LEZAMA
LIMA E O TEMPO DISSIPADO
Gabriel
Kolyniak
A compreensão da construção da temporalidade no texto literário é ameaçada
a cada vez que a sua análise pressupõe concepções sobre o
tempo que o engaiolam numa forma determinada e determinante
do modo de relação entre signo, sentido e tempo. É que o texto
literário tem a característica singular de gestar seu tempo
em seu próprio ventre e fazer com que processos incompossíveis
convivam num mundo que começa no impossível. Na obra de Lezama
Lima, esta potência é explorada de maneira única; seja na
prosa, na ensaística ou na poesia, o tempo é a dimensão preferencial
de sua atividade de invenção: veja-se, por exemplo, a importância
dos processos de dissolução da linearidade entre fenômeno
sensível, signo e sentido que compõem o conceito de súbito,
amplamente explorado pelo autor para a perseguição de um princípio
estético fundado numa teologia poética.
Este artigo apresenta parcialmente os resultados de minha pesquisa de iniciação
científica, nomeada Aspectos da enunciação e subversões
do tempo em José Lezama Lima: reflexões sobre o conto "O pátio
amorado", para a qual recebi apoio da FAPESP (Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo); o trabalho foi
originalmente orientado pela Profa. Dra. Rosana Paulillo (Depto.
de Lingüística - PUC-SP); após o seu falecimento, a Profa.
Dra. Edilene Matos (Depto. de Arte - PUC-SP) assumiu a orientação.
O trabalho consiste na abordagem do conto "O pátio amorado",
de José Lezama Lima, por meio de um dispositivo de análise
produzido a partir do encontro entre a teoria da enunciação
e a filosofia. Procuro descrever os mecanismos de temporalização
presentes no conto que têm a força de não apenas romper com
o tempo cronológico, mas de fazer emergir uma outra espécie
de temporalidade, desvinculada dos regimes de linearidade
e sentido exigidos por aquele.
O critério de escolha dos teóricos para a produção deste dispositivo explica-se
pela vizinhança que todos eles mantém com a necessidade de
marcar o caráter profundamente deslizante da produção do sentido,
bem como o de atentar para a multiplicidade de relações estabelecidas
entre os homens e o tempo. A análise do sistema poético lezamiano
indicou-nos a possibilidade de uso das obras de Bergson e
de Gilles Deleuze para potencializar o dispositivo de análise,
por meio de uma atividade intelectual na qual filosofia e
lingüística se misturaram e, por vezes, quase se confundiram.
Deste ramo, foram convocados Benveniste, Jacqueline Authier-Revuz,
Dominique Maingueneau e outros teóricos ligados ao campo de
estudos da enunciação. A articulação entre as diversas teorias
tentou ao máximo evitar generalizações, com a pretensão de
apenas montar um dispositivo de análise adequado às exigências
de nosso objeto. Tanto a filosofia quanto a lingüística devem
passar pelo crivo do que é pertinente ao texto literário,
isto é, devem se deixar atravessar por fabulações não-filosóficas
e não-científicas; será este o risco, o abismo e a ascese
mais profundos do campo da análise de texto literário. É exigida
alguma prudência e, numa convivência algo conflituosa, hybris
em demasia para fazer da análise uma invenção de mundo, no
qual admitem-se funcionamentos conceituais decididamente oriundos
de movimentos não conceituais. Queremos com isto dizer que
percorreremos concepções de criação, tempo e enunciação sujeitando-as
à possibilidade singular do campo literário de comportar a
produção de mundos de funcionamentos divergentes; talvez seja
nossa pretensão, talvez nossa forma de prestar homenagem à
Escritura que, como diz Blanchot, é contemporânea da traição
da Lei, de toda lei e mesmo da própria lei.
Será preciso, a princípio, deixar claro o modo de entrada da produção teórica
de Lezama neste trabalho. Seguindo a sinalização de Susana
Cella, em El saber poético, sustentaremos também a
posição de que o sistema poético lezamiano deve ser considerado
como igualmente representado pela sua produção literária e
pela ensaística, o que afirma a insubordinação que essas diferentes
instâncias de trabalho criativo mantém umas em relação às
outras. Não seria preciso opor o ensaio ao poema, mas sim
fazer com que os dois se impliquem numa composição que tende
ao infinito. Por isso, não se pode tomar um ensaio de Lezama
Lima como um testemunho acerca de uma verdade qualquer sobre
sua obra; o ensaio não é atividade de testemunha, de identificador,
mas sim de vidente - da mesma maneira que sua prosa e sua
poesia.
Não foram poucos os críticos que procuraram rastrear o modo de funcionamento
do sistema poético lezamiano. Rubén Rios Avila marca nele
a singularidade da relação entretida entre a metáfora e o
conceito; haveria uma ambigüidade marcada pela oscilação entre
dois pólos: Aristóteles e Pascal. De um lado, o círculo,
a identidade que o mundo encontra no conceito, o qual tende
ao repouso; de outro lado, a elipse, o movimento perpétuo
da metáfora. Avila indica uma oscilação entre as duas formas
como a relação fundante do sistema poético lezamiano, que,
de acordo com a posição do crítico, seria um "flujo indetenible
de metáforas y conceptos, de metáforas conceptualizadas o
de conceptos metaforizados, donde el movimiento y el reposo
subsisten el uno sobre el otro".
A imagem teria, entre os dois pólos, uma processualidade que resiste
a qualquer sentido, oferecido seja pelo gesto analítico, seja
pelo gesto metafórico. Para Avila, ela seria
la expresión más elocuente de la pluralidad que define
todo lenguaje. Si la modernidad encuentra en la metáfora la
estructura para una epistemología nueva, para Lezama la imagen
abarca no sólo la metáfora, sino también el concepto. La imagen
es la estructura que define a la metáfora como una voluntad
de concepto y al concepto como una ficción de la metáfora.
La imagen es el tejido del simulacro que hace posible el sentido
A definição de imagem como agente e como estrutura liga-se
diretamente à sua conceituação como um absoluto. Não é a imagem
"de" alguma coisa, mas sim a imagem como um absoluto. Josely
Vianna Baptista, no posfácio ao volume de contos de Lezama Lima
traduzidos por ela, adverte o leitor sobre
... o caráter indomável com que nele [no texto de Lezama Lima] irrompe
a imagem, e como a esta imagem se sobrepõe outra e
outra e outra ainda, numa disritmia em que a frase sufoca
e se contorce pela distribuição anárquica da pontuação, pela
proliferação de adjetivos, a acumulação hiperbólica de figuras
se estendendo em orações subordinadas que crescem, se dobram
e desdobram terminando em abismo onde fulge - num átimo -
o rastro do percurso: somos então tomados pela reverberação
da idéia e a sensação da presença quase física da imagem.
A divergência entre as formas do tempo no desenvolvimento da imagem
(a exemplo da última frase do parágrafo §1) torna sensível a
condição da imagem como matéria-tempo; o incondicionado poético
de Lezama atinge a própria estrutura temporal, que passa a remeter
ao mundo como imensa imagem; nesse mundo, a imaginação é o princípio
organizatório e a memória ontológica se constitui como processualidade
fundamental, como o próprio devir.
O continuum da obra de Lezama seria, considerando-se esta exigência,
uma continuidade da dobra, quer dizer, a sua tendência ao infinito.
Isto porque não se tenta capturar um objeto, mas a própria
variação das imagens torna-se objeto. A obra não encerra uma
forma, tampouco descreve um estado finito da variação infinita
que constitui a imagem como estrutura e agente da oscilação
entre o círculo e a elipse. Esta característica singulariza-se
no sistema poético lezamiano pela forma como é tratado um tipo
de saber próprio da poesia. Não é pela negação ou reificação
do conceito ou da metáfora que se encontra este modo de conhecimento
poético; é antes exigida uma reversão da ordem epistemológica
que distribui os alcances do conceito e da metáfora em relação
ao real. Isso se deve a diversos fatores. Em primeiro lugar,
Como en Dante, para Lezama la actividad poética restituye
la pureza paradisíaca que las lenguas humanas perdieron con
el Pecado. La lengua original, que se deriva de la primera
respuesta de Adán a Dios, tenía una relación natural y necesaria
entre el signo y el sentido y entre el hablante e el oyente
... Lezama nombra lejania a la ruptura o separación
básica que ocurre en la naturaleza caída, y para tratar de
reparar esa falta, el hombre necesita del poder de la imagen,
que es una especie de suplemento del vacío que deja el pecado.
Entonces el acto de la imaginación es un "artificio" posible
precisamente porque la verdadera naturaleza ya no existe.
Por eso Lezama repite a menudo la frase de Pascal: "Como la
verdadera naturaleza se ha perdido, todo puede ser naturaleza.
