ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A INDEPENDÊNCIA DA POESIA

 

Francisco Manuel Antunes Soares

 

Com a independência de Angola, na bicefalia[1] do 11 de Novembro de 1975,  abria-se também um novo período literário que, no entanto, só veio a dar sinais a partir de 1980. A quase simultaneidade dos dois factos (poético e político) pode condicionar as palavras que se seguem à preocupação de estudar as relações entre arte e política.

 

As relações entre literatura e política não são lineares e por isso também não coincidem exactamente no calendário as mudanças estruturais poéticas e políticas. Acresce que, no mapa angolano da época, a única literatura pública, visível, ainda vinha só de Luanda ou de alguns angolanos a viver no exterior. A bicefalia era política mas não literária. O que não quer dizer que deixemos de reparar nas relações entre literatura e política.

 

Nos primeiros cinco anos depois da independência a maioria dos poetas reprimidos pelo colonialismo apressou-se a tirar da gaveta todos os manuscritos proibidos e os que, por autocensura, escondera. O entusiasmo com a 'dipanda' e a revolução fizeram também sair muitas declarações de amor ao país e ao socialismo que raras vezes atingiam densidade artística. Dá-se nessa altura, com o estímulo típico das sociedades socialistas de inspiração soviética ou chinesa, uma verdadeira inflação de panfletos políticos em forma de verso e com pretensão literária. O papel-moeda ficou banal e esgotou as já pobres reservas poéticas do realismo socialista. A mundialização avançara até ali por essa via, não debaixo das patas ou garras do capitalismo liberal ou dito liberal (na verdade é liberal para os outros), mas sob a rígida reprodução do dirigismo partidário. A globalização tinha ali o nome de 'internacionalismo proletário'. E secava o meio local, para além de limitar a circulação de bens culturais - quer pelo avanço da guerra civil, quer pela rápida degradação das condições materiais a todos os níveis, quer pelo controlo ideológico anti-ocidental, anticosmopolita, contrário a tudo o que saísse da órbita estrita das leituras recomendáveis segundo o Partido. As prateleiras das pouquíssimas livrarias estavam desertas ou repetiam infindavelmente listas de publicações da UEA, aqui e ali alternadas com livros de doutrina e manuais escolares.

 

A inflação panfletária, que abafou publicamente a notícia de uma ou outra obra de maior rigor estético, assentava bem neste ambiente. Ela tinha apenas em contraposição uma atitude sóbria por parte de nacionalistas de raiz modernista como David Mestre, Arlindo Barbeitos e Ruy Duarte de Carvalho. Num tal contexto, os jovens procederam à procura, por um lado, do que nos diferenciava no processo globalizador; por outro, de uma actualização e exigência estéticas sem qualquer espécie de condescendências intestinas. Como acontece muitas vezes, voltaram-se mais para os que antes eram minoritários, como por exemplo os três agora mesmo citados.

 

A geração angolana que vai nascer e interrogar-se neste caldo bipolar começa timidamente em versos de escritores que estavam no limiar, como João Melo, Adriano Botelho de Vasconcelos e Paula Tavares - atingindo esta última poetisa um nível de contensão (o 'erro' é intencional), sugestão e propriedade vocabular a meu ver extraordinários. Em Paula Tavares notamos também uma ligação estruturante às tradições orais, especialmente aquelas que vinham dos povos oprimidos pelo colonialismo, e à exigência estética contemporânea em toda a sua extensão. Daí a comparticipação, nas acções da empresa literária, com lucros de mercadorias culturais globalizadas (de precisa radicação nos 'sixties') e profundamente localizadas ("cresce comigo o boi por que me vão trocar" - cito de memória na pressa de uma viagem).

