona da diáspora de Sousa Jamba não era só
um dado novo, teve consequências no tipo de narrativa
desenvolvido pelo autor. Nesse tipo a linguagem é a da notícia
ou da crónica jornalística - nisso Agualusa não difere
muito - e a referência literária está fortemente
condicionada às literaturas anglófonas correntes,
especialmente aos que nelas cultivam uma linguagem incisiva,
sem peias e totalmente despida de gorduras retóricas como a
de Bruce Chatwin. Com o ingresso, terras dentro, da ficção
produzida por jovens exilados, entravam também visões políticas
diferentes do processo em des-curso, o que veio a acelerar o
debate partidário.
Em 1992 realizaram-se as fatídicas eleições
com todos os partidos. Delas emergiu um aborto monstruoso, a
segunda guerra civil, pior que a primeira. Cada vez mais
escritores da geração percebiam que o inimigo era comum: a
própria guerra e a sua causa, a disciplina partidária.
Portanto a nova literatura angolana desbravou caminhos cada
vez menos presa aos preconceitos partidários do passado. Os
escritores mais novos não mostram já qualquer espécie de
pudor em relação às religiões, ao animismo (não falo
agora do animismo realista mas do animismo, nem do realismo
maravilhoso ou fantástico, mas do animismo simplesmente). Tal
como tinham recuperado o tema do amor recuperaram tudo e
permitiram-se uns aos outros a sua pessoalidade ou
propriedade. O que houve de decisivo aí foi o deixarmos de
nos vigiar consciente ou inconscientemente. O fim da proibição
na criação literária, que era também o fim absoluto da
disciplina partidária em arte. Esse fim arrastou consigo o
fim das sintaxes, das prosódias e da discursividade típicas
da ordem realista. A linguagem narrativa em moldes lógicos
abstractos, a rigidez na ordem dos tempos e das vozes, a
desmontagem da ordem clara dos discursos, em último caso a
desmontagem da própria ordem linguística.
Nesse processo de reconciliação literária
e desconstrução dialogante, no qual entraram naturalmente vários
escritores mais velhos, os horizontes poéticos abriam-se em
perspectivas inesperadas, levando os políticos a perceber que
a verdade estava apenas a ser um jogo de espelhos mentirosos.
Em Luanda sobretudo, visto que nas províncias desaparecia com
a guerra o cultivo sistemático das outras artes, foram-se
revelando novos poetas e narradores, alguns dos quais na faixa
etária dos de 80, que entravam no diálogo com maneiras próprias.
Era a resposta do interior, desse interior efervescente que reúne
fora do asfalto um país inteiro em todas as suas nações,
etnias, tribos, religiões, partidos e salvações. Era a sua
resposta ainda na conversa com os 'de fora' e do asfalto.
No género narrativo aprofundou-se uma vertente mítica, de
retorno a mitos localizantes. Se em Agualusa essa vertente mítica
se intensifica na sua globalização, nestes escritores (por
exemplo em Cikakata Mbalundo) a narrativa pretende fechar-se
ao mundo abrindo-se para uma ancestralidade quase pré-colonial.
Mas todos, dentro e fora, sobretudo retornaram ao que antes
tinha sido raro e decisivo (v. O Segredo da Morta, de
António de Assis Júnior): a própria estrutura narrativa se
organiza e funciona em torno uma crença 'animista' ou
afim. É transversal à nova angolanidade literária, do
exterior ou do interior, a presença de narrativas com esta
característica. Se antes a aspiração religiosa era o ópio
do povo, agora o ópio estava a fazer efeito e as pessoas
agradeciam.
Isso podemos ver também na poesia lírica.
Uma nova proliferação editorial, dos anos 90 até hoje,
colocando muito mais títulos no mercado, parece dificultar a
tarefa porque ela foi inicialmente mais virada para a produção
lírica. Agora as edições eram da UEA (que hoje continua a
ser um dos principais veículos de publicação de literatura
em Angola), ou de empresas privadas, ou dos próprios poetas
com apoios de empresas estatais e privadas. O movimento
editorial vem dinamizando lentamente o próprio sistema literário
local, diversificando mais as leituras, embora ainda nele
ocupe uma fatia muito grande o livro nacional (há poucas
traduções feitas e publicadas). Precisamos de sentidos de
beleza que nos ajudem a perscrutar os caminhos nessa mata
espessa, mas eles existem. A proliferação revelou muitos
poetas medíocres, alguns até já o terão reconhecido e
abandonaram lealmente as hostes. Dois ou três nomes no
entanto se vieram a revelar com o tempo, ao longo destes últimos
14 anos, casos importantes. Falo destes consciente de que há
mais nomes a referir. Usei, porém, para escolhê-los, um método
psicanalítico e surreal: fechei os olhos e escrevi os
primeiros que me vieram à visão. No masculino João Tala,
Roderick Nehone, Conceição Cristóvão, Cristóvão Neto,
Fernando Kafukeno, entre outros. No feminino, principalmente
Maria Alexandre Dáskalos (a viver fora do país) e Amélia
Dalomba (a viver em Luanda).