O artifício afirma-se como operação primeira da constituição do real, o
que leva a uma ampla reformulação das relações entre as formas
de conhecimento das quais os homens dispõem para manipular a
experiência sensível e as produções de mundo. Se a verdadeira
natureza está perdida para o intelecto, então tudo é permitido:
o mundo é uma questão de invenção. Porém, não deveríamos considerar
que é a anulação da verdadeira natureza que faz com que
tudo seja permitido; como diz Deleuze em relação à liberdade
com que a figura, no barroco, encontrava,
C'est
avec Dieu que tout est permis. Non seulement moralement, puisque
les violences et les infamies trouvent toujours une sainte
justification. Mais esthétiquement, de manière beacoup plus
importante, parce que les Figures divines sont animées d'un
libre travail créateur, d'une fantaisie qui se permet toute
chose.
O êxtase trazido pela manipulação do tecido do simulacro e do sentido,
do qual Avila falava, dessa perspectiva, move a experimentação
dos limites da livre exploração das faculdades do espírito
(memória, imaginação, entendimento, razão etc.), e assim leva o pensamento
e a criação a uma potência que ultrapassa a atividade mimética,
de imitação de um real que lhe permanece alheio. O conceito
e a metáfora tornam-se, nesse modo de pensar, indiscerníveis;
a metáfora não é uma ausência de conceito, da mesma maneira
que o conceito não é uma proteção contra a ameaça da linguagem
conotativa.
Na obra do nosso autor cubano, o conceito de metáfora é trabalhado como
uma operação própria do pensamento poético, e não como um
tropo. Avila evoca, no seu já mencionado texto, uma posição
de Nietzsche exposta no seu texto Sobre verdade e mentira
no sentido extra-moral, no qual o pensador alemão fala
da natureza metafórica da linguagem, e afirma a falibilidade
de qualquer verdade face à Vida, pois a linguagem seria desprovida
da transparência exigida para adequar-se à natureza das coisas.
A instalação de Lezama num campo problemático no qual a metáfora
é levada metodicamente até o limite do incompreensível indica
uma das possíveis respostas a esta barreira imposta pela constituição
da linguagem como modo de expressão da verdade. A acumulação
imagética tende a encontrar um campo de indiscernibilidade
entre os seres, isto é, a dirigir-se à Relação - ou Devir.
A substância poética seria aquela que, no quadro crítico que tentamos compor,
constituir-se-ia como imagem-tempo; ela não tende a se confundir
com a forma, como vimos; esta é sempre marcada por uma multiplicidade
de entradas e de saídas, pelas quais a imagem pode continuar
o seu processo, que tende ao infinito. Não é que haja uma
substância primeira que extravasa os limites da forma e figura
incompleta no texto dados os seus múltiplos aspectos e qualidades;
é que o tempo tornou-se substância. Seria o caso de, acompanhando
Deleuze, dizer que também não é a imagem da temporalidade,
mas antes a imagem-tempo - a imagem, na obra de Lezama, não
é imagem de. O direcionamento do gesto poético ao interstício
de nada valeria se procurasse ali nomear ou recobrir a experiência
com conceitos que acompanham uma suposta verdade das coisas;
a maleabilidade da imagem precisa ser acompanhada por um gesto
criador que assuma para si uma potência do falso.
Qual seria o sentido da constituição de um sistema poético, posto que a
atividade direciona-se às zonas de indiscernibilidade entre
os seres, as quais pressupõem uma falência de qualquer sistema
face à sua constituição em fuga? Para
Avila,
... el sistema sería una especie de fraude, una teología
sin la responsabilidad de la religión, una teología poética,
que es decir una teología de la ausencia.
Face ao que retornamos à incrível proposição de que, com Deus, tudo é possível.
O sistema, portanto, não tem o sentido de um super-organismo
que aprisiona todas as singularidades que passam por ele; ele
é uma "fraude", mas isto deve ser entendido em consonância com
a observação de Pelegrín de que o poeta, no sistema lezamiano,
apresenta-se como um centro regulador e manipulador de tipo
leibniziano. Tal correlação entre Lezama e Leibniz pode ser
compreendida a partir de algumas nuances do conceito de mônada
na formulação do filósofo alemão. Como se sabe, a mônada é representada
por uma casa de dois andares, sem portas nem janelas; a monadologia
parte do princípio de que cada mônada expressa todas as séries
que compõem o mundo, diferindo entre si unicamente porque cada
uma expressa mais claramente diferentes regiões do mundo. Neste
sentido, o sistema
está no alto, girando em torno de si, nada perdendo absolutamente nos compromissos
de baixo, dos quais ele detém o segredo, e tomando, ao contrário,
"o melhor de todos os lados", para aprofundar-se ou fazer
mais uma dobra no compartimento de portas fechadas e de janelas
muradas, compartimento em que Leibniz se encerra, dizendo:
Tudo é "sempre a mesma coisa em vários graus de perfeição".
O sistema leibniziano, a cada vez que é espelhado por uma mônada - uma
perspectiva -, expressa-se de uma outra maneira; tudo não
cessa de diferir da perspectiva do sistema, embora sempre
seja ele o que se expressa. Da mesma maneira que se afirma
a liberdade absoluta detida pelas figuras divinas dada a presença
de Deus, a presença do sistema também libera a mônada de qualquer
essência: é sempre uma maneira da mesma coisa, e não a diferença
entre essências que encontram identidade no conceito. A busca
lezamiana pelo que o autor chamava de um incondicionado
poético parece referir-se precisamente a esta forma de
liberdade das mônadas desvencilhadas de qualquer essencialismo.
A observação de Pelegrín sobre a "rede de irradiações" faz
do poeta um "centro regulador", mas sempre condenado à
ex/centricidade, assim como a elipse
pascaliana.
Esse tipo muito peculiar de sistema, no qual a imaginação ocupa o papel
de um princípio de conhecimento, liga-se diretamente à experiência
flutuante da temporalidade. Num texto especialmente fecundo,
Lezama Lima apresenta diretamente o tipo de traição temporal
que é operada pelo criador. Vejamos:
Nuestras manos y nuestros dedos son muy obstinados
en convertir una sucesión en lo súbito. Decidimos a traer
todas las plantas a nuestro jardín, miramos en torno con el
convencimiento rotundo del bosque, olvidando, como en el ejemplo
mayor, que el bosque no es tan sólo lo que no se ve, sino
lo que no existe: un encatamiento.
O súbito de Lezama Lima é propriamente a convergência impossível
entre imagem, conceito e metáfora, o rebrilho da natureza que
se procurava conhecer depois de uma nova fuga na e da imagem.
Dir-se-ia que o súbito é um dos elementos mais inquietantes
do sistema, pois é nele que a imagem faz-se conhecimento, mas
somente à custa da desaparição da forma. Os tão freqüentemente
evocados versos de abertura de Inimigo Rumor atestam
a forma da desaparição:
Ah, que tú escapes en el instante / en el que ya habías
alcanzado tu definición mejor. / Ah, mi amiga, que tú no querías
creer / las preguntas de esa estrella recién cortada, / que
va mojando sus puntas en otra estrella enemiga. / Ah, si pudiera
ser cierto que a la hora del baño, / cuando en una misma agua discursiva /
se bañan el inmóvil paisaje y los animales más finos: / antílopes,
serpientes de pasos breves, de pasos evaporados, / parecen
entre sueños, sin ansias levantar / los más extensos cabellos
y el agua más recordada. / Ah, mi amiga, si en el puro mármol
de los adioses / hubieras dejado la estatua que nos podía
acompañar, / pues el viento, el viento gracioso, / se extiende
como un gato para dejarse definir.
Se, da perspectiva da nomeação que dá repouso ao devir, a fuga do sentido
representa uma falência ou uma fraqueza da razão face ao mundo,
no sistema poético do qual tentamos nos aproximar ela é o
reencontro paradoxal com a natureza primeva graças ao testemunho
da sua inefável distância. Este é o direcionamento do incondicionado
poético, mas também é o que dá sentido à presença de um "inominado"
no sistema, um "significante ausente disseminado em seriações
de significantes periféricos". Algo deve resistir
à nomeação, à fixação no nome, para que se possa fazer presente
no texto como dado imediato, como presença irresistível e
inominável.
É essa resistência à nomeação que figura como impulso criador; não que
ela o condicione, mas a magnitude de sua ausência no mundo
da nomeação, a sua insistência como algo a ser entrevisto
na falência do gesto analítico, faz dela precisamente o centro
excêntrico da elipse e da curvatura infinita. A elipse como
figura verbal de construção pode ser agregada a esse universo;
trata-se precisamente da omissão de um termo que, face à proliferação
da nomeação obrigatoriamente falível, isto é, de um excesso
de mediação, coloca-se como um zero de sentido, o qual,
paradoxalmente, distribui todo o sentido. Não que tal poética
comece em um non-sense; é que o sentido primevo e infalível
foi abortado em nome de um enigma constante que reverbera
em cada uma das metáforas insolúveis.
Haroche mostra que a compreensão tradicional da elipse (ocultamento de
um significante, isto é, um "dizer-menos") e da incisa (excesso
de dizer, "dizer-mais" do que o necessário para a compreensão
de alguma coisa), ao contrário de se basear num critério puramente
lingüístico, sem relação com o exterior, se apoia na concepção
de sujeito como um ente dotado de unidade e dono de si e,
ao mesmo tempo, numa certa concepção de transparência da linguagem.
