ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ABREU PAXE: CALÍGRAFO

 

 

Francisco Soares

 

 

adormecido berço

 

Há pelo menos duas maneiras de ler a poesia. Numa vamos alinhando lado a lado o que está escrito e o que supomos ser o segredo do poema, a sua verdade escondida ao mesmo tempo que sugerida. A partir de uma suspeita, que se chama hipótese em ciência, vamos atribuindo a cada frase e palavra um segundo significado. No fim temos dois discursos: o aparente e o ‘verdadeiro’. Um faz-se do que o poeta diz, o outro do que ‘ele quis dizer’.

 

Mas qualquer poema, feito como é para ser lido pelos mais diversos tipos de leitor, dá azo a muitas leituras. Mesmo os mais cerrados poemas militantes permitem, se quisermos, leituras divergentes daquela que o autor tem por sua. Quer dizer então que este primeiro tipo de leitura só nos conduz a uma interpretação de entre as várias que o texto permite ou sustenta. Sendo assim, torna-se forçoso concluir que haja outro tipo de leitura, mais completa, que em vez de interpretar permita compreender o funcionamento dos poemas em interacção com os seus leitores. Todos os tipos de interacção possíveis.

 

Em Angola predominou, por razões múltiplas que não cabe especificar aqui, o primeiro tipo de leitura. Quando começou a desenvolver-se uma linhagem de poetas irreverentes na sua estética, formalmente e em termos de conteúdo, a primeira reacção foi sempre a de menosprezo, que é uma forma arrogante de incompreensão. Os leitores estavam habituados a uma poesia que se propunha como objectivo principal condicionar os seus efeitos a um só tipo de leitura, a uma só conclusão e a uma só atitude. Quando lhes surgem poemas que desarmam a leitura esperada, textos aparentemente desarticulados, a reacção foi a de não os levar muito a sério. Havia então a poesia para levar a sério, que nos trazia uma só mensagem, fácil de perceber, e a poesia de brincadeira, irresponsável, inconsequente, ingénua mesmo. Sobre esta se lançava a suspeita de que os autores não sabiam o que estavam a dizer. Como tal, não se proibia nem se levava em conta. Eram jovens desorientados. A geração das incertezas.

 

 

O mercado em meus olhos

 

Alguns podiam ser ignorantes, outros não. Esses outros perguntaram-se talvez se os poetas que repetiam mecanicamente as receitas herdadas sabiam o que estavam a dizer. E liam toda uma linhagem de vanguarda, desde Ezra Pound, Appollinaire, desde o surrealismo, alguns modernismos, concretismos, poesia fonética, visual, experimentalismos, etc.. Deram-se então conta de que havia mais mundos e do tempo que se tinha perdido a repetir uma receita mecanicamente. Perceberam também que o poema não tem que ser um apelo disfarçado a uma atitude já de todos conhecida. Para a linhagem de poetas que se ia formando, o poema tem qualquer coisa de parecido com o hipertexto dos computadores: é um programa que nós iremos manipular adaptando-o aos nossos conteúdos. É, porém, um hipertexto mais completo: dá-nos também matéria prima. E a matéria prima da poesia resulta ser, não apenas palavras e frases, ainda imagens. Imagens visuais, sonoras, tácteis, olfactivas, sugestões básicas ligadas à nossa percepção, que sustentam sistemas de correspondências especializadas a que chamamos ciência, poesia, filosofia, crítica, teoria, etc.. Sustentam e condicionam, porque eles próprias formam já entre si uma rede de relações implícitas. Essa rede é comum à humanidade e, por isso, postas as imagens numa página, qualquer leitor pega nelas e imagina o seu poema.