 

A poesia que se torna pública a partir de 1980, mas sobretudo a partir de 1985 (incluída a de Paula Tavares), de forma geral aprofunda esta mistura - quer no sentido de uma actualização estética balizada pelos modernismos e as poéticas experimentais (que tocou todos estes poetas e de forma notória José Luís Mendonça, João Maimona, Lopito Feijoó - entre os que primeiro se publicaram), quer no sentido da refundição modernista da oratória tradicional (por exemplo em Lopito Feijoo), quer no da transformação verdadeiramente poética (e muitas vezes irónica) da oratória política (por exemplo em José Luís Mendonça, Eduardo Bonavena e Lopito Feijoo), quer na refuncionalização de provérbios, adivinhas, personagens míticas, crenças e contos das tradições orais, em geral as de raiz banto (isso aconteceu em vários destes poetas e sobretudo nos narradores que se irão revelando a partir dos fins da década de 80). Nesse último ponto é de notar que a recuperação das tradições, como a abordagem de problemáticas sociais (fome, guerra, miséria), não se faz agora numa direcção revolucionária ou partidária. Porque não se faz propriamente em nenhuma direcção: vem de dentro para fora sem se deixar conduzir. As tradições estão lá pela sua própria força na memória pessoal, e a problemática social está lá porque a vida a impõe, está lá como estão as tradições, o amor, a ironia, a oratória: porque são trazidos à palavra poética pela premência da vida circundante e pela fundição magmática do poema.

 

Os primeiros sinais de mudança, no interior da geração, anunciam-se por duas vias que, de certo modo, retomam a dicotomia dos primeiros anos pós-independência, a dicotomia entre a poesia empenhada ao Partido (pelo partido) e a poesia tout court, simplesmente. Mas só na aparência as duas vias se mantinham nessa dualidade. Uma das vias, a que envolveu mais pessoas, é a das Brigadas Jovens de Literatura, criação típica dos estados totalitários. Na mecanização das suas estruturas políticas, na correspondente normalização da criatividade em nome de uma ideologia globalizada, irrompem inesperadamente os demónios da reivindicação identitária e do modernismo estético (também sorvido na globalização da negritude), que visam renacionalizar o discurso, excepcionalmente numa direcção étnica marcada e contraditória da emergência . Surgem também vozes líricas, "alienadas" para os ditames da arte oficial, proliferando em metáforas ousadas e de rigor estético actualizado para qualquer parte do mundo, não apenas para aquela. Historicamente falando, abandona-se, no ventre mesmo do sistema, quer o velho realismo socialista ou neo (substituído por uma actualização estética mais global), quer a partidarização da literatura que lhe andava associada (substituída por uma libertação estética de múltiplos horizontes e assumidamente analógica). Publicações como os cadernos Ohandanji, de onde sai Lopito Feijoo, assinalam essas aspirações ao mesmo tempo juvenis e de uma ânsia desmedida. Por ali entra no país também alguma actualização estética tipicamente africana, da globalização de referência africana, mesmo quando se trata de um autor da vizinha República Popular do Congo. A partir daí os mitos da negritude são transformados e refuncionalizados em moldes novos que irão dar os seus frutos ensaísticos em Luís Kandjimbo e poéticos em Lopito Feijoo.

 

A outra via foi desde o início independente do sistema monopartidário implantado. Está sinalizada sobretudo pela publicação da revista Archote, quer nos ensaios quer na produção poética. Dela saiu um ensaísta e investigador brilhante, Eduardo Bonavena, e por ela passaram vários bons poetas dos que então se revelavam. Foi um momento importante por dois motivos: pela liberdade de espírito conscientemente assumida; pelo grau de exigência e contemporaneidade estética e intelectual que os seus principais protagonistas desenvolveram.

 

O Archote era também uma via de heterodoxias conviventes, mais ainda (muito mais) que a das Brigadas Jovens, vigiadas de perto (apadrinhadas...) pelo sistema literário de então e que só depois manifestaram claramente as suas diferenças internas. A heterodoxia revelou-se desde logo uma característica geracional, que antecipou em vários anos as tímidas mudanças de sistema político, posteriormente consubstanciadas no jogo partidário, ainda hoje em fase de consolidação e aperfeiçoamento. Os novos poetas viviam, no efervescente caldo cultural e artístico das suas inquietações, uma diversidade em que a literatura antecipou a política.

 

A comemoração dos 10 anos de independência nacional foi feita, no âmbito da política de apoio às artes, típica dos sistemas totalitários e da fusão febril dos conceitos de «nação», «estado», «governo», «partido», «revolução». Por isso ocasionou uma actividade editorial febril por parte da União dos Escritores Angolanos. Paradoxalmente o que ela tinha para revelar de novo era esta geração heteróclita.