Apenas por meio de tais concepções é que poder-se-ia considerar
a elipse e a incisa como figuras formais, sem qualquer relação
com o sujeito e com o universo extra-lingüístico. As rupturas
que estas duas figuras de construção fazem no fio discursivo
poderiam, de outro ponto de vista, mostrar os desvios que
constituem espaços de indeterminação no texto como o momento
em que a presença da subjetividade, cindida e rachada por
excelência, se dá a ver.
Os enunciados que comportam elipses carregam algo de indeterminado, uma
incompletude que os torna ambíguos e os abre para o exterior,
exigindo "une théorie de l'articulation de la grammaire avec
son dehors". Da mesma forma, a
incisa se apresenta como um dizer-mais que sobrecarrega o
fio discursivo, mostrando a presença de um enunciador. As
duas figuras, por criarem uma indeterminação no enunciado,
seja por menos dizer, seja por dizer em excesso, apontam para
o enunciador e para a sua subjetividade, mas também para aos
pressupostos siuados nas formações discursivas.
A autora trabalha em torno dessa idéia, trazendo a voz de diversos outros
pesquisadores, às vezes para refutá-los, às vezes para os
acolher. Causa-nos grande impressão a sua citação de Felman
- "toute promesse promet la complétion de l'incomplétude"
-, a partir da qual a autora formula uma definição bela e
eficaz da elipse: formalmente incompleta, a elipse "promete"
a completude do sentido. A promessa do sentido, como
já afirmado antes, dá à visão a presença de um sujeito heterogêneo
e dotado de incompletude, e, ao mesmo tempo, de uma linguagem
atravessada pela sua exterioridade. Trata-se de um percurso
conceitual que, partindo de fenômenos aparentemente apenas
formais, leva ao questionamento da possibilidade de fechamento
da lingüística sobre o campo do "propriamente lingüístico".
Como Haroche nos mostra, a linguagem não se constitui senão
sobre uma heterogeneidade de sentido fundamental; daí a nossa
recusa a remeter os constantes desvios de Lezama a uma linearidade
da língua, como se fosse possível aprisionar os devires do
sentido numa identidade conceitual.
Suspenderemos, de imediato, a discussão que levávamos até agora para incorrermos
numa deriva conceitual, fincada em Bergson e Deleuze, com
o objetivo de evidenciar algumas noções filosóficas que acompanham
nosso debate. No ensaio "Introdução à metafísica", Bergson
estabiliza algumas proposições que acompanham o movimento
geral da sistematização da noção de intuição - que
constitui a base do método bergsoniano - e apontam para a
posterior definição do conceito de duração. Apresentamos
alguns excertos deste texto:
I.
Há uma realidade exterior e, entretanto,
dada imediatamente a nosso espírito. (...)
II.
Esta realidade é mobilidade. Não existem
coisas feitas, mas somente coisas que se fazem, não
estados que se mantêm, mas tão-somente estados que
mudam. O repouso é sempre apenas aparente, ou melhor, relativo.
A consciência que temos de nossa própria pessoa, em seu contínuo
escoamento, nos introduz no interior de uma realidade segundo
o modelo da qual devemos nos representar em outras. Toda
realidade é, pois, tendência, se conviermos em chamar tendência
uma mudança de direção em estado nascente.
Haveria, pois, uma realidade que é exterior ao sujeito ou ao espírito.
Quanto a isso, não temos maiores comentários; interessa a
sua forma de apresentação ao espírito. Ela é dada imediatamente,
isto é, sem a mediação de qualquer representação. Parando
por aí, Bergson não sustentaria diferenças radicais em relação
a Kant, à medida que a a intuição, na obra do filósofo alemão,
não seria fonte de representações - a representação seria
constituída na síntese das faculdades: "já não temos
necessidade de definir o conhecimento como uma síntese de
representações. É a própria re-presentação que se define como
conhecimento, isto é, como a síntese do que se apresenta."
Todavia, sendo considerada como tendência, a realidade escaparia
face à representação e às formas que fixam um segmento de
um processo. O que se põe como dado imediato não é, portanto,
nenhuma marca que permita reconhecer, mas só a diferença
incessante das coisas com elas mesmas. Vejamos como Bergson
desdobra tal conceituação do real no que tange à percepção:
III. Nosso espírito, que procura pontos de apoio sólidos,
tem como função principal, no curso ordinário da vida, representar-se
estados e coisas. Ele toma, de quando em quando,
aspectos quase instantâneos da mobilidade indivisa do real.
Obtém assim sensações e idéias. Através disto
substitui ao contínuo o descontínuo, à mobilidade a estabilidade,
à tendência em via de mudança os pontos fixos que marcam uma
direção da mudança e da tendência. Esta substituição é necessária
ao senso comum, à linguagem, à vida prática (...). Nossa
inteligência, quando segue sua marcha natural, procede por
percepções sólidas, de um lado, e por concepções estáveis,
de outro. Ela parte do imóvel, e não concebe nem exprime
o movimento senão em função da imobilidade. Ela se instala
em conceitos pré-fabricados, e se esforça por prender, como
numa rede, alguma coisa da realidade que passa. Não é, sem
dúvida, para obter um conhecimento interior e metafísico do
real. É simplesmente para se servir dele, cada conceito (como,
aliás, cada sensação) sendo uma questão prática que
nossa atividade põe à realidade e à qual a realidade responderá,
como convém nesse comércio, por um sim ou por um não. Mas
assim a inteligência deixa escapar do real o que é a sua própria
essência.
Algumas depreensões mais radicais desta concepção da relação entre a inteligência
e o real são tiradas no quarto parágrafo, no qual se afirma
que as dificuldades e confusões produzidas pela metafísica
"vêm principalmente de que nos instalamos no imóvel para surpreender
o movente em sua passagem, em vez de nos colocarmos no movente
para atravessar com ele as posições imóveis".
Justificar-se-ia,
na perspectiva do movente, um outro método filosófico, pertinente
à intuição.
Justamente porque a "marcha natural do pensamento" é o de
não acompanhar a realidade móvel dos processos que compõem
a realidade, "filosofar consiste em reverter a marcha habitual
do trabalho do pensamento".
A leitura do bergsonismo por Gilles Deleuze - que é, em grande
medida, nossa referência para o manejo de alguns dos filósofos
que passam por esta pesquisa -, em grande parte apresentada
em Bergsonismo e nos seus dois livros sobre cinema,
apresenta um Bergson dessemelhante, porém atravessado por
um bergsonismo radical.
No
capítulo "A imagem do pensamento", de Diferença e repetição, Deleuze aborda o problema
dos pressupostos e do começo em Filosofia, em relação ao qual
é proposto o conceito de imagem do pensamento. Afirma o autor que,
mesmo quando certos filósofos supõem encontrar um começo livre
de pressupostos para o pensamento, ainda fazem referência
a uma imagem do pensamento; o cogito,
como começo, é o que Descartes dá como "um conceito filosófico
ao pressuposto do senso comum", pois ele "exprime a unidade
de todas as faculdades no sujeito; exprime, pois, a possibilidade
de todas as faculdades se referirem a uma forma de objeto
que exprime a realidade subjetiva".
Da mesma forma, em Kant, "é a identidade do Eu no Eu penso
que funda a concordância de todas as faculdades e seu acordo
na forma de um objeto suposto como sendo o Mesmo".
É
neste panorama que o bom senso e o senso comum compõem-se como instâncias da imagem
do pensamento,
pois se o senso comum
é a norma de identidade, do ponto de vista do Eu puro e da
forma de objeto qualquer que lhe corresponde, o bom senso
é a norma de partilha, do ponto de vista dos eus empíricos
e dos objetos qualificados como este ou aquele (...). É o
bom senso que determina a contribuição das faculdades em cada
caso, quando o senso comum traz a forma do Mesmo. (...) O
pensamento é suposto como sendo naturalmente reto, porque
ele não é uma faculdade como as outras, mas, referido a um sujeito,
é a unidade de todas as outras faculdades que são apenas seus
modos e que ele orienta sob a forma do Mesmo no modelo da
recognição
Esta
orientação da imagem dogmática do pensamento é semelhante àquela
apresentada por Bergson, pois tenderia a tentar apreender o
real por meio da identidade e da partilha, da unidade e do Mesmo,
os quais se introjetam no pensamento e sustentam a sua "marcha
habitual". A continuidade do texto já citado de Deleuze vem
a afirmar que
tal orientação é deplorável
para a Filosofia, pois o triplo nível suposto de um pensamento
naturalmente reto, de um senso comum natural, de direito,
de uma recognição como modelo transcendental, só pode constituir
um ideal de ortodoxia. A Filosofia não tem mais qualquer meio
de realizar seu projeto, que era o de romper com a doxa. Sem
dúvida, a Filosofia recusa toda doxa particular; sem dúvida,
ela não retém qualquer proposição particular do bom senso
ou do senso comum. Sem dúvida, nada reconhece ela em particular.