 

Por vários caminhos os poetas do século passado exploraram tais potencialidades. É da lição deles que sobretudo resulta o que de realmente novo apareceu na poesia angolana desde os anos 80. Para além das movimentações acima citadas (experimentalismos), o surrealismo veio também abrir um caminho novo. Independentemente dos seus pressupostos, a prática dos poetas surrealistas consistia basicamente em desfilar imagens, frases, palavras num todo aparentemente caótico, sem sequência lógica nem sintaxe definida. A poesia angolana que se revela principalmente a partir dos anos 80 reúne as duas linhagens globalizadas de poetas. Foi a sua escolha de mercado, como outras determinada pela fidelidade à emoção estética – sobre a qual se fundam as mais fundas escolhas científicas (nunca uma teoria feia vingou). É a partir dessas práticas que podemos preparar-nos, enquanto leitores, para desfrutar textos como os que Abreu Paxe reuniu no primeiro livro, cujo título é de uma ironia e de uma poeticidade raras: A chave no repouso da porta.

 

Claro que ninguém surge do nada. Tínhamos lido antes o Lopito Feijoo, o João Maimona, o José Luís Mendonça, vários outros. Tínhamos lido antes deles o David Mestre, o Arlindo Barbeitos, o Ruy Duarte de Carvalho. E todos tinham lido muitos outros, estrangeiros. A poesia que Abreu Paxe então nos propõe leva ao seu ponto mais arriscado e mais profundo esta oferta de imagens-programa para nós, leitores, reconstruirmos. E fazemo-lo a partir da compreensão de como funcionam os textos poéticos.

 

Reparem numa sequência escolhida ao acaso entre os poemas de O vento fede de luz, segundo título do autor, agora lançado: “consolo o desejo do pó contando / no papel todos os acentos são máscaras / troncos espaçosos / entre as vogais que mundo se suspende / idêntico pronome este lugar de deus / aquece a prata / da sombra agudo o outro átomo / regula o corpo / sempre a esquecer do tempo todo / a olhar a patrícia no encontro estradas / da esquerda muralha o degrau azótico / folha cirúrgica / aquecida esta noite cresce partitiva na carne / hemisférica escuridão era qualquer noção do mundo / noção duma fala invariavelmente ausente” (p. 74 de O vento fede de luz). Não estamos apenas perante um grande poema – e nos dá sinal disso a impressão final, de conjunto, que temos quando o lemos de um sopro só, dando continuidade à sua voz interior que misteriosamente se comunica através do caos e do ruído. Não. Estamos perante uma sequência de imagens que se estrutura em aberto, para a configurarmos nós próprios de acordo com o nosso momento. E há, como sempre houve na história da poesia, truques, técnicas, formulações para garantir essa liberdade prolongando-lhe a vida.

 

Há por exemplo ambivalências sintácticas que se repetem ao longo de todo o poema, sustentadas sobre metáforas, enjambements ou transportes, mas principalmente sobre o duplo uso de pequenas sequências sintácticas colocadas entre duas frases e servindo para as duas. Veja-se: “o desejo do pó contando no papel todos os acentos” (auto-imagem do poeta e da poesia) versus “no papel todos os acentos são máscaras” (apelando a uma leitura hieroglífica e tradicional da literatura). O segmento “no papel todos os acentos” liga-se à frase anterior e à posterior ao mesmo tempo, servindo as duas. Há depois “troncos espaçosos / entre as vogais” e, no entanto, “entre as vogais que mundo se suspende”; há “este lugar de deus” que “aquece a prata da sombra agudo” e “da sombra agudo o outro átomo” (o leitor continue o exercício até ao fim – tem condições para isso).

 

Há palavras ainda que nos parecem desajustadas, que não se lêem nos dicionários, muito menos nos de poesia. É o caso daquela que, aparentemente, é a mais feia de todas: “azótico”. Realmente não a vemos em nenhum dicionário. Mas vemos “azoto” (nitrogénio, que etimologicamente significa ‘privação da vida’) e vemos “exótico”. Podemos juntar as duas acepções para apreendermos a beleza intrínseca do azótico. Uma vez isso feito, o leitor releia agora a frase em que a palavra está inscrita e veja se não faz mais sentido e se não é mais bela. Podemos ainda recordar o que é o azoto, a imagem fatal que o define e como ele contribui para a coerência semiótica do poema: não é metálico, em forma livre é um gás inodoro, incolor, insípido e insolúvel (repare-se na ligação entre estas características e o último verso do poema) que constitui 78% da nossa atmosfera. Para quem gosta de numerologia, o seu número atómico é o 7 e a sua massa é de 14,008... Não interessa se o poeta pensou nisto, interessa que nós podemos fazer estas associações porque estamos a ler um poema lírico.