 

A UEA esteve sempre muito activa no campo editorial e foi apadrinhada, logo de início (mesmo antes do início), pelo Partido. Popularmente o seu prestígio aumentou pelo facto de o primeiro presidente, Agostinho Neto, ser também poeta e um dos principais animadores da iniciativa, junto com outras figuras muito conhecidas. A poesia tinha então um prestígio incomparável no país, a ponto de o mais carismático líder da oposição, Jonas Savimbi, ter a preocupação de mostrar que também era poeta, publicando letras que eram cantadas pelos seus militantes e alguns outros poemas condicionados por ritmos, prosaísmos e tópicos típicos das canções populares de então e da poesia revolucionária. O sistema aproveitou bem esse prestígio e apoiou financeiramente a publicação de várias séries de livros carimbados com o selo das comemorações dos 10 anos da independência (e da revolução). Saíram nesse contexto muitos dos livros da nova geração, paradoxalmente como disse. Foi a primeira vez que se tornou patente para o público leitor a transformação literária em curso nas camadas mais novas da população letrada. Saltava já dali uma ideia de conjunto e de conjunto heterodoxo, em que o percurso pessoal era mais importante e desenvolvido que o percurso colectivo. Apesar disso e acompanhando isso, alguns traços e tópicos eram comuns: a recuperação e renovação do corpus amoroso; a metaforização intensa com efeitos de surpresa; o uso cuidado da língua portuguesa devolvida ao seu esplendor poético (trabalho notório em José Luís Mendonça e João Maimona); o recurso a fragmentos linguísticos e míticos das tradições orais e populares urbanas e rurais ("Então Kanhenga Xingu meu irmão..."[2]).

 

Os anos de revelação pública prosseguiriam paulatinamente até mais ou menos 1992, acentuando os diversos traços comuns e as diferenças pessoais também. O sistema tinha entretanto, na sequência do que ia sucedendo no bloco socialista (e especialmente na URSS), começado a experimentar uma tímida recuperação da iniciativa privada na economia. O ímpeto revolucionário e programático era gradualmente substituído pelo que a vida impunha e à pragmática política convinha aceitar. Parte da poesia de Carlos Ferreira, desde então, se compreende a partir da desilusão causada por essa e outras mudanças igualmente pragmáticas. No percurso de abertura tímida, quase encoberta, que o regime ensaiou face à iniciativa privada a geração inflacionava a garrafa de oxigénio. Conforme as pessoas cresciam e viajavam, conforme se tornavam notadas fora do país também, a inflação punha a circular mais livros, oriundos do estrangeiro para dentro de Luanda sobretudo. Já não eram só as bibliotecas de alguns modernistas mais velhos, como a de David Mestre, que lhes abriam os olhos para caminhos novos, de Pound ao Concretismo brasileiro, de Eugénio a Drummond de Andrade, do Surrealismo francês ao português etc.. Esta movimentação foi crescendo por movimentos inversos também: a pouco e pouco os que tinham escolhido os caminhos do mundo voltavam, reviam amigos, actualizavam conversas e referências, trocavam as suas produções e as comentavam. Com isso foi a literatura preparando a verdadeira reconciliação nacional, aquela que não precisa de mortes para nascer. E com ela chegaram ao sistema literário local as incontornáveis revelações dos exilados.

 

