ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

TECNOPOESIA E MOVIMENTO

 

Francisco Soares

 

transcrição da poesia para suporte informático

 

Um poema pode ser publicado na Internet tal como numa página impressa, dir-nos-ão. Há exemplos disso, muitos até – e a maioria lastimáveis, precisamente pela desatenção aos suportes e à globalidade da apresentação pública da obra. Porque a mudança no cenário e na apresentação do cenário, sobre novos suportes, outros canais e com novos ritmos de leitura, é de tal forma que integra a comunicação do poema numa espécie de ‘espetáculo multimédia’, no qual passam a intervir diferentes artes e habilidades – algumas delas consequentes à generalização da informática. O espetáculo global, aproveitado criativamente, reinterpreta, reorganiza e dinamiza o jogo de símbolos que o texto lírico propunha, alargando o âmbito do jogo poético e semiótico para uma dimensão interdisciplinar muito forte. Aproxima-o assim, como já notaram vários ensaístas, da obra total com que sonhou o século XIX e que tanto levou a investir na poesia (Mallarmé) quanto na ópera (Wagner). Mas não como ela foi sonhada por eles. E, por cautela, repitamos uma implicação fundamental: o poema, a obra, passa a ser esse conjunto, já não são palavras organizadas num texto e tipografadas numa página em branco, seja de que forma for.

 

A organização das palavras obedece, muito provavelmente, a uma organização de imagens a montante [1]. Não como foi pensado pelos simbolistas russos e criticado pelos formalistas seus compatriotas. A sintaxe das imagens forma agrupamentos complexos, ambíguos ou ambivalentes e plurissignificativos (“redes disposicionais” no dizer de António Damásio), que são explorados pelas mais variadas artes e por vários tipos de discurso (filosófico ou teórico, poético, mesmo político). O que de resto era previsível, como lembra Jorge Bacelar: “se a escrita e o desenho são meios de comunicação mental, será na mente onde a poesia e o traço primeiro se encontrarão” [2]. Por direta relação com essa base imagística, instável e mutante não só conforme várias pessoas a vão imaginando mas mesmo dentro de cada uma, a partir dessa base não podemos editar um poema ficando indiferentes ao conjunto da imagem que lhe dá matéria e motivo. Porque as imagens, visuais e sonoras, são-lhe anteriores, não posteriores.

 

Uma vez que a nossa base (de criação e comunicação artísticas) não é uma interpretação do que está escrito mas a partilha de imagens antecedentes, também não faz sentido estarmos a facultar ao leitor, visualmente, o que ele intelectualmente pode ver no poema, tornando a visualidade redundante, ou seja, adormecendo essa parte, fundamental, da receção. De onde nos parecer ridículo todo o mimetismo, que faz por exemplo aparecer passarinhos na tela a voar quando o poema fala em pássaros. Pelo contrário, a visualidade e a sonoridade na apresentação do poema vão beber à mesma fonte e passam, por essa via original, a fazer parte da obra como mais uma interpretação artística do mesmo fundo comum do imaginário.

 

 

2. movimento e vanguarda artística

 

Por este e outros motivos, uma relação especial a considerar é a que nos liga a práticas afins mas imediatamente anteriores à manipulação do movimento na poesia suportada pelo computador. Porque a passagem da poesia escrita ou falada para a digital, informacional, é também a passagem da exposição do poema às modulações do movimento.

 

As práticas imediatamente anteriores são as da poesia concreta, da poesia experimental, da poesia visual. Os autores que lhes deram mais atenção, de maneira geral, passaram a trabalhar criativamente novas formas e fórmulas de edição. Foi o caso, desde os anos 70 (com os vídeo poemas), de E. M. Melo e Castro em Portugal. A maioria deles entra nas novas tecnologias aproveitando-as ao máximo e numa perspetiva multidisciplinar. Na verdade, elas realizam o que nos manifestos concretistas e experimentalistas aparecia a título de profecia ou teoria (que é também uma antevisão).

 

A re-edição da antologia Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos: 1950-1960, com textos dos irmãos Campos e de Décio Pignatari, permite-nos confirmar miudamente que, desde o início, marcou os poetas concretistas a preocupação com o movimento e com recursos que só depois a informática plenamente possibilitaria [3].