Cito nomes a título, também, de indicações
primárias de leitura. As limitações deste ensaio não
permitem fazer mais e talvez seja mesmo melhor deixar
inteiramente ao leitor estrangeiro o juízo de valor estético
sobre os escritores mais recentes. Há, no entanto, dois casos
à parte que, pelo efeito estético estranho, pela forte
originalidade (que pode por isso ficar incompreendida),
merecem um comentário mínimo.
Um primeiro caso à parte, neste panorama,
é o de Frederico Ningi. Trata-se de uma figura artística sui
generis na Luanda de hoje e entre os seus conterrâneos
benguelenses. Artista plástico e poeta, ele soube juntar as
duas artes em práticas cujas correspondências são no mínimo
surpreendentes. Por que se põem a par de práticas
experimentais globalizadas sem perderem cor, léxico,
personagens e tópicos locais. As imagens de Ningi estão
antes da separação entre palavras e visões. O autor, que os
leitores brasileiros conhecem através da revista Dimensão,
foi também (quanto saiba) o primeiro poeta angolano a tentar
escrever um poema visual em computador. Vê-se nessas
experimentações iniciais, como nas páginas de Os Címbalos
dos Mudos, Infindos nas Ondas, que a sua poesia entrelaça a tal ponto a visualidade e a
verbalidade que não podemos separá-las mais. As relações
entre elas são complexas e diversas conforme as experiências
que faz. Nesse esforço leva a nossa atenção a retornar ao nível
das imagens primordiais, que relevam ao mesmo tempo de um
raciocínio metafórico, de uma composição visual e de um
repertório de sons organicamente espalhados pela mancha gráfica
ou pelas redes neuronais. O leitor verá.
Nos anos 2000 se vem revelando outro caso
a ver com mais atenção e que, sem explorar grafismos,
desenhos, ou a virtualidade artística da própria página,
atinge o mesmo efeito de retorno. Desde o início a poesia de
Abreu Paxe se mostra única, singular, desconcertante. O
efeito estético provocado pela sua poesia exige, para se
completar, um exercício de leitura diferente. Tomemos como
exemplo o verso
Corpos
austral sentido as igrejas irreal sentidos as dez[4]
Por instantes o leitor esqueça que está
em África, faça recuar para mais longe as imagens das minas,
das epidemias, das ditaduras cruéis, da corrupção. Há tudo
isso em África, na América também, na Ásia, até na Europa
e apesar do esforço concertado (quantas vezes cínico) dos países
da UE. Ponha esse lixo televisivo de lado e, sem perdermos a
consciência do mal em que vivemos, tentemos organizar o verso
de forma a torná-lo legível seja qual for o sentido. Este
verso pede-nos uma mudança radical no exercício da leitura
desde logo por à partida não fazer nenhum sentido. Parece um
conjunto de cacos acumulado ao acaso de alguma vassoura, das
ratazanas nocturnas e dos pontapés ressacados dos bêbedos.
Estamos à espera que um verso nos transmita uma mensagem e
dali sai-nos uma espécie de cacofonia caótica. Não tem
princípio, meio, nem fim. Quando muito aceitaríamos (mais
como quem repete mecanicamente uma reza) a polissemia do texto
literário - diz o jargão académico. Mas, dado esse caos,
lembremo-nos também do movimento Dadá. Façamos de conta que
estamos numa Universidade e fomos levados a estudá-lo.
Percebemos que ele abriu um caminho raro e sugestivo, nada
académico aliás. Num sentido preciso não foi totalmente
percorrido o caminho até hoje. Falo da gramática, da
desconstrução da gramática. A desmontagem dos mecanismos
linguísticos, que salva a poesia da escolástica dos
saussurianos e dos chomskyanos, não se completa apenas no que
diz respeito à polissemia, nem apenas no que diz respeito à
constituição de frases estranhas. O caminho aberto implicava
um salto para outro nível, o nível anterior em que as
imagens andam a pular, aleatoriamente, no cérebro. Aí não há
qualquer espécie de estrutura, só fragmentos de estruturas a
boiar e a possibilidade de levantarmos algumas, juntarmo-las,
fazermos uma rede para apanhar as outras e construir um texto.