Elas marcaram o início de uma segunda fase, dentro da que descrevemos, aí pelo fim dos anos 80, mesmo 1989 se a memória não viajou também para muito longe. A fase foi protagonizada precisamente por exilados. Nos países europeus, onde vivia uma parte significativa de escritores exilados, a poesia lírica em verso vinha geralmente perdendo terreno. Se ao olharmos para Portugal e Brasil ainda vemos poetas pujantes e um largo vigor lírico, em países como a França ou a Inglaterra a narrativa secava a terra à sua volta. Algo parecido com o que se passa no Portugal de hoje: ninguém sabe de cor versos de um poeta mas toda a gente sabe que Margarida Rebelo Pinto escreve estórias banais do quotidiano em estrita observância, discursiva e noética, dessa mesma banalidade. A poesia experimental movimentava-se como quase sempre a partir de círculos de facto reduzidos, ainda que abertos a todos. Alcançava um público estrito apesar das performances em espaços públicos. A poesia lírica, essa, não passava das gerações da II Guerra Mundial. Nenhum nome nascido nos anos 50 e 60 se destacava nesses mercados já na altura. A poesia lírica em verso rareava nas livrarias comuns. Apesar da geração beatnick e de várias ondas de recuperação do lirismo, nunca se passou do nível das pessoas que se interessavam por isso e os centros comerciais inundavam-se de romances prosaicos, contos da nossa vida que eu acho que também é assim, não sei, fiction, fashion, o reflexo dos brilhos que exibem o vestido e o modelo nos vidros sujos dos carros da subcave. Os literatos carreiristas aperceberam-se, nesses meios, de que tinham de escrever romances para ganhar notoriedade, aumentando assim o rol de títulos desinteressantes. Com tudo isso, os autores que tinham crescido ou entrado na maturidade em Paris, Londres, ou mesmo numa Lisboa que acordava lentamente do ranço e do gozo das hortas atrás dos prédios, acompanhavam o movimento geral e deram mais romancistas que poetas. É quando começam a aparecer os grandes ficcionistas da geração. Inicialmente são dois os nomes que sobressaem: José Eduardo Agualusa e José Sousa Jamba. A novidade não tem só que ver com o género literário, nem só com o facto, coincidente, de se tratar de dois autores do nosso planalto central, cerne das duas guerras civis. Um deles (José Eduardo Agualusa) vivia sobretudo em Portugal e estava ligado a pessoas do círculo da revista Archote e de uma oposição de esquerda ao sistema monopartidário; o outro (José Sousa Jamba) veio de um acampamento de refugiados na Zâmbia e de uma zona sob controlo da UNITA, tornando-se um jornalista conhecido e respeitado em Londres. Para além disso, a língua usada por Sousa Jamba, pela primeira vez no país, era o inglês. João Maimona escrevera poemas em francês, mas o francês estava mais próximo, quer pelo francesismo dos portugueses no tempo colonial, quer pelas vizinhanças estratégicas com os dois Congos no tempo da resistência nacional. Sousa Jamba, para se tornar conhecido entre angolanos, teve que ver a obra inaugural (até hoje a melhor), Patriotas, traduzida do original inglês, mas ela foi publicada primeiro em inglês pelo autor e na Inglaterra. Ela insere-se também numa série anglófona de autobiografias (mais ou menos disfarçadas) de romancistas africanos já nascidos ou crescidos depois das independências. Um caso recente, inserido na série anglófona, é o das Crónicas Abissínias de Moses Isegawa, oriundo do Uganda e da Holanda mais tarde[3]. A parentela anglófona da diáspora de Sousa Jamba não era só um dado novo, teve consequências no tipo de narrativa desenvolvido pelo autor. Nesse tipo a linguagem é a da notícia ou da crónica jornalística - nisso Agualusa não difere muito - e a referência literária está fortemente condicionada às literaturas anglófonas correntes, especialmente aos que nelas cultivam uma linguagem incisiva, sem peias e totalmente despida de gorduras retóricas como a de Bruce Chatwin. Com o ingresso, terras dentro, da ficção produzida por jovens exilados, entravam também visões políticas diferentes do processo em des-curso, o que veio a acelerar o debate partidário.

 

Em 1992 realizaram-se as fatídicas eleições com todos os partidos. Delas emergiu um aborto monstruoso, a segunda guerra civil, pior que a primeira. Cada vez mais escritores da geração percebiam que o inimigo era comum: a própria guerra e a sua causa, a disciplina partidária. Portanto a nova literatura angolana desbravou caminhos cada vez menos presa aos preconceitos partidários do passado. Os escritores mais novos não mostram já qualquer espécie de pudor em relação às religiões, ao animismo (não falo agora do animismo realista mas do animismo, nem do realismo maravilhoso ou fantástico, mas do animismo simplesmente). Tal como tinham recuperado o tema do amor recuperaram tudo e permitiram-se uns aos outros a sua pessoalidade ou propriedade. O que houve de decisivo aí foi o deixarmos de nos vigiar consciente ou inconscientemente. O fim da proibição na criação literária, que era também o fim absoluto da disciplina partidária em arte. Esse fim arrastou consigo o fim das sintaxes, das prosódias e da discursividade típicas da ordem realista. A linguagem narrativa em moldes lógicos abstractos, a rigidez na ordem dos tempos e das vozes, a desmontagem da ordem clara dos discursos, em último caso a desmontagem da própria ordem linguística.