Mas, da doxa, ela conserva o essencial, isto é, a forma; do
senso comum, ela conserva o essencial, isto é, o elemento;
e, da recognição, ela conserva o essencial, isto é, o modelo
(concordância das faculdades, fundada no sujeito pensante
tido como universal e se exercendo sobre o objeto qualquer).
Seria
por esta razão que pensar deveria ser algo que, antes de mais
nada, começasse por "uma crítica radical à imagem do pensamento".
Essa célebre formulação deleuziana precisa ser entendida em
relação ao último trecho citado, no qual afirma-se que, mesmo
que o filósofo rejeite a imagem do pensamento no que refere
ao fato, ele não a rejeita em direito. De nada adianta rejeitar
um modo de pensar a partir das verdades que ele supõe se não
é posta em questão, ao mesmo tempo, a necessidade de uma imagem
para o pensamento: um modo de pensar que não procure seu fundamento
pré-filosófico na imagem do pensamento, mas que se constitua
como um pensamento sem imagem.
Trata-se
de uma mesma inclinação: filosofar como um modo de aderir
à perspectiva do movente, e não à dos pontos fixos; na obra
de Deleuze, este princípio bergsoniano desdobrar-se-á, para
além do problema da imagem do pensamento, em diversas dimensões.
Podemos apontar alguns exemplos: em Mil Platôs, uma série
de distinções remete a esta preocupação, como aquela entre
maior e menor (oriunda de outro livro escrito com Guattari,
Kafka: por uma literatura menor), molar e molecular; em Proust
e os signos, na busca de um livre funcionamento das faculdades
face aos signos do tempo redescoberto; em Francis Bacon: logique
de la sensation, na emancipação da Figura e das relações entre
as figuras em relação à representação e à figuração, assim
como no acompanhamento da passagem da figura por uma multiplicidade
de níveis de sensação.
Retomando
o último parágrafo citado de Bergson, vemos uma preocupação
especial com o conceito; parece que a produção do método da
intuição depende em grande medida de uma reavaliação da conduta
do conceito. Essa necessidade advém do caráter movente do
real, do fato de que não há estado de alma, por mais simples
que seja, que não mude a cada instante, pois não há consciência
sem memória, não há continuação de um estado sem adição, ao
sentimento presente, da lembrança de momentos passados. Nisto
consiste a duração. (...) O estado, tomado em si mesmo, está
em perpétuo devir (...)".
Para
o conceito acompanhar o real, num mundo em que a duração define-se
como devir incessante, ele próprio deve estar na mesma condição.
Em outro texto, Bergson afirma que a metafísica, em geral,
utiliza o tipo de referência que se faz ao espaço para se
reportar ao tempo; "quando evocamos o tempo, é o espaço que
responde ao chamado. A metafísica teve de se conformar aos
hábitos de linguagem, os quais se regram pelo senso comum".
Quer dizer, a impotência da metafísica para apreender o tempo
reside no seu alojamento sob a imagem do pensamento, da sua
subordinação senso comum - e ao bom senso.
A
compreensão do movimento como uma sucessão de estados fixos
seria um dos fatores a perturbar a apreensão do tempo pelo
pensamento. Diz Bergson: "objeta-se ao entendimento que entre
esses pontos se passa qualquer coisa? Ele intercala novas
posições, e assim indefinidamente. Ele desvia o olhar da transição.
Se insistimos, ele faz com que a mobilidade, apertada em intervalos
cada vez menores à medida que aumenta o número de posições
consideradas, recue, fuja, desapareça no infinitamente pequeno".
Não é na sucessão de instantes - que nada são senão recortes
de simultaneidades - que se encontra a passagem de um estado
a outro, pois o devir inaugura um ponto de indiscernibilidade
entre os estados. É que a sucessão é pensada em analogia com
a justaposição, quando os processos temporais não obedecem
a coordenadas da mesma ordem que as do espaço.
Em
relação à mudança, diz o filósofo que "o real não são os 'estados',
simples instantâneos tomados por nós, ainda uma vez, ao longo
da mudança; é, ao contrário, o fluxo, é a continuidade da
transição, é a mudança ela mesma".
Neste sentido, a mudança deixa de ser uma dimensão do real
para tornar-se a sua constituição. Em verdade, o conceito
de duração é o que engendra a mudança; ela é "criação contínua,
jorro ininterrupto de novidade". A metafísica só poderia tornar-se
a própria experiência, como quer Bergson, à custa do esvaziamento
das questões que eram unicamente pertinentes aos pressupostos
oriundos da instância pré-filosófica, isto é, da imagem do
pensamento.
Por
exemplo, a distinção entre o possível e o real, considerado
o possível como um dado que será desenvolvido pelo real, descarta
de todo a imprevisibilidade da próxima mudança de direção.
Os inúmeros desencontros e paradoxos desenhados em torno de
tal oposição derivaria, da perspectiva bergsoniana, do fato
de que eles respondem a falsos problemas. São falsos porque
partem do imóvel (de um possível dado de antemão, que descarta
as múltiplas direções que cada mudança instaura) para compreender
o móvel (o real e a sua implicação com a passagem e a conservação
do tempo).
Como
já dissemos, o método da intuição relaciona-se diretamente
com uma exigência de instalação do pensamento no movente,
ou de sua implicação com a duração. A primeira regra deste
método, de acordo com a leitura deleuzeana, é "aplicar a prova
do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, denunciar
os falsos problemas, reconciliar verdade e criação no nível
dos problemas", pois
cometemos o erro de acreditar que o verdadeiro e o falso
concernem somente às soluções, que eles começam somente com
as soluções. Esse preconceito é social (pois a sociedade,
e a linguagem que dela transmite as palavras de ordem, "dão"-nos
problemas totalmente feitos (...), e nos obrigam a "resolvê-los",
deixando-nos uma delgada margem de liberdade). (...) A verdadeira
liberdade está em um poder de decisão, de constituição dos
próprios problemas (...). Mas colocar o problema não é simplesmente
descobrir, é inventar. A descoberta incide sobre o que já
existe, atualmente ou virtualmente (...). A invenção dá o
ser ao que não era, podendo nunca ter vindo.
Já havíamos marcado que o conceito, quando tem como referência o imóvel
para capturar o móvel, tendia ao fracasso ou à crise quando
confrontado com um tempo constituído como criação contínua.
Importa, a esta altura, acompanhar este caráter de invenção
que o conceito necessariamente tem de comportar. A descoberta,
incidindo sobre o que já existe, força um movimento retrospectivo
do tempo, pois considera os estados ulteriores a um zero e
traça uma série de causalidade baseada num sentido produzido
a posteriori dos acontecimentos, enquanto o sentido jamais
deixa de ser contemporâneo do acontecimento. Estamos, neste
ponto, em contato com alguns dos mais importantes desdobramentos
da noção de duração tal qual a entende Bergson.
A duração não seria compreensível somente da perspectiva de um presente
que passa, pois ela é "memória, consciência, liberdade". A relação entre duração
e liberdade já foi rapidamente abordada, no que tange à invenção
de problemas. Esta relação poderia nos entreter por mais tempo,
mas não nos seria imediatamente interessante; deixemos tal
discussão para outra ocasião. Interessa mais a relação entre
duração e memória. Duração é memória porque esta deve ser
entendida não apenas no sentido psicológico, mas também ontológico;
a relação entre o ser/devir e o passado, o presente e o futuro
permaneceria obscura se não fosse a conceituação da memória
como duração, e não como faculdade do espírito.
Com o risco de repetir algumas das marcações anteriores a respeito da duração,
remarquemos as suas características centrais. A duração tem
como caracteres: i) ser una, indivisível; ii) ter um caráter
de criação, o que nos oferece uma perspectiva positiva para
o tempo, à medida que ele cria, ao contrário de apenas destruir;
iii) como decorrência da primeira característica, não admitir
a segmentação em passado-presente-futuro, entendidas como
um passado que já foi presente, um presente que já foi futuro
e em breve será passado, um futuro que será presente e logo
passado. Na realidade, a duração não passa, pois a
matéria que, a princípio, deixaria de existir e desapareceria
no abismo do passado insiste no presente. Ela insiste porque
a própria duração é a memória, que jamais deixa de se expandir
e, ao mesmo tempo, de criar, de engendrar o Novo: a cada momento,
a duração, entendida como memória que num só lance se conserva
e se altera radicalmente, faz deste mundo um outro de si.
Portanto, o presente define-se por passar, mas isto só é possível
porque ele é, ao mesmo tempo, passado e presente. Por outro
lado,
o passado jamais se constituiria, se ele já não tivesse
se constituído inicialmente, ao mesmo tempo em que
foi presente. Há aí como que uma posição fundamental do tempo,
e também o mais profundo paradoxo da memória: o passado é
'contemporâneo' do presente que ele foi. Se o passado
tivesse que aguardar para já não ser, se ele não fosse 'passado
em geral', desde já e agora que se passou, ele jamais poderia
vir a ser o que é, ele jamais seria este passado. Se
ele não se constituísse imediatamente, ele não poderia ser
reconstituído a partir de um presente ulterior. O passado
jamais se constituiria se ele não coexistisse com o presente
do qual ele é o passado.