 

No caso concreto do movimento, que é o aspeto a perseguir aqui, Augusto de Campos parece ter antevisto a própria ciberpoesia numa frase algo inesperada. Partindo de Webern, ele fala em “uma melodia contínua deslocada de um instrumento para outro, mudando constantemente sua cor” (o que de certo modo se realiza no Bolero de Ravel). Depois fala na “necessidade da representação gráfica em cores”, semioticamente funcionais – o que hoje a informática tornou banal. Para irromper com esta frase de rompante:

 

            mas luminosos, ou filmletras, quem os tivera! [4]

 

Nesse mesmo texto, perseguido pela imagem da obra total, corroborada pelas referências à Gestalt e a todas as artes de vanguarda imediatamente anteriores, Augusto de Campos fala no “corolário primeiro do processo mallarmeano”, que é o da “exigência de uma tipografia funcional, que espelhe com real eficácia as metamorfoses, os fluxos e refluxos do pensamento”. Essa tipografia não podiam encontrá-la, nem Mallarmé no seu tempo, nem Campos naquela altura, porque essa tipografia é o computador atual com programas relativamente recentes.

 

A confirmá-lo, no prefácio a Un coup de dés o poeta francês fala na dispersão dos espaços em branco, indicativos do silêncio, e acrescenta: “o papel intervém cada vez que uma imagem, por si mesma, cessa ou reaparece, aceitando a sucessão de outras”. Hoje é possível levar os leitores a visualizarem o próprio aparecimento, desaparição, transformação e ressurgimento das imagens, letras e palavras na tela, não pela sua dispersão espacial (ou não só por ela), mas pela introdução de sequências temporais, ou de uma “temporalidade interna” [5], na exposição do poema, pela introdução do movimento na textualidade.

 

Os modernistas, embora muitas vezes tenham caído numa discursividade espalhafato­sa, deram também sinais de premonição da necessidade do movi­mento na própria exposição do poema. Dentro do vasto campo semântico da pala­vra modernismo os futuristas italianos ocupam lugar importante, particularmen­te na pintura. Vejamos qual a sua contribuição.

 

Marinetti, que teve por primeiros discípulos quase só pintores, já falava na “beleza da velocidade” em 20 de Fevereiro de 1909, no Manifesto futurista publicado em Le Figaro [6].Ele cultivou esteticamente os mitos do automóvel e do aeroplano. Carlo Carrá, no Manifesto dos pintores futuristas, de 1910, afirma: “o gesto, para nós, já não será um momento congelado do dinamismo universal. Decididamente será a sensação dinâmica e eternizada enquanto tal” [7]. Por oposição aos cubistas, empenhados na captação de múltiplas perspetivas tomadas do espaço, portanto estáticas, Boccioni (“o expoente mais importante do Futurismo” em pintura [8]) “coloca o Futurismo como uma maneira de representar viasualmente a vitalidade interior da matéria física, animada e inanimada, enquanto que o tempo, a luz e os movimentos relativos entre os seres e as coisas, se expressam sempre como movimento no espaço. Por conseguinte, não a forma dos corpos, senão a vida” [9]. No Manifesto técnico da escultura futurista, de 1912, assegura que a sua “construção arquitetónica em espiral” (na escultura) permite ao espetador seguir “o corpo em seus movimentos materiais” [10]. Fortunato Depero e Giacomo Balla, no manifesto Reconstrução futurista do universo, de 11 de Março de 1915, objetivam “formar os conjuntos plásticos que poremos em movimento” [11]. Um exemplo desse por em movimento:

 

 

(Giacomo Balla, Velocidade de um automóvel, 1913)

 

Como nos desenhos animados e no cinema em geral, uma sequência de momentos estáticos, minuciosamente contados, interligada por uma sucessão rápida, dá-nos a sugestão de movimento.

 

Mudando de disciplina, Antonio Sant’Elia, no manifesto Arquitetura futurista, de 1914, rejeita a decoração, desterra os volumes pesados, opondo-lhes “o gosto pelo ligeiro, o prático, o efémero e o veloz”, que também vão caraterizar várias disciplinas da art nouveau e já definiam, com toda a propriedade, a arquitetura precoce de Gaudí.

 

A sensibilidade ao movimento aproximou também os futuristas do cinema, levando-os a publicar, em 1916, o Manifesto do cinema futurista. Compreensivelmente é aí que eles mais se aproximam da poesia animada. Não se trata só da “livre direção das linhas”, nem das “palavras em liberdade” [12]. O cinema futurista seria “pintura, arquitetura, escultura, palavras em liberdade, música de cores, linhas e formas […] amálgama de objetos, realidade caotizada” [13].