 

Nesse processo de reconciliação literária e desconstrução dialogante, no qual entraram naturalmente vários escritores mais velhos, os horizontes poéticos abriam-se em perspectivas inesperadas, levando os políticos a perceber que a verdade estava apenas a ser um jogo de espelhos mentirosos. Em Luanda sobretudo, visto que nas províncias desaparecia com a guerra o cultivo sistemático das outras artes, foram-se revelando novos poetas e narradores, alguns dos quais na faixa etária dos de 80, que entravam no diálogo com maneiras próprias. Era a resposta do interior, desse interior efervescente que reúne fora do asfalto um país inteiro em todas as suas nações, etnias, tribos, religiões, partidos e salvações. Era a sua resposta ainda na conversa com os 'de fora' e do asfalto. No género narrativo aprofundou-se uma vertente mítica, de retorno a mitos localizantes. Se em Agualusa essa vertente mítica se intensifica na sua globalização, nestes escritores (por exemplo em Cikakata Mbalundo) a narrativa pretende fechar-se ao mundo abrindo-se para uma ancestralidade quase pré-colonial. Mas todos, dentro e fora, sobretudo retornaram ao que antes tinha sido raro e decisivo (v. O Segredo da Morta, de António de Assis Júnior): a própria estrutura narrativa se organiza e funciona em torno uma crença 'animista' ou afim. É transversal à nova angolanidade literária, do exterior ou do interior, a presença de narrativas com esta característica. Se antes a aspiração religiosa era o ópio do povo, agora o ópio estava a fazer efeito e as pessoas agradeciam.

 

Isso podemos ver também na poesia lírica. Uma nova proliferação editorial, dos anos 90 até hoje, colocando muito mais títulos no mercado, parece dificultar a tarefa porque ela foi inicialmente mais virada para a produção lírica. Agora as edições eram da UEA (que hoje continua a ser um dos principais veículos de publicação de literatura em Angola), ou de empresas privadas, ou dos próprios poetas com apoios de empresas estatais e privadas. O movimento editorial vem dinamizando lentamente o próprio sistema literário local, diversificando mais as leituras, embora ainda nele ocupe uma fatia muito grande o livro nacional (há poucas traduções feitas e publicadas). Precisamos de sentidos de beleza que nos ajudem a perscrutar os caminhos nessa mata espessa, mas eles existem. A proliferação revelou muitos poetas medíocres, alguns até já o terão reconhecido e abandonaram lealmente as hostes. Dois ou três nomes no entanto se vieram a revelar com o tempo, ao longo destes últimos 14 anos, casos importantes. Falo destes consciente de que há mais nomes a referir. Usei, porém, para escolhê-los, um método psicanalítico e surreal: fechei os olhos e escrevi os primeiros que me vieram à visão. No masculino João Tala, Roderick Nehone, Conceição Cristóvão, Cristóvão Neto, Fernando Kafukeno, entre outros. No feminino, principalmente Maria Alexandre Dáskalos (a viver fora do país) e Amélia Dalomba (a viver em Luanda).

 

Cito nomes a título, também, de indicações primárias de leitura. As limitações deste ensaio não permitem fazer mais e talvez seja mesmo melhor deixar inteiramente ao leitor estrangeiro o juízo de valor estético sobre os escritores mais recentes. Há, no entanto, dois casos à parte que, pelo efeito estético estranho, pela forte originalidade (que pode por isso ficar incompreendida), merecem um comentário mínimo.