A coexistência do passado em geral com o presente garante que a
memória inche e se conserve, ao mesmo tempo em que não cessa
de mudar. Diversamente, "o passado é contemporâneo do presente
que ele foi"; isso se exprime nos movimentos da lembrança;
esta não faz do passado em geral um presente, mas exige que
nos instalemos em uma região do passado. Mesmo que todo o
passado coexista na forma de um "passado em geral" e a memória
seja uma instância irredutível à consciência, ele se organiza
em regiões e comporta a produção de passados de um presente;
porém, a coexistência de todos os passados se dá no nível
do virtual, enquanto o processo de evocação deste
passado chama-o desde o virtual até o atual.
O par formado por virtual e atual não é, portanto, uma oposição comparável
àquela entre possível e real. Virtual e atual são ambos
componentes do real. Como uma fórmula
de Proust mencionada por Deleuze, sobre os estados de ressonância:
"reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos". É a exigência da
passagem do presente para o passado e vice-versa; é preciso
que o atual e o virtual sejam considerados como componentes
do real para afirmar duas imagens do tempo, uma fundada no passado, outra no presente. (...) O passado
(...) se manifesta como a coexistência de círculos mais ou
menos dilatados, mais ou menos contraídos, cada um dos quais
contém tudo ao mesmo tempo, e sendo o presente o limite extremo
(o menor circuito que contém todo o passado). Entre o passado
(...) e o presente (...) há, pois, todos os círculos do passado
que constituem tantas outras regiões, jazidas, lençóis estirados
ou retraídos (...). Mas (...) pode o presente valer, por sua
vez, pelo conjunto do tempo? Talvez sim, se conseguirmos destacá-lo
de sua própria atualidade (...). Desta feita, não há mais
futuro, presente e passado sucessivos, segundo a passagem
explícita dos presentes que discernimos. Na bela fórmula de
Santo Agostinho, há um presente do futuro, um presente
do presente, um presente do passado, todos eles implicados
e enrolados no acontecimento, portanto, simultâneos, inexplicáveis.
Do afeto ao tempo: descobrimos um tempo interior ao acontecimento,
que é feito da simultaneidade dos três presentes implicados,
dessas pontas de presente desatualizadas.
É tempo de delinearmos a imagem bergsoniana utilizada para a memória e
para a duração, tal qual esta se exprime na estrutura da memória
e na relação entre as imagens na memória (trata-se, portanto,
de uma imagem virtual do tempo). É o cone invertido a figura
escolhida pelo autor em Matéria e memória. Esquematicamente,
temos o seguinte desenho:
O vértice S representa, virtualmente, o presente - menor
circuito que contém todo o passado -, enquanto o corte AB
secciona uma região de passado como pura virtualidade. Porém,
as imagens-lembrança não circulam apenas por AB, bem
como o presente não passa (pois esta é a sua grande
deifinição) somente em S, pois toda imagem tem de passar por
dois processos, um de virtualização - em direção à
coexistência virtual de todo o passado, seccionado por jazidas,
níveis ou regiões - e outro de atualização de
um passado para um presente. A produção de um
presente dotado de um passado, e não um presente ilimitado
e um passado em geral, depende, desta maneira, dos dois movimentos,
pois o passado que sobrevive, coexistindo virtualmente com
todos os outros, conserva também uma ponta de presente desatualizada,
a qual pode vir a se atualizar num novo processo.
O passado AB coexiste com o presente S, mas comportando
em si todos os pares A'B', A''B'' etc., que medem os graus
de uma aproximação ou de um distanciamento puramente ideais
em relação a S. Cada um desses pares é, ele próprio, virtual,
pertencente ao ser em si do passado. Cada um desses pares,
ou cada um desses níveis, compreende não tais ou quais elementos
do passado, mas sempre a totalidade do passado. Ele simplesmente
compreende essa totalidade em um nível mais ou menos dilatado,
mais ou menos contraído. Eis, portanto, o ponto exato em que
a Memória-contração inscreve-se na Memória-lembrança e, de
algum modo, assegura-lhe a continuidade. Donde, precisamente,
esta conseqüência: a duração bergsoniana define-se, finalmente,
menos pela sucessão do que pela coexistência.
Compreendemos alguma coisa, pois, sobre o papel do virtual na compreensão
do tempo como duração e produção do novo. Manifesta-se na
coexistência dos lençóis de passado; porém, parece
ainda não estar clara a noção de ponta de presente.
Esta deriva não só da coexistência virtual do passado, mas
também do caráter do presente que passa: a ponta de presente
remete a um presente puro, e não à forma pura do passado na
memória. Se esta diz-se nas "alternativas indecidíveis
entre círculos de passado", aquela se apresenta nas "diferenças
inextricáveis entre pontas de presente". É porque cada presente
produz diferença em todo o conjunto do tempo que a
noção de ponta de presente pode subsisitir; é a presença do
tempo no presente, da multiplicidade de perspectivas que entram
em relação a cada lance.
Passemos, pois, à montagem de uma dispositivo analítico para atravessar
o texto de Lezama. Tematizaremos, por ora, o problema do eu
na linguagem, que será capital, na sua relação com a Duração,
para essa invenção. Afirmávamos, anteriormente, ser preciso
procurar também os modos de expressão, na linguagem, da relação
do sujeito com os lençóis de passado e com as pontas de presente
desatualizadas, e não só com passado e presente atualizados.
Para isso, devemos ir além da instauração dos presentes de
enunciação; seria preciso investigar sob que formas estas
dimensões da duração (ou do tempo puro) se fazem presentes
no texto.
A primeira distinção
a que recorreremos para tal investigação remete à obra de
Émile Benveniste, que propôs a separação de dois planos de
enunciação. O problema que move tal reflexão de Benveniste,
apresentada no artigo "As relações de tempo no verbo francês",
é a distinção entre o valor das formas simples e o das compostas
do pretérito em língua francesa. O autor procura mostrar que
a diferença entre os dois pode ser descrita do ponto de vista
de "dois sistemas distintos e complementares", a saber, o da história
e o do discurso.
De acordo com o autor, o plano da história é aquele em que se inscrevem
os fatos quando estes parecem ser narrados por si mesmos,
isto é, sem que o enunciador faça referência a si ou insira
apreciações sobre o próprio dizer. Neste plano, figuram enunciados
que não façam referência ao presente de enunciação e digam
exclusivamente respeito a atos, estados e acontecimentos que
não se desenvolvem nos seus limites espaço-temporais. O plano
do discurso, ao contrário, carrega a marca do seu processo
de produção, e nele o enunciador não hesita em marcar a própria
presença por meio de dêiticos e verbos que fazem referência
ao presente de enunciação.
O passado simples, em francês, seria a forma da narração por excelência;
enquanto isso, o passado composto, ao lado do presente do
indicativo, seria a forma típica do plano do discurso. Tal
opção rejeita a diferenciação entre as duas formas apenas
pelo aspecto verbal, situando-a no eixo da relação entre passado
e presente. Interessa-nos mais, está claro, a distinção entre
os dois planos do que a discussão sobre as formas simples
e compostas dos verbos.
O plano do discurso - que será, de agora em diante, nomeado
de plano do comentário ao invés de discurso,
dados os sentidos que o termo possui na lingüística contemporânea
- é aquele que coincide, como já afirmamos, com a situação
de enunciação. Nos termos de Paulillo, "aí aparecem os dêiticos
marcadores de pessoa (eu-tu) e de ostenção (aqui-agora) e
os enunciados são vazados na forma do presente. O plano da
enunciação caracteriza aqueles discursos que são totalmente
ancorados na situação de enunciação em que se produzem."
O plano do relato - nomeação que utilizaremos para o que Benveniste nomeava
de plano da história - exclui, por sua vez, o presente.
Ancorando-nos novamente em Paulillo,
sem dúvida, o discurso que relata é produzido num ato
de enunciação, mas ele não se põe em relação direta com a
singularidade do ato, nem com o presente empírico que corresponde
ao momento de sua produção. No plano do relato, o tempo do
discurso é alheio à temporalidade da enunciação, pois o discurso
relata acontecimentos passados, anteriores e exteriores à
enunciação em que se produz. Esse deslocamento temporal produz
a possibilidade de um deslocamento global em relação à singularidade
da enunciação, dos sujeitos e da situação de enunciação, que
aparecem nessa forma como alheios ao universo relatado - ocorre
aqui a ausência de dêiticos, ausência de menção ao eu-outro
e ao aqui-e-agora do acontecimento enunciativo. Os sujeitos
do discurso aparecem então, essencialmente, na figura da terceira
pessoa, de um outro que não o enunciador ou o interlocutor.