 

Toda essa preocupação com uma estética do movimento se realizou em pinturas como as de Carlo Carrá (por ex. Ritmo de objetos, de 1911; Celebração patriótica, de 1914), Luigi Russolo (que foi também compositor; v. por ex. La revuelta e Dinamismo de um carro, ambos os quadros de 1911); Giacomo Balla (por ex: Dinamismo de um cão com corrente e Rapariga que corre para o balcão, ambas de 1912; O voo das andorinhas, de 1913; Tremular de bandeiras, de 1915), Gino Severini (por ex.: A Bailarina azul, de 1912; Bailarina de amarelo, de 1912; Luz+velocidade+ruído / interpenetração simultânea, de 1913; Tramway sur le boulevard, também de 1913 e onde a interpenetração texto-pintura, presente por igual em telas de Carlo Carrá, se torna estruturante; Mar = bailarina, de 1914), Umberto Boccioni (Dinamismo de um corpo humano, 1913-1914; Dinamismo de um futebolista, de 1914), Francesco Cangiullo (Bello. Cartas humanizadas, de 1914 – onde a interpenetração com letras, palavras e frases manuscritas é incontornável), Fortunato Depero (Estudos de desenho gráfico com a palavra «luz»).

 

 

 

 

(Carlo Carrá: Celebração patriótica e Funeral do anarquista Galli)

 

Quando os futuristas queriam escrever um poema enfrentavam porém os mesmos limites da tipografia clássica, do suporte papel, podendo apenas sugerir, através de recursos tipográficos, movimentos que hoje podemos dar a ver tout court – como dizem os franceses. A relação dos poetas futuristas com os concretistas lusófonos não é, porém, só trazida por essa barreira. Em Itália tratou-se de uma ligação direta ao Movimento da Arte Concreta, fundado em Dezembro de 1948 pelo crítico e pintor Gillo Dorfles. Trata-se de um movimento atuante na área da pintura sobretudo, mas que procurava, entre outras coisas, superar as limitações que o quadro impõe à expressão do movimento, o que se torna especialmente visível em algumas das telas de Bruno Munari, também escultor e fotógrafo, e de Luigi Veronesi. Ainda na mesma década (4 anos antes), Carlo Belloli compõe o poema concreto «BimbaBomba», no qual a distribuição das letras no espaço e a sequência fonética posterior procuram dar a imagem dinâmica de uma explosão:

 

 

Fácil é de perceber que a limitação do suporte não permite a simultaneidade da expressão fono-rítmica e da expressão visual, ou fono-visual, apenas sugerida pelas duas metades do poema. Para podermos realizar isso tivemos de esperar mais quatro décadas.

 

Em Portugal, para além da ligação fortíssima entre grafismo e texto promovida por Almada Negreiros, em manifestos e capas de revista sobretudo, Mário de Sá-Carneiro, aparentemente o menos revolucionário dos modernistas portugueses, procurou figurar o movimento das imagens que verbalmente sugeria. Sobretudo em versos que se tornaram famosos, do poema «Manucure» [14]. São aqueles versos que tomam a forma de uma onda quando falam de ondulação (“É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!...”). Tais versos sofriam também do que Augusto de Campos, com oportunidade, chamou “o equívoco de Apollinaire”, que condena “o ideograma poético à mera representação figurativa do tema”. A ocorrência não se deve estranhar. Mário Sá-Carneiro foi também pintor. Amigo e convivente de Santa-Rita Pintor em Paris, toma-o para personagem de A confissão de Lúcio (de 1914). Este último pintor, ainda em Paris, em 1912, concebe e executa um quadro fundamental na sua carreira e cujo título é, por si só, significativo da aproximação ao Futurismo (e eventualmente ao Cubismo): Perspetiva dinâmica de um quarto de acordar. Santa-Rita, ao regressar a Portugal nesse ano, trazia autorização de Marinetti para traduzir o Manifesto de 1909, que não conseguiu publicar. No final desse ano fez sair a revista Portugal futurista, travada à porta da tipografia pelas autoridades sob argumento de conter obscenidades e conter textos subversivos…

 

Passando ao Brasil, 40 e tal anos depois (que em Portugal essa chama apagara-se), num texto publicado originalmente em 1956 Décio Pignatari sublinha a “passagem do verso ao ideograma, do ritmo linear ao ritmo espacio-temporal”, que foi só alcançada em pleno após a introdução do movimento na apresentação do poema, possibilitada pelos recursos informáticos. E aí Pignatari assume que “uma das principais caraterísticas do concretismo é o problema do movimento, estrutura dinâmica, mecânica qualitativa” [15]. Ainda o mesmo autor, no mesmo número da mesma revista, publica um manifesto em que fala na “importância do olho na comunicação mais rápida: desde os anúncios luminosos até às histórias em quadrinhos. a necessidade do movimento. a estrutura dinâmica” [16]. O manifesto acaba com estas palavras (em maiúsculas no original): “poesia concreta: tensão de palavras-coisas no espaço-tempo” [17].