Era preciso então acabar com qualquer pequeno caroço, nó,
qualquer sequência estritamente linguística, imposta pela
linguagem, que nos fizesse sair do estado inicial em que
pescamos as palavras com assobios agudos. Mesmo a sequência sintagma
nominal x sintagma verbal, tão universal quanto qualquer
coisa que o não seja, ou qualquer sintagma de
estrutura particular ou comum. Era preciso regressar ao estado
virtual dos vocábulos.
É isso o que faz Abreu Paxe atirando para cima da mesa o jogo
do caos em que vivemos enquanto ao mesmo tempo organizamos
frases e produzimos sentidos pertinentes em face das ocasiões.
O leitor experimente agora cortar cada
palavra do verso e depois ir aproximando-as e afastando-as
umas das outras construindo frases suas e esquecido da ordem
das palavras na linha. Deve ter feito qualquer coisa parecida
na escola primária. Se estiver com mais tempo e se sentir
mais criativo pegue no seu computador, disperse as letras pelo
espaço disponível e actue como um gerador textual. Verá
surgirem frases possíveis e com sentido - embora diverso.
Pode escrever, por exemplo, "corpos sentidos, austral
sentido, as igrejas, as dez" e continuar a ler os versos
integrando-os na sua sintaxe de momento. Depois desmanche tudo
outra vez e recomece sem se assustar com Édipo ou Freud.
Conforme a sua enciclopédia pessoal pode recordar, por
exemplo também, que "austral" remete eventualmente para a
África Austral ou para o Sentido Austral dos "corpos
sentidos", porque são corpos, porque foram sentidos, porque
geralmente o corpo e os sentidos são associados à vida na
terra, no vale de lágrimas, por oposição à vida além do
voo das aves. Pode lembrar-se então da Igreja como o corpo
feminino de Deus, as igrejas são corpos sentidos, as dez de
que fala a Bíblia ou quaisquer outras dez (duplique
"moedas favores esmolas pedintes as catedrais").
Pode ainda saber que em Angola, como no Brasil muitas vezes,
se escreve "as dez" tendo como correspondência, ao nível
da fala, "às dez". A partir daí recolherá mais sugestões
de leitura ainda. Aquele mito modernista, estruturalista, pós-estruturalista,
contemporâneo e globalizado, aquele que nos fala da
desmultiplicação de sentidos do poema, realiza-se aqui.
Perante ele não faz sentido a pergunta que no entanto pode
ocorrer-lhe a si: mas o autor pensou nisso? É fácil provar
que sim e que não. Mas é preciso não esquecermos que o
autor aqui ainda não existe, o autor voluntário, que realiza
a intenção de significar uma verdade oculta e revelada pelo
texto, a personagem que organiza e precisa os sentidos das
palavras em torno da mensagem a transmitir. Não nos esqueçamos:
o autor pulou para outro nível e submergiu nele. Aqui estamos
ao nível da virtualidade vocabular. Ao nível do poeta
senghoriano que deixa de ser ele para ser as vozes. Poderá
dizer-nos então o leitor impertinente e indispensável: se
ele estava nesse nível, se abdicou da sua intenção, do seu
ego, e foi para o Nirvana, para a virgindade da linguagem, será
correcto nós fazermos o que ele não quis fazer e
construirmos uma sintaxe de leitura? Esteja descansado, caro
amigo, na literatura a legitimidade é uma ficção também e
o autor fez o mesmo que nós. O poema a que me refiro, o que
tem aquele primeiro verso, termina com estes dois:
e
livres na sala todas as tardes feitas sentinelas
de
sombras legitimamente abertas à medida da travessia,
a mesma que dá origem ao título, «A
Medida da Travessia», a passagem de nível aberta. Ele,
autor, também acabou por organizar as palavras num feixe de
sentidos e numa sequência gramatical. Atravessou todo o
espectro da criatividade: do caos original à ordem múltipla
e provisória. Este é no entanto um dos corolários do
processo artístico iniciado publicamente nos anos 80: o da
independência da poesia, que a si própria não se proíbe
nem de fazer sentido.
Universidade
de Évora, 27/06/2006
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