Utilizaremos, para a análise dos níveis temporais do conto, o modelo de
Benveniste para a divisão em dois planos de enunciação. Verificaremos,
nesta análise, que Lezama, por mais de uma vez, multiplica
o plano do comentário, isto é, instaura mais de um ponto de
vista no presente de enunciação; não é bem que haja dois presentes,
mas, à medida que cada perspectiva traça um caminho diferente
no "passado em geral" para sua atualização, coexistem no mesmo
enunciado dois passados específicos diferentes, embora seu
"presente" pareça ser correspondente. Retomando o esquema
do cone invertido, seria dizer que, num presente S, há diversos
circuitos virtuais (AB, A'B', A''B''...) que fazem coexistir
diversas regiões do passado numa mesma linha, embora ainda
deva haver circuitos psicológicos de imagens-lembrança; porém,
estes correspondem à atualização dos circuitos virtuais AB,
A'B', A''B'', a qual sempre deve se dar no salto para S.
O presente constituído como presente de enunciação, por outro lado, tem
seus limites dados pela duração de uma situação de enunciação.
Da mesma forma, o sujeito é um efeito do próprio ato de enunciação;
se quisermos ser rigorosos em relação a essa questão, verificaremos
que não há um sujeito estável que determina os sentidos de
um enunciado, mas sim um ente de constituição heterogênea,
marcado pela alteridade e pela não-coincidencia, que não cessa
de diferir de si a cada novo movimento de produção de sentido.
Authier-Revuz trata, no artigo "Hétérogéneite(s) Énonciative(s)", das formas
da heterogeneidade mostrada, diferenciada da assim chamada
heterogeneidade constitutiva do discurso. Para evidenciar
a diferença entre os dois conceitos, a autora faz um breve
resumo das bases teóricas mais conhecidas da análise do discurso,
a saber, Bakhtin, Foucault, Althusser e Freud lido por Lacan.
Considerando a centralidade da noção de heterogeneidade
dentro da disciplina mencionada e a importância dos pilares
teóricos citados, o artigo ora em foco se nos apresenta como
um texto de base em relação à nossa posição teórica.
A reflexão de Authier-Revuz pode ser entendida a partir do tipo de fenômeno
que a move: as ressonâncias lingüísticas, no fio do discurso,
da tensão existente na relação entre o sujeito e o seu exterior,
entre o discurso e o interdiscurso. O princípio bakhtiniano
do dialogismo, que afirma a existência de uma dialogização
interna do discurso, é de interesse para tal problemática
à medida que dá suporte à compreensão da produção de sentido
e de discurso como condicionada por uma saturação da linguagem.
Porque cada palavra, expressão ou discurso já foi emitido
por um outro, o sentido é produzido pelo já-dito, de
maneira tal que o centro do discurso é o seu exterior.
A autora evoca, em relação a este tópico, o pensamento de Michel
Foucault e de Althusser. Foucault demonstrara a importância
do interdiscurso para a produção de discurso e de sentido,
bem como apontara a necessidade de o sujeito, ao dizer, produzir
a ilusão de ser o dono do seu próprio discurso. De outra parte,
prosseguindo com a abordagem geral dos diversos teóricos que
lhe dão suporte, Authier-Revuz comenta a leitura lacaniana
da obra de Sigmund Freud, mostrando a relação entre descentramento
do sujeito e inconsciente. Ao que parece, este quadro teórico
encontra relação na idéia de descentramento: do dizer, em
Foucault; do discurso, em Bakhtin; do sujeito, em Lacan...
A constatação do descentramento de todas essas instâncias envolvidas no
universo discursivo faz-se acompanhar da afirmação de uma
heterogeneidade constitutiva de todo o discurso. Não há homogeneidade
em nenhuma das instâncias mencionadas; porém, pode-se considerar
tal heterogeneidade de dois pontos de vista diversos. Por
um lado, podemos conceituar a heterogeneidade ativa em qualquer
enunciação, porquanto o próprio sujeito é heterogêneo. Não
é possível, entretanto, ter "acesso" a essa heterogeneidade
constitutiva em estado puro; ela é, por vezes, indicada pelos
enunciados. Essa indicação é chamada de heterogeneidade mostrada;
porém, a relação entre as duas não é, certamente, de simples
"tradução". Há fenômenos que evidenciam a alteridade e o caráter
heterogêneo do sentido, coisa que pode acontecer por diversas
vias. Trata-se de formas que alteram "a unicidade aparente
da cadeia discursiva, pois elas aí inscrevem o outro (segundo
modalidades diferentes, com ou sem marcas unívocas de ancoragem)".
A autora discorre, na continuidade do artigo, sobre as formas marcadas
da heterogeneidade mostrada, em especial sobre os enunciados
com conotação autonímica. Seja por meio de um comentário meta-lingüístico
sobre um termo ou uma expressão utilizada ("o termo é grosso,
mas..."), seja por meio da avaliação sobre o caráter do próprio
dizer ("sem querer ser grosseiro..."), entre outros casos,
faz-se referência, simultaneamente, ao próprio dizer e ao
olhar de um outro (ou à sua representação).
A reflexão específica sobre as formas marcadas da heterogeneidade mostrada
explicita algumas das operações conceituais que circundam
o conceito de heterogeneidade na sua relação com o
sujeito. Para a continuidade desta discussão, tomaremos os
conceitos de locutor-L e locutor-l, que referem duas
dimensões distintas do locutor, oriundos da produção de Ducrot.
O seu uso nessa pesquisa é calcado na sua apresentação por
Maingueneau, na obra Elementos de lingüística para o texto
literário. A distinção entre locutor-L e locutor-l faz-se como desdobramento
da distinção entre sujeito falante e locutor. Todos estes
níveis de distinção vêm a afirmar a coexistência de múltiplas
instâncias no interior da subjetividade; o eu na/da
linguagem não seria uma produção anterior a estas instâncias,
mas sim uma produção contemporânea da circulação e das divergências
entre elas.
Desmembra-se o eu na linguagem, em primeiro lugar, em duas dimensões;
o sujeito falante corresponde ao "papel de produtor
do enunciado, do indivíduo (ou dos indivíduos) cujo trabalho
físico e mental permitiu produzir esse enunciado", enquanto
o locutor é a "instância que assume a responsabilidade
do ato de linguagem". Como se vê, o critério
da distinção é a responsabilidade - mas responsabilidade sobre
quê? Em qual dimensão do ato de linguagem este eu enconta
aquilo pelo qual é responsável? Já sabemos que o eu,
no dizer, refere o locutor. Como afirma Benveniste em "Da
subjetividade na linguagem", o pronome pessoal eu se
refere
ao ato de discurso individual no qual é pronunciado,
e lhe designa o locutor. É um termo que não pode ser identificado
a não ser dentro do que, noutro passo, chamamos uma instância
de discurso, e que só tem referência atual. A realidade à
qual ele remete é a realidade do discurso. É na instância
de discurso na qual eu designa o locutor que este se
enuncia como sujeito.
Ora, nessa perspectiva, julgar-se-ia que o eu é uma produção que
remete a uma relação de síntese de diversas instâncias no
presente que se põe a cada ato de linguagem, pois estes atos,
para se instaurarem, devem produzir o presente com o qual
se implicam. Só é possível a constituição de um sujeito de
linguagem no dizer, ao mesmo tempo em que a responsabilidade
pelo que se diz e pelos sentidos produzidos pelo dizer recai
sobre o eu contemporâneo à enunciação, isto é, à atualidade,
a ponta de presente atual instaurada pela nomeação de um agora,
claramente distinto de um antes e a espera de um depois.
Este mapa de uma instância subjetiva que toma a responsabilidade pelo sentido
bastaria, se não fosse a presença da memória. A relação entre
as instâncias subjetivas e o tempo não poderia se explicar
pelo seu modo de funcionamento no que se refere às pontas
de presente atuais. A distinção ducrotiana entre locutor-L
e locutor-l insere-se nesta problemática, à medida
que diz respeito a duas dimensões do envolvimento do enunciador
com o seu enunciado; por um lado, a forma-sujeito que é prevista
por uma determinada discursividade ou posição de fala (locutor-L),
à qual o sujeito adere enquanto dura uma situação de enunciação;
por outro, a identificação de uma subjetividade que escapa
aos limites da situação de enunciação (locutor-l), a qual pode ser
referida ou não no fio discursivo.
Fica claro que esta distinção entre locutores aponta para uma cisão da
atividade de referenciação no que toca ao eu. Num mesmo
texto, pode-se fazer referência a duas dimensões específicas
do locutor (como já vimos, o locutor é a dimensão do sujeito
que toma a responsabilidade pelo dizer). Este só "dura" na
atualidade de uma instância discursiva; porém, a responsabilidade
pelo dizer não poderia ser atribuída a um locutor se este
respeitasse unicamente à situação de enunciação. Seria preciso
que algo já tenha começado e tenda para um futuro, isto é,
que aquele locutor tenha um passado e um futuro que o constituam
como vivente no tempo. É dizer: a instauração de um presente
de enunciação e de formas-sujeito não se faz sem que haja
também a produção de um passado específico para os
locutores. O "recheio" de passado que dá espessura ao locutor
depende, portanto, da invocação de imagens-lembrança e da
sua relação com as imagens-percepção, ou, em outros termos,
de um processo de atualização e de virtualização.