 

A introdução do movimento transforma ainda as palavras, os próprios poemas, em objetos virtuais [18], como veremos abaixo. E responde à aceleração do ritmo de leitura, que tanto preocupou os concretistas (veja-se, por ex., a citação acima de Pignatari e esta outra de Haroldo de Campos na mesma ocasião: “a POESIA CONCRETA é a linguagem adequada à mente criativa / contemporânea / permite a comunicação em seu grau + rápido” [19]).

 

Muitos outros exemplos podia citar, mas acho estes suficientes para mostrar que a poesia concreta paulista, com suas preocupações, antecipava as criações cibernéticas atuais, como se chamasse por elas e, por seu turno, assumia uma herança vanguardista que tinha pelo menos meio século. Falei quase só de manifestos e de pinturas. Devemos juntá-los a obras contemporâneas, por exemplo as já muito citadas de Queneau, em França, e dos irmãos Campos e Décio Pignatari no Brasil, nos anos 50 e 60.

 

Dos poetas consagrados nos anteriores circuitos editoriais o que vemos habitualmente é o que já referi: a transcrição, para o visor, daquilo que encontramos nas páginas dos livros. Uma transcrição morta, passiva, feita sem nenhuma criatividade, sem consciência consequente da globalidade da obra. Há quando muito algum enfeite gráfico, visual, como bonecos de plástico num bolo, ou duplicações pretensamente fiéis do que está escrito, retratos de certificação como nos cartões de identidade. Por vezes imitam-se mesmo as páginas impressas, folhas de cadernos, eventualmente com algumas imagens de fundo para alindar a tela ridiculamente, mais nada.

 

A reprodução mecânica do poema na tela do computador deriva, em parte, de a colocação dos poemas não ser imaginada, mas apenas encomendada a um técnico do qual não se espera nada mais do que a transparência mítica dos vidros ou dos contabilistas. Um preconceito mais antigo leva-nos a pensar que a técnica é neutra, daí que nem todos estejam preparados para considerar o programador informático como um dos autores dos poemas cibernéticos.

 

Por isso é que a ponte entre a literatura anterior e a atual é a do concretismo, da poesia visual, da poesia sonora, recuando mais no tempo, dos efeitos gráficos explorados pelos poetas barrocos e, sobretudo, a partir do Modernismo.

 

 

3. movimento na poesia

 

Como acabamos de ver, apesar de podermos dizer que “a poesia concreta apresenta, como uma das suas caraterísticas mais distintivas, a sua atenção ao formato visual do texto” [20], os concretistas brasileiros foram, desde o início, bem sensíveis à “necessidade do movimento” [21]. Mas só depois dos avanços da poesia computacional se tornou possível vermos as próprias letras e palavras movimentando-se na tela, criando uma instabilidade que atinge mortalmente a noção tradicional de verso, de frase e de linearidade. Um poema passa a ser vários, alternando-se na mesma tela em função das deslocações das palavras e letras e dos comandos oferecidos ao recetor.

 

O movimento era já sugerido, violando a fixidez da impressão gráfica, ao se furar a sintaxe verbal e regular o texto por uma nova sintaxe, de obediência espacial, que nos obrigava a imaginar a deslocação de letras ou palavras para constituir e reconstituir palavras, ou frases, ou simplesmente novas unidades rítmicas. Mas a movimentação de imagens – que é o princípio da arte na filologia bergsoniana – e dos próprios signos que as veiculam verbalmente, concretiza-se hoje nos écrans dos computadores. Aquilo que antes apenas imaginávamos é agora visivelmente realizado.

 

O leitor mais atento vai dizer, com razão, que estou a falar de muitas coisas ao mesmo tempo e que esta noção nova de movimento precisa de ser aclarada. Acho que sim, a maioria dos textos que leio sobre estes assuntos, com mais ou menos notas e referências bibliográficas, fala de tudo isto com muita pressa, não ficam bem definidos os conceitos, nem fica bem descrita a concretização a que se reporta cada um. O leitor interessado poderá ler, para melhor orientação, o já citado livro de Jorge Luiz Antonio onde se faz uma enumeração e clarificação de termos e de conceitos relativos à poesia feita por computador. E depois retorne.

 

Entretanto aqui me interessa particularmente a relação triádica poesia – movimento – informática. Por isso, antes de avançarmos é bom termos uma ideia precisa do movimento a que me reporto.

 

A movimentação das imagens, até aos nossos dias, era sugerida principalmente pelo ritmo poético. Fernando Pessoa, com o interseccionismo, explorou uma segunda via, inspirado quem sabe nas experiências feitas por pintores como Braque (p. ex. Homem com uma guitarra, de 1911; Homem com violino, de 1912; O emigrante, 1911-1912) e Duchamps (Nu descend en escalier, de 1914) e dos futuristas italianos já referidos.