Um primeiro caso à parte, neste panorama, é o de Frederico Ningi. Trata-se de uma figura artística sui generis na Luanda de hoje e entre os seus conterrâneos benguelenses. Artista plástico e poeta, ele soube juntar as duas artes em práticas cujas correspondências são no mínimo surpreendentes. Por que se põem a par de práticas experimentais globalizadas sem perderem cor, léxico, personagens e tópicos locais. As imagens de Ningi estão antes da separação entre palavras e visões. O autor, que os leitores brasileiros conhecem através da revista Dimensão, foi também (quanto saiba) o primeiro poeta angolano a tentar escrever um poema visual em computador. Vê-se nessas experimentações iniciais, como nas páginas de Os Címbalos dos Mudos, Infindos nas Ondas,  que a sua poesia entrelaça a tal ponto a visualidade e a verbalidade que não podemos separá-las mais. As relações entre elas são complexas e diversas conforme as experiências que faz. Nesse esforço leva a nossa atenção a retornar ao nível das imagens primordiais, que relevam ao mesmo tempo de um raciocínio metafórico, de uma composição visual e de um repertório de sons organicamente espalhados pela mancha gráfica ou pelas redes neuronais. O leitor verá.

 

Nos anos 2000 se vem revelando outro caso a ver com mais atenção e que, sem explorar grafismos, desenhos, ou a virtualidade artística da própria página, atinge o mesmo efeito de retorno. Desde o início a poesia de Abreu Paxe se mostra única, singular, desconcertante. O efeito estético provocado pela sua poesia exige, para se completar, um exercício de leitura diferente. Tomemos como exemplo o verso

 

Corpos austral sentido as igrejas irreal sentidos as dez[4]

 

Por instantes o leitor esqueça que está em África, faça recuar para mais longe as imagens das minas, das epidemias, das ditaduras cruéis, da corrupção. Há tudo isso em África, na América também, na Ásia, até na Europa e apesar do esforço concertado (quantas vezes cínico) dos países da UE. Ponha esse lixo televisivo de lado e, sem perdermos a consciência do mal em que vivemos, tentemos organizar o verso de forma a torná-lo legível seja qual for o sentido. Este verso pede-nos uma mudança radical no exercício da leitura desde logo por à partida não fazer nenhum sentido. Parece um conjunto de cacos acumulado ao acaso de alguma vassoura, das ratazanas nocturnas e dos pontapés ressacados dos bêbedos. Estamos à espera que um verso nos transmita uma mensagem e dali sai-nos uma espécie de cacofonia caótica. Não tem princípio, meio, nem fim. Quando muito aceitaríamos (mais como quem repete mecanicamente uma reza) a polissemia do texto literário - diz o jargão académico. Mas, dado esse caos, lembremo-nos também do movimento Dadá. Façamos de conta que estamos numa Universidade e fomos levados a estudá-lo. Percebemos que ele abriu um caminho raro e sugestivo, nada académico aliás. Num sentido preciso não foi totalmente percorrido o caminho até hoje. Falo da gramática, da desconstrução da gramática. A desmontagem dos mecanismos linguísticos, que salva a poesia da escolástica dos saussurianos e dos chomskyanos, não se completa apenas no que diz respeito à polissemia, nem apenas no que diz respeito à constituição de frases estranhas. O caminho aberto implicava um salto para outro nível, o nível anterior em que as imagens andam a pular, aleatoriamente, no cérebro. Aí não há qualquer espécie de estrutura, só fragmentos de estruturas a boiar e a possibilidade de levantarmos algumas, juntarmo-las, fazermos uma rede para apanhar as outras e construir um texto. Era preciso então acabar com qualquer pequeno caroço, nó, qualquer sequência estritamente linguística, imposta pela linguagem, que nos fizesse sair do estado inicial em que pescamos as palavras com assobios agudos. Mesmo a sequência sintagma nominal x sintagma verbal, tão universal quanto qualquer coisa que o não seja, ou qualquer sintagma de estrutura particular ou comum. Era preciso regressar ao estado virtual dos vocábulos[5]. É isso o que faz Abreu Paxe atirando para cima da mesa o jogo do caos em que vivemos enquanto ao mesmo tempo organizamos frases e produzimos sentidos pertinentes em face das ocasiões.