A criação do locutor se dá, como vimos, numa relação complexa
entre atual e virtual, sendo que o locutor-L respeita à atualização
de singularidades e relações diferenciais, enquanto o locutor-l, à sua virtualização,
à sua existência como Idéia. Este processo é contínuo,
e a relação entre as duas dimensões, conflituosa. A dimensão
que assume a responsabilidade pelo dizer não o faz senão à
custa de cindir-se; entre essas duas instâncias, as fissuras
do discurso vêm a se instalar; não é propriamente que haja
uma inadequação fundamental entre as duas que as move uma
em direção à outra, mas sim que nelas se expressam processualidades
que não dizem respeito somente ao esforço de identificação
entre as duas, mas sim à criação e à diferença. A instância
de enunciação não viria a se instalar somente pelos processos
que se dão do virtual ao atual - pela atualização -, mas também
por aqueles que direcionam as identidades e os passados específicos
ao passado em geral, o que vem a ser o mesmo que a problematização.
Como Authier-Revuz testemunha, a heterogeneidade do sujeito
é inacessível como tal, e não seria abusivo relacioná-la com
a heterogeneidade ou a multiplicidade que constitui o "passado
em geral".
Diz-se que o aparelho de enunciação, no território da Lingüística, é inabordável
como tal; deve-se buscar as suas marcas no interior do enunciado. Estas podem ser encontradas
tanto em elementos discretos - como no uso de pronomes pessoais
de primeira e segunda pessoas, nos pronomes demonstrativos
exofóricos etc. - quanto no continuum do texto. A enunciação
é, certamente, como diz Benveniste, o processo por meio do
qual o presente é criado, sendo este o tempo de inscrição
dos enunciados, mas, remetendo às nossas últimas considerações,
também envolve outras dimensões do tempo e do sujeito.
Pois bem, se o Autor abdica de produzir semelhança ou procurar identidade
entre as diversas dimensões que o compõem como sujeito, das
distintas faces do locutor e dos processos do tempo que superam
a instauração do presente, eles se nos apresentam perfeitamente
correspondentes ao seu funcionamento implícito em qualquer
enunciação, isto é, como divergentes, não-coincidentes e dessemelhantes.
Se fosse o caso de considerarmos um ser imanente ao
texto, dotado de uma subjetividade cuja unidade validaria
o sentido de uma interpretação que procura as suas marcas,
ele deveria se dizer necessariamente da própria diferença,
não só entre as dimensões, mas também do fundo indiferenciado
que é coetâneo a toda diferenciação, aquilo que difere
na diferença.
Da perspectiva do aparelho formal de enunciação, este reposicionamento
das relações temporais respeita ao que identificaremos, em
diversos segmentos do conto, como uma liberdade que o locutor
se dá para transitar entre diferentes regiões do "passado
em geral", fazendo de cada uma delas um presente de enunciação
sem vínculos lógico-motrícios com um passado que deveria
lhe anteceder e os futuros que poderiam lhe dar continuidade.
O trânsito entre diversas pontas de presente, certamente,
só se dá com a manutenção da exigência de traçar novos circuitos
psicológicos a cada vez; talvez a escritura não possa evitar
tal procedimento, à medida que a sua supressão impossibilitaria
a instalação de um presente de enunciação. Por outro lado,
como a linha de variação da imagem também faz variar o presente
de enunciação e, é claro, o circuito psicológico que o instala,
podemos, nos deslizamentos, atentar para o trânsito entre
os tempos desenvolvidos como passado e presente específicos,
para assim colhermos os cristais de tempo pelos quais a imagem
jorra.
A noção de cristal de tempo foi proposta por Félix Guattari
e aproveitada por Deleuze em Cinema II: A imagem-tempo.
Ela é, como mostraremos, útil para a sistematização dos recursos
estilísticos que detectamos em nossa análise. Detenhamo-nos
em nossas conclusões, pois, para acompanhar o desenvolvimento
deste conceito. O cristal de tempo mantém um forte vínculo
com a distinção entre o virtual e o atual, sobre
a qual havíamos nos detido ao falar das concepções bergsonianas
sobre a Duração. De acordo com Deleuze,
A imagem-cristal, ou a descrição cristalina, tem mesmo duas faces que não
se confundem. É que a confusão entre real e imaginário é um
simples erro de fato, que não afeta a discernibilidade deles:
a confusão só se faz "na cabeça" de alguém. Enquanto a indiscernibilidade
constitui uma ilusão objetiva; ela não suprime a distinção
das duas faces, mas torna impossível designar um papel e outro,
cada face tomando o papel da outra numa relação que temos
de qualificar como pressuposição recíproca, ou de reversibilidade.
Com efeito, não há virtual que não se torne atual em relação
ao atual, com este se tornando virtual sob esta mesma relação:
são um avesso e um direito perfeitamente reversíveis. São
"imagens mútuas", como diz Bachelard, nas quais se efetua
uma troca. A indiscernibilidade do real e do imaginário, ou
do presente e do passado, do atual e do virtual, não se produz
portante, de modo algum, na cabeça ou no espírito, mas é o
caráter objetivo de certas imagens existentes, duplas por
natureza. Então, duas ordens de problema se colocam: uma de
estrutura, outra de gênese. Em primeiro lugar, quais são estas
consolidações de atual e virtual que definem uma estrutura
cristalina (mais num sentido estético geral que num sentido
científico)? E, depois, qual é a operação genética que aparece
nessas estruturas?
Pois bem, a imagem
lezamiana é, na concepção do autor, uma unidade que comporta
múltiplos desenvolvimentos; é de supor que cada forma à qual
a figura adere expresse apenas um ponto de repouso aparente
da linha de variação da imagem. Porém, como isso seria possível
se esta forma não expressasse também as virtualidades que
com ela coexistem? O segmento (§17, 5-9) é um exemplo claro
desta coexistência; o deslocamento imagético da inundação
para o bronze líqüido, com o qual aquela assume deste um certo
modo de ser no tempo, implica que se considere haver, na imagem
emanada da enchente, já alguns dos germes e pontos de entrada
pelos quais o bronze pode fazer sua entrada no cristal e se
deformar de acordo com os pés de Diana ou de uma galga russa.
Não podemos estabelecer a ordem de semelhança entre a água
e o bronze, pois passa-se de um ao outro não por serem semelhantes
como matéria, mas pelo caráter emanado do modo de seu desenvolvimento.
A imagem-cristal
não é o tempo, mas vemos o tempo no cristal. O tempo consiste
nessa cisão, e é ela, é ele que se vê no cristal. ...
A imagem-cristal é certamente o ponto de indiscernibilidade
de duas imagens distintas, a atual e a virtual, enquanto o
que vemos no cristal é o tempo em pessoa, um pouco de tempo
em estado puro, a distinção mesma entre as duas imagens que
não para de se reconstituir. Por isso haverá diferentes estados
do cristal, conforme os atos de sua formação e as figuras
que nele vemos. Analisávamos, antes, os elementos do cristal,
mas ainda não os estados cristalinos; podemos chamar agora
cada um desses estados de cristal de tempo.
É com os
olhos voltados para essa ordem de questões e para estas espécies
de cristalizações temporais que percorremos o texto, procurando
mostrar aquilo que, nele, é ruptura imediata da organização
temporal chamada de cronologia. A importância dos métodos
de seqüenciamento das ações na criação literária é tematizada
desde a Poética de Aristóteles, e boa parte do desenvolvimento
destas noções desde o século XVI até o formalismo russo é
apoiada em alguns dos preceitos mais importantes do pensador
grego.
Do texto de Aristóteles,
é possível marcar que é insinuada a diferença entre dois planos
temporais distintos; um corresponderia ao encadeamento lógico
e necessário da fábula na sua condição de totalidade lógica
das ações simples e complexas que a compõem. A atividade de
seqüenciamento das ações, que é mais propriamente pertinente
à criação literária, dar-se-ia sobre um outro plano, que respeita
mais ou menos os encadeamentos necessários das ações componentes
da fábula; estas são repartidas entre os personagens e é do
seu desenvolvimento que dependeria o efeito da narrativa.
Tal concepção
prevê que a substância do narrado mantém vínculos com um estado
de linearidade das ações, embora a sua organização na exposição
verbal possa ser feita livremente. Todavia, este modo de encarar
a temporalidade no texto literário continua a subordinar o
tempo às relações entre diferentes movimentos, de maneira
que não se chega a desenhar a possibilidade de que a abolição
da verossimilhança recaia sobre o estatuto da verdade,
e não do compromisso mimético. Em outros termos, aceita-se
qualquer forma do tempo no espaço da criação literária, mas
somente à força de identificar o tempo de uma realidade extra-literária
à linearidade lógica, derivada rigorosamente das relações
entre as ações.