 

 

Mas a técnica dominante até aí, para sugerir o movimento nos poemas, era a da composição musical do verso. Que trazia consigo uma sólida fixação da sintaxe, logo de sentidos por ela possibilitados, numa redução, ou resolução prévia, das ambivalências e ambiguidades, quase sempre pelo recurso à ironia (que ‘tira o tapete’ ao significado explícito em nome de um segundo significado e, por aí, desambiguiza a frase – o segundo é que vale, passando portanto a ser o único, o verdadeiro).

 

Talvez isso venha das origens da poesia, enraizada na oralidade, em sociedades em que a transmissão do poema consagrava um poeta e um cânone (ideológico e estético) possíveis apenas porque havia essa redução de significados. Aí começa o poeta por ser “a voz do povo”, o intérprete da nação, do grupo, da ordem. Entre os poetas se entroniza o respetivo príncipe, o oficial, homenageado e alimentado pela comunidade pelo valor estético, é certo, mas igualmente pela transparência com que retratava uma forma de pensar e agir que não podia ser posta em causa. O melhor veículo para tal expressão era o verso mimético, ritmado, cantado e declamado. A sociedade real era a das pequenas comunidades, predominantemente rurais, onde a autoridade vinha da antiguidade, firmeza e habilidade demonstradas ao longo da vida no exercício do poder e na gestão familiar, económica, das relações sociais. Hoje, porém, vivemos em sociedades essencialmente urbanas, agitadas, híbridas ou multiculturais conforme os casos, onde o exercício do poder é tendencialmente vigiado e nas quais a transmissão da poesia se faz num contexto e sobre suportes completamente inesperados para as pequenas comunidades rurais. A “voz do povo” tentou ser ainda a “voz da Humanidade”, mas não dá já para cantar essa cantiga, dada a diversidade intrínseca das nossas sociedades e a ausência até de contextos, meios e canais consensualmente apropriados para divulgar poemas miméticos e melódicos que se tornem consensuais para todos. As canções da chamada “música ligeira” ou “música popular” absorvem, parcialmente, as sobras desse tipo de lírica e por isso muitos intelectuais ou académicos caem na tentação de ver aí a tábua de salvação, chamando poesia às letras das músicas e reverenciando-as como grandes obras literárias. Mas o caso é que também a poesia, sem dispensar todas as pontes, não precisa hoje disso para resolver o problema do movimento, que Augusto de Campos dizia ser o maior problema da poesia concreta.

 

O movimento hoje, na poesia animada e nas complexas comunidades urbanas em que vivemos, não é mais desse tipo. Faz mais lembrar imagens de fractais (reprodução aleatória, potencialmente infinita, da mesma estrutura básica transformando-se em estrutura complexa [22]) e teorias do caos e das cordas, em que o mundo se pode visualizar como uma espécie de orquestra imprevisível de vibrações simultâneas e diversas, mesmo alheias (pelo menos aparentemente). A coincidência da nossa com outra voz é apenas um acaso momentâneo de que não precisamos para assegurar a adesão e a comunicação. O apropriado é mesmo construir o poema de tal forma que antecipe uma receção criativa, dinâmica e ergódica, sem grandes preocupações com identificações coletivas, porque elas podem projetar-se também por via da leitura criativa. A adesão do leitor virá daí principalmente e não de ver escrito, ou de escutar, aquilo que pensa. Ao contrário do movimento sugerido pelo ritmo do verso e da estrofe, introduzimos o movimento no próprio corpo do poema, não deixando de usar ironias, mas aumentando as ambivalências semânticas e acrescentando-lhes ambivalências que, à falta de outro termo, chamaria sígnicas: o próprio signo pode simultaneamente ser outro e ser o mesmo, conforme as letras se desorganizam e reorganizam no espaço de exposição, conforme, por sua vez, o leitor vai manipulando os comandos de que dispõe. E o que mais me interessa neste momento, como teórico da literatura e como poeta, é precisamente esse movimento que torna o signo instável, efémero, mutante em grau e natureza, que o leitor apropria na medida em que manipula. Explico-me.

 

 

4. tipos de relação ergódica entre movimento, informática e poesia

 

A consciência poética do movimento possui vários graus. No grau menos interativo e, sobretudo, em que a introdução do movimento é menos produtiva, as palavras e outros elementos da apresentação deslocam-se (ou só se deslocam os outros elementos) mas o corpo do texto mantém-se o mesmo. Há muitos exemplos disso. Alguns deles podem ser colhidos a partir das ligações do sítio ócio criativo.

 

Para meu propósito basta ver as quatro peças de Clemente Padín aí colocadas.