 

O leitor experimente agora cortar cada palavra do verso e depois ir aproximando-as e afastando-as umas das outras construindo frases suas e esquecido da ordem das palavras na linha. Deve ter feito qualquer coisa parecida na escola primária. Se estiver com mais tempo e se sentir mais criativo pegue no seu computador, disperse as letras pelo espaço disponível e actue como um gerador textual. Verá surgirem frases possíveis e com sentido - embora diverso. Pode escrever, por exemplo, "corpos sentidos, austral sentido, as igrejas, as dez" e continuar a ler os versos integrando-os na sua sintaxe de momento. Depois desmanche tudo outra vez e recomece sem se assustar com Édipo ou Freud. Conforme a sua enciclopédia pessoal pode recordar, por exemplo também, que "austral" remete eventualmente para a África Austral ou para o Sentido Austral dos "corpos sentidos", porque são corpos, porque foram sentidos, porque geralmente o corpo e os sentidos são associados à vida na terra, no vale de lágrimas, por oposição à vida além do voo das aves. Pode lembrar-se então da Igreja como o corpo feminino de Deus, as igrejas são corpos sentidos, as dez de que fala a Bíblia ou quaisquer outras dez (duplique "moedas favores esmolas pedintes as catedrais"[6]). Pode ainda saber que em Angola, como no Brasil muitas vezes, se escreve "as dez" tendo como correspondência, ao nível da fala, "às dez". A partir daí recolherá mais sugestões de leitura ainda. Aquele mito modernista, estruturalista, pós-estruturalista, contemporâneo e globalizado, aquele que nos fala da desmultiplicação de sentidos do poema, realiza-se aqui. Perante ele não faz sentido a pergunta que no entanto pode ocorrer-lhe a si: mas o autor pensou nisso? É fácil provar que sim e que não. Mas é preciso não esquecermos que o autor aqui ainda não existe, o autor voluntário, que realiza a intenção de significar uma verdade oculta e revelada pelo texto, a personagem que organiza e precisa os sentidos das palavras em torno da mensagem a transmitir. Não nos esqueçamos: o autor pulou para outro nível e submergiu nele. Aqui estamos ao nível da virtualidade vocabular. Ao nível do poeta senghoriano que deixa de ser ele para ser as vozes. Poderá dizer-nos então o leitor impertinente e indispensável: se ele estava nesse nível, se abdicou da sua intenção, do seu ego, e foi para o Nirvana, para a virgindade da linguagem, será correcto nós fazermos o que ele não quis fazer e construirmos uma sintaxe de leitura? Esteja descansado, caro amigo, na literatura a legitimidade é uma ficção também e o autor fez o mesmo que nós. O poema a que me refiro, o que tem aquele primeiro verso, termina com estes dois:

 

e livres na sala todas as tardes feitas sentinelas

de sombras legitimamente abertas à medida da travessia,

 

a mesma que dá origem ao título, «A Medida da Travessia», a passagem de nível aberta. Ele, autor, também acabou por organizar as palavras num feixe de sentidos e numa sequência gramatical. Atravessou todo o espectro da criatividade: do caos original à ordem múltipla e provisória. Este é no entanto um dos corolários do processo artístico iniciado publicamente nos anos 80: o da independência da poesia, que a si própria não se proíbe nem de fazer sentido.

 

 

Universidade de Évora, 27/06/2006



[1] A independência foi declarada ao mesmo tempo em Luanda, pelo MPLA, e no Huambo, pelos dois outros partidos armados de então (FNLA e UNITA). A bicefalia só acabou totalmente quando, em Fevereiro de 2002, na sequência do assassínio de Jonas Savimbi, a UNITA fez tréguas com o governo de Luanda aceitando a sua soberania.

[2] Verso de Lopito Feijoo.

[3] Lisboa, Temas & Debates, 2001 (a tradução é feita a partir do original inglês, Abyssian Chronicles, cujos direitos de cópia são de 2000 e do autor).

[4] De A Chave no Repouso da Porta, título irónico sem dúvida, Luanda, INIC, 2003, p. 40.

[5] José Lourenço de Oliveira, «Etimologia do Fabular e do Homínico», http://www.letras.ufmg.br/lourenco/banco/LL05.html, captado em 27-06-2006.

[6] Verso 2 do poema.

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