 

Há também conexões glocais, entre global e local, como esta: “no gargalho da cabaça” (p. 29). A cabaça mítica das nossas tradições (e outras de vários outros povos), o gargalo das garrafas e o gargalho que junta o gargalo à gargalhada, o gargalho da garganta (dicionário Houaiss electrónico: “escarro grosso que se expele com dificuldade”) e o do verbo gargalhar. Com toda a galhardia, não nos interessa se o poeta andou nos dicionários à procura de todas estas acepções, se ele planeou mais ou menos os usos possíveis da palavra neste contexto. O que nos interessa é que ela pode sugerir tudo isto e algo mais ainda.

 

Portanto, se queremos desfrutar do poema, o que há a fazer não é perguntar, por exemplo, o que significa “o vento fede de luz”. O que há a fazer é experimentar as combinações abertas por essa montagem sintáctica. O vento pode feder, trazer mau cheiro de uma lixeira próxima, num dia e num instante luminosos e, portanto, fede com luz, poetica ou metaforicamente, fede de luz. A luz é por vezes excessiva e, como tudo o que é demais cansa, cheira mal, satura, enfim, fede, por aí também o vento fede de luz, de uma luz irónica porque nos cega e nos esmaga e não serve já para mais nada.

 

Por muitos caminhos ainda podíamos ir. O importante, porém, é compreendermos que o  verso-título não está lá para lhe darmos uma interpretação, supostamente verdadeira, destinada portanto a repetir-se até à exaustão do seu potencial poético. O verso é um programa para o leitor imaginar o poema e a imaginação tem só princípio, não tem fim.

 

 

A soma alinhavada

 

Este segundo livro, segundo a nota do autor no final, reúne muitos poemas anteriores ao primeiro. Há de facto uma diferença entre eles: é a de que os processos e as estruturas referidos estão mais acentuados em A chave no repouso da porta do que em O vento fede de luz. Mas em ambos persistem metáforas de longa distância, de recuperação tensa e difícil, de sabor denso e demorado. Sintaxes surpreendentes, que se destinam a desconcertar o leitor para o levar a novas percepções da própria língua e da própria linguagem. Imagens poderosas que nos religam à nossa mais funda consciência, fragmentariamente como em todos os poemas líricos. Há esse desafio constante ao leitor sustentando a beleza acima das cegueiras, das velhas sombras de espasmos. Vindo assim de uma linhagem de vanguarda e experimental, no entanto estas práticas aglutinaram-se com as tradicionais, reavivaram a virtualidade de jogos e estruturas tradicionais ou da oralidade angolana. Como também não deixam de respirar um ambiente em vários aspectos irrespirável que traz ao poema tantas vezes a sugestão de sufoco e vazio que denuncia activamente o pior dos nossos dias.

Então não se aborreça o mais conservador de entre nós, ou o mais tradicionalista, ou mesmo o mais socialista. Continuamos a jogar adivinhas para o ar com palavras marcadas também pela denúncia dupla da beleza e da injustiça. Outros irão apanhá-las e dar-lhes um sentido-resposta, conotá-las – encontrar-lhes a instantânea coincidência provendo assim o milagre da comunicação e da idoneidade do poeta. Só que já não estamos sós numa pequena aldeia. A sanzala cresceu muito e as respostas não serão mecanicamente repetidas, condicionando a imaginação ao costume. O que, porém, originou as adivinhas foi a imaginação, não foi o costume. 

 

Luanda, 27 de Novembro de 2008.

 

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