 

O autor é um nome conhecido nos meios da poesia visual e da ‘mail-art’. O seu trabalho começa antes de se vulgarizar o uso de meios informáticos para composição poética. É talvez desse tempo (será pelo menos das práticas desse tempo) a obra «pancircular», consultável em http://www.ociocriativo.com.br/poesiadigital/poesias/clemente2.htm. Trata-se de um jogo gráfico muito caraterístico no qual, pela distribuição das duas palavras no espaço, a mesma letra serve de [N] para a palavra [PAN] e de [Z] para a palavra [PAZ]. Por esse elo, pão e paz passam a ser palavras irmãs, indissociáveis, solidárias – e um programa político se insinua. Na eventual passagem ao espaço em rede e ao computador, que é o que nos vai reter, o que mudou foi a exposição: em espiral, aparece gradualmente a imagem passando de um plano muito próximo para outro mais distanciado. Quando se atinge o tamanho e a disposição que nos lembram uma eventual página original, a apresentação termina. Aí estamos quase num nível zero: há movimento mas o movimento não tem funcionalidade semiótica nenhuma nem é intrínseco ao texto. Ele, por exemplo, não desloca a letra [N] de maneira a que se transforme em [Z], o que dispensaria o artifício gráfico da página original.

 

A segunda peça chama-se «Quadrado» e está disponível em http://www.ociocriativo.com.br/poesiadigital/poesias/clemente1.htm. Vai agregando letras oriundas dos vários pontos cardeais de um quadrado imaginário (não marcado graficamente por nenhuma linha prévia) e as letras, que formam a palavra [quadrado], vão-se agrupando duas a duas de maneira a nos sugerirem a visão de um quadrado. Aqui temos um avanço, na medida em que a introdução do movimento nos leva a assistirmos ao filme da formação de uma imagem de quadrado, mas o texto e o desenho espacial do texto em nada beneficiam ou se modificam por isso. Continuamos a ter apenas uma palavra [cuadrado], só acrescentada semanticamente pela sua divisão em quatro ‘cantos’ [cu-ad-ra-do].

 

A terceira peça (esta ordem é minha) intitula-se «Viento» e o movimento ali imita o vento enquanto vai expondo, de maneira não muito clara nem muito lenta, um provérbio: “a las palabras se las lleva el viento”. A peça está consultável em http://www.ociocriativo.com.br/poesiadigital/poesias/clemente4.htm. A introdução do movimento comete, pois, o pecado de Apollinaire, reduzindo o movimento a mera reprodução figurativa e passiva do vento, um dos semas e uma isotopia da frase. Mas interpreta, ainda assim, graficamente o vento.

 

Onde a introdução do movimento se prende com aquilo que me interessa é na peça «solitário2» (http://www.ociocriativo.com.br/poesiadigital/poesias/clemente3.htm). O número [2] refere-se, provavelmente, à própria sequência que, por um movimento graficamente muito bem desenhado, substitui o [t] de [solitário] por um [d]. No papel teríamos uma sequência do tipo

 

solitário

solidário

 

– fixa, portanto, que não diz exatamente o mesmo. Uma sequência do tipo da de PAN/PAZ acima citada. Na tela o signo torna-se instável e sonoriza-se e, se o poeta houvesse optado por um ciclo repetido, um movimento cíclico, teríamos uma instabilidade sígnica permanente, com a palavra sendo, no mesmo espaço, solitário e solidário.

 

Experiências como esta parecem, no entanto, estar ainda presas aos limites da página e da tipografia. É possível, na escrita gráfica, fácil até, criar ambiguidade ou ambivalência com uma letra que se faz coincidir com duas palavras ou três. A arte dessa coincidência é pelo menos tão antiga quanto as ‘palavras cruzadas’. Mas o suporte papel não permite ir mais além, por exemplo inserir essa ambivalência na exposição do texto. Porém, o mesmo que Padín fez aí com uma letra se pode fazer com palavras, frases, versos e poemas inteiros – se versos ainda podemos intitular as pequenas unidades verbais, pequenos mantras que nos assaltam com seu insight e em que a poesia cibernética é pródiga, reaproximando-nos do provérbio. As palavras, as frases, os versos, os mantras, em muitos poemas virtuais, aparecem e desaparecem constantemente, seja sob o controlo de uma programação prévia, seja sob ordens emitidas pelo recetor ao manipular os comandos – como é o caso dos textos de, por exemplo, Daniela Calisi.

 

Será nesse ponto que se atingirá definitivamente a estabilidade textual do poema fazendo implodir a última placa da estrutura triádica habitual (autor-texto-leitor).

Com efeito, o leitor sempre pôde ser tido como vário, sem unidade fixa. Também o autor, sobretudo após o advento das novas tecnologias, vai vendo a sua aura de profeta único e absoluto substituída por uma noção que diversifica e faz implodir o conceito. Hoje o autor escreve o texto, desenha a página, desenha o programa, a trilha sonora da apresentação, é portanto escritor, designer, programador informático e músico [23]. Isto se não partir para uma performance em que será também ator. Ora, dificilmente o mesmo autor executa essas várias funções criativas. O poema passa, portanto, a ser uma obra coletiva, de que o próprio leitor pode participar se o programador quiser [24]. A participação do leitor e a introdução do movimento e da mutabilidade no interior do texto farão com que esse último pilar também deixe de ser único e fixo. Pode haver uma estrutura informática profunda (um hipertexto) mas haverá várias estruturas, não ainda de receção, de apresentação (texton e scriptons no vocabulário de Espen J. Aarseth [25]). O texto já não é, propriamente, um texto, mas um conjunto de possibilidades textuais apercebido variamente por cada recetor, ou seja, desmultiplicando-se em um texto para cada recetor.

 

Uso como exemplo do que estou a dizer o poema «Xylo», do britânico Peter Howard, designer de telecomunicações, performer e info-poeta. A obra é datada de Dezembro de 2001. Mais informações sobre autor e obra podem ser obtidas a partir do endereço http://www.hphoward.demon.co.uk/poetry/petepoet.htm e o poema pode ser visto em http://www.wordcircuits.com/.  

Posso resumir aqui a peça, mas é necessário que o leitor vá mesmo a esse endereço e veja o poema. Na tela de apresentação vão surgindo primeiro várias palavras e uma mira que se desloca, depois aparecem frases, versos, as palavras entretanto aparecem e desaparecem cada vez mais rápido e em maior número, de maneira que cada leitor abarcará tão-somente parcelas do conjunto. As frases e versos começam também a desaparecer e, no final, vai desaparecendo tudo (com uma frase de aviso a meio), inclusive a mira, ficando a tela em branco e finalmente fechando-se a própria página.

 

A avalanche de mensagens a que somos diariamente submetidos fica assim iconizada momentaneamente. Como sucede no quotidiano, a instabilidade e simultaneidade textual é tanta que não percebemos uma estrutura fixa de conjunto, apenas uma sobreposição de mensagens e palavras atiradas aos nossos olhos (e ouvidos), de que recolhemos algumas memórias para as juntarmos tentando encontrar sentidos e orientações. O texto é, ali, à mesma texto, entrelaçamento de sentidos, frases e palavras, mas o ritmo é o ritmo da apresentação, não o da sintaxe ou da métrica tradicionais. Para além disso não temos um texto, só virtualmente, porque a nossa perceção vai alcançar uma parcela de cada vez e porque o texto não está fixo, muda constantemente, portanto a sua própria estrutura é instável e mutante, razão porque Daniela Calisi chama aos seus poemas “textos mutantes”. O mais parecido com a conceituação clássica da palavra texto, que implica uma estrutura fixa gerando várias estruturas de receção, está por assim dizer escondido num nível diferente, o do hipertexto ou da programação. Por isso também, sem considerarmos o hipertexto não conseguimos alcançar o conjunto do poema, incluindo a sua possível significação. O significado virá, pois, tanto das palavras visualizadas e retidas na memória quanto da programação da sua apresentação, da estrutura dessa programação. Virá, por exemplo, de respostas a perguntas como estas: porque é que a apresentação é feita assim? Porque é que as palavras aceleram tanto e desaparecem e se substituem vertiginosamente como se o autor não estivesse preocupado com o facto de as lermos? Porque é que, enfim, o texto não é fixo, permanente, perene?

 

 

Benguela, Janeiro de 2010.

 

 

Notas

 

[1] Para os leitores angolanos a teoria respetiva está resumida no meu livro Teoria da Literatura: criatividade e estrutura. Luanda: Kilombelombe, 2007, que pode ser pedido ao editor ou a mim (fmasoares@hotmail.com). Em Portugal comecei por examinar e aprofundar essa teoria em A autobiografia lírica de «M. António»: uma estética e uma ética da crioulidade angolana. Pref. José Carlos Venâncio. Évora: Pendor, 1996, cp. I. Abordei-a ainda em Comparação e criação: uma perspetiva multidisciplinar. Episteme: revista multidisciplinar. Lisboa: UTL. 5-6:2 (2000), 103-118. Os leitores brasileiros poderão ler algo sobre o mesmo assunto nas atas do ENCONTRO DE PROFESSORES DE LITERATURAS AFRICANAS, 3, Rio de Janeiro, 2007. Este último texto está disponível em linha em http://www.adelinotorres.com/literatura e no CD-Rom das Atas: Francisco Soares – Criatividade poética e imagem. Pensando África: III encontro de professores de literaturas africanas. Rio de Janeiro: UFRJ;FBN;UFF;Leo Christiano, 2008. ISBN: 978 85 85020 76 7. 

[2] Poesia visual [em linha]. Covilhã: UBI, 2001. [consulta 05-02-2002]. Disponível em  http://www.bocc.ubi.pt/pag/bacelar-jorge-poesia-visual.pdf.

[3] Cótia: Ateliê ed., 2006. Note-se que, segundo a pesquisa realizada por Jorge Luiz Antonio, o primeiro poema computacional data de 1959. Porém ele se aproximava do que depois se veio chamar ‘motor textual’, portanto, não manipulava a variável movimento. A manipulação do movimento pela poesia computacional é posterior, como se percebe pela cronologia organizada pelo próprio Jorge Luiz Antonio (Poéticas eletrónicas: negociações com os processos digitais. São Paulo;Belo Horizonte: FAPESP;Autor;Veredas & Cenários, 2008.). Sobre os primórdios da ciberpoesia leia-se também o artigo de Giovanna di Rosario For an Aesthetic of Digital Poetry. RiLUnE. U.E. 5 (2006), 50.

[4] Tudo vem no início de «poetamenos», texto de introdução à série homónima, escrita em janeiro-julho de 1953 e publicada em noigrandes. São Paulo. 2 (Fev. 1955).

[5] Giovanna di Rosario - For an aesthetic of digital poetry. RiLUnE. U.E. 5 (2006) 51.

[6] Futurismo. Red. Julia Echeverri, trad. Celina Zavala Colautti. Milão: Skira, 2008. p. 7.

[7] In Futurismo, p. 17.

[8] Segundo Echeverri - Futurismo, p. 20.

[9] Echeverri - Futurismo, p. 20.

[10] In Futurismo, pp. 20-21.

[11] In Futurismo, p. 24.

[12] Citações feitas por Augusto de Campos na introdução citada atrás (nota 4). Apud Augusto de Campos [et alii], Teoria da poesia concreta…

[13] In Futurismo, p. 28.

[14] Publicado em Orpheu. Lisboa. 1 (1915), apud Orfeu [fac-simile]. Lisboa: Contexto, 1994. p. 83.

[15] ad – arquitetura e decoração. São Paulo. 20 (Nov-Dez 1956). Apud Augusto de Campos [et.al.] – Teoria da poesia concreta…

[16] Apud Augusto de Campos [et.al.] – Teoria da poesia concreta…, p. 68.

[17] Apud Augusto de Campos [et.al.] – Teoria da poesia concreta… p. 69.

[18] V. o manifesto de Haroldo de Campos na mesma revista (Apud Augusto de Campos [et.al.] – Teoria da poesia concreta…, p. 73).

[19] Apud Augusto de Campos [et.al.] – Teoria da poesia concreta…

[20] Jorge Bacelar, Poesia visual, p. 23.

[21] Do manifesto Nova poesia: concreta, de Décio Pignatari, publicado na revista ad: arquitetura e decoração. São Paulo. 20 (Nov-Dez 1956). Apud Apud Augusto de Campos [et.al.] – Teoria da poesia concreta…

[22] Penso, principalmente, ao falar em fractais, nos motores textuais, muito explorados dos fins dos anos 80 aos fins de 90 do século XX.

[23] Exceto a última parte, as outras foram referidas por Jorge Luís António no texto Sobre a poesia digital [em linha]. [cons. 19-07-09]. http://www.arteonline.arq.br/museu/ensaios/ensaiosantigos/jlantonio.htm.

[24] Abordei o assunto em Arte literária, globalização e informática [em linha]. Évora: ACTAE, 2006. [consulta a 13-07-09]. http://www.actae.uevora.pt/.

[25] Cybertext: perspetives on ergodic literature. Londres; Baltimore: John Hopkins Univ. Press, 1997. p. 75.

 

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Francisco Soares, poeta, fotógrafo e crítico literário angolano, nasceu em 1958. Reside atualmente em Benguela. É professor na Universidade de Katyavala Bwila e na Universidade de Évora. Publicou, entre outros títulos, Viriato da Cruz: o homem e o mito (Lisboa; Luanda: Prefácio; Chá de Caxinde, 2009), Teoria da literatura: criatividade e estrutura (Luanda: Kilombelombe, 2007) e Los rumblos del viento. Salamanca (Trilce, 2005).

 

Vejam também poemas visuais do autor.

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