Vejamos, pois, uma
amostragem de nossa análise, referente ao primeiro parágrafo
do conto. A tradução que utilizamos, para este exemplo, é
a de Josely Vianna Baptista, editada pela Iluminuras no volume
de contos intitulado Fugados. Eis o parágrafo:
[1] O pano
amorado de uma prolongada tristeza pendia dos longos pátios,
[2] das câmaras arqueadas que formavam o palácio do Bispado.
[3] No centro o grande pátio quadrado parecia inundado de
amistosas sombras desde a morte do Monsenhor. [4] Os passos
frios dos sacerdotes, [5] que pareciam contados por uma eternidade
que se diverte, [6] atravessavam-no como o eco baritonal de
um sermão fúnebre. [7] Sempre fora um palácio melancólico,
[8] não como o são todos os palácios [9] e sim com a melancolia
que antes nos invade que nos possui quando contemplamos um
repuxo de escarcha. [10] Agora era algo mais que um palácio
melancólico,
[11] uma tristeza
forte e invasiva pesava não como uma sombra, [12] mas como
o crepúsculo que vai ardendo seus diminutos címbalos, [13]
suas últimas chamas diante da invasão da chuva persistente.
A orientação descritiva
deste parágrafo situa-nos na imersão em um estado de coisas
que caracteriza o campo afetivo do palácio. Dado este caráter,
prevê-se que a jazida de passado a ser descrita comporta-se
como um presente único e as imagens que o percorrem são dadas
como contemporâneas entre si. Aguçando o olhar sobre este
parágrafo, salta aos olhos, por outro lado, a movência que
as imagens encontram; elas não se deixam fixar pelo presente
que compartilham.
Atente-se para o segmento
(§1, 3). O verbo parecer atribuído ao pátio insere
um ponto de forte indeterminação da relação temporal entre
os termos comparados. Para adentrar na discussão sobre este
enunciado e os processos enunciativos que o produziram, é
conveniente demonstrar a impossibilidade de traçar uma cadeia
dos enunciados dos quais a forma encontrada no conto se depreende
que dê estabilidade ao sentido de (§1, 3). Fique claro que
não se pretende procurar a verdadeira cadeia de enunciados
que esclareceria o sentido próprio de (§1, 3); como já foi
dito, a própria construção desta frase proporciona um completo
esfumaçamento do sentido. Por isso, considera-se arbitrária
cada uma das cadeias apresentadas a seguir, posto elas pretenderem,
cada uma ao seu modo, estabilizar o sentido de enunciados
já indeterminados do ponto de vista da significação e do sentido
por meio de uma progressão que vai do mais indeterminado ao
menos indeterminado; o processo enunciativo em foco parece
ter como princípio um deslizamento de sentido essencial.
Cadeia (a):
- Algo mudou no pátio desde a morte do Monsenhor
- Desde a morte do Monsenhor, parecia haver sombras no centro
do pátio.
- O pátio parecia, em seu centro, estar inundado de amistosas
sombras desde a morte do Monsenhor.
Neste caso, o escopo
de parecer é estar (inundado de sombras). Portanto,
o fato de as sombras figurarem como amistosas não é relevante
do ponto de vista do deslizamento de sentido operado por parecer.
O pátio pareceria inundado de sombras, e poder-se-ia compreender
que o narrador, ao falar de sombras, não se refere ao fenômeno
físico provocado pela obstrução de um feixe de raios luminosos,
mas a sombras como imagens insistentes no espírito dos freqüentadores
do pátio desde a morte do Monsenhor. Ressaltar-se-ia, segundo
esta interpretação, a dimensão da importância que a presença
do bispo tinha para a manutenção de um estado de espírito
relevante unicamente para os que tinham contato afetivo com
o pátio; esta interpretação, como se vê, lida diretamente
com o grau de envolvimento do enunciador com o seu dizer.
Chegar-se-ia ao sentido do algo, significante zero,
suposto na cadeia (a): algo da sensação provocada pela
visão do pátio para um observador cuja memória estivesse tomada
pela recordação do Monsenhor, como é o caso do suposto enunciador
do texto.
Isto conotaria uma
relação entre narrador e o seu relato que ultrapassaria a
mera observação dos fatos por uma voz relativamente
neutra. Entenda-se que neutra aqui se refere à espécie
de relação emocional entre o narrador e o relato. A voz do
narrador de "O pátio amorado" parece, numa tal interpretação,
tomada por uma memória da qual não se revela, no conto, a
motivação. Não se trata da memória pressuposta pelo fato de
o conto ser narrado na primeira pessoa, tampouco de uma memória
expressa em enunciados como jamais me esquecerei, tão
freqüentemente presentes na literatura do século XIX. Acredito estar em
causa uma região não-dita da memória que afeta o dizer
sobre os acontecimentos - uma zona silenciosa que faz pressão
sobre a fala. É evidente que um tal funcionamento, no campo
da literatura, surge unicamente como efeito de sentido:
o narrador parece ser afetado por regiões de não-dito
em sua memória, a qual é apenas suposta pelo leitor para propiciar
certos efeitos de sentido.
Cadeia (b):
1. Algo
mudou no pátio desde a morte do Monsenhor.
2. O centro do pátio
estava tomado por mais sombras do que o usual.
3. Havia tantas sombras
que elas pareciam inundar o centro do pátio.
4. Tais sombras não
eram intimidadoras, como as sombras usualmente são. Eram,
ao contrário, amistosas.
A interpretação feita desta maneira tem grandes diferenças em relação à
estabelecida em (a). Desta vez, toma-se sombras como
a referência a um fenômeno físico, observável por qualquer
pessoa, independentemente do seu envolvimento afetivo com
o pátio. O que compõe a figuração, nesta cadeia, é a qualificação
do pátio como inundado. Em outras palavras, as sombras
figurariam no texto como a descrição de um fenômeno físico,
e a razão do uso de parecer é evidenciada pela não-redundância
entre inundar e sombras. Diferentemente do que
vimos em (a), o uso de parecer se justifica em (b)
por um ruído semântico; a qualificação das sombras como amistosas
também causa ruído, e está incluída no escopo de parecer.
No entanto, a qualificação de qualquer coisa como amistosa
quando este adjetivo não redunda com o substantivo adjetivado
carrega já algo de subjetivo; dizer que alguém foi amistoso
com alguém não necessariamente exprime subjetividade, mas
dizer que uma nuvem, uma árvore, uma pedra ou uma sombra é
amistosa com certeza denota a presença de uma subjetividade
se dizendo. De qualquer maneira, certamente a marca de subjetividade
presente nessa figuração não é da mesma ordem que a encontrada
na cadeia (a), pois não implica necessariamente uma região
silenciosa que se deixa entrever; trata-se de uma ordem de
sensação que não denota maiores proximidades com o narrado.
A diferença entre a cadeia (a) e a cadeia (b) é, dessa maneira,
da ordem do envolvimento entre o enunciador e o seu
próprio dizer, e a relação desse dizer com a memória.
Enfim, tanto na interpretação (a) quanto na interpretação (b),
para além das diferenças em relação à função expressiva da
modalização em "parecer", percebe-se que a sensação causada
sobre o narrador pela visão do pátio se expressa de alguma
maneira, seja na qualificação metafórica das sombras como
amistosas, seja na relação mnemônica do narrador com seu relato
insinuada pelo dizer.
Avancemos nossa análise para o segmento compreendido em (§1,
4-6). Neste trecho, há uma série de figurações. Para facilitar
a demonstração dessa cadeia, utilizamos o seguinte esquema,
de figuração a figuração:
Os passos frios
dos sacerdotes atravessavam o pátio.
1. adjetivação
de passos como frios.
2. Os passos frios
pareciam contados por uma etenidade que se diverte.
3. passos frios atravessavam
o pátio como o eco baritonal de um sermão fúnebre.
Se fosse suposto serem
simples artifícios poéticos as três figurações utilizadas
para os passos, tenderíamos a acreditar que a informação por
eles trazida é de menor importância do que um suposto núcleo
do enunciado. Qual seria este núcleo? Trata-se do pequeno
dito: os passos dos sacerdotes atravessavam o pátio,
tomando passos dos sacerdotes como sinédoque de sacerdotes.
Todavia, logo se vê não ser isto o importante para este enunciado;
importa dizer que os passos dos sacerdotes pareciam ser
frios (figuração que, no texto, não conta com qualquer
termo próprio para estabelecer a comparação, o que configura
metáfora em senso estrito), pareciam ser contados por uma
eternidade que se diverte, e que estes passos
frios dos sacerdotes atravessavam o pátio como o eco baritonal
de um sermão fúnebre. A rigor, do ponto de vista dos planos
de enunciação, há predominância de verbos pertencentes ao
plano do relato. Porém, lidamos com a vontade de mais-dizer
do narrador, o qual, ao mesmo tempo em que parece fazer um
movimento de dar mais precisão ao já dito, esgarça o seu sentido.
Esse mais-dizer, provavelmente, se inscreve no plano do comentário,
à medida que evidencia a presença de um enunciador tomado
de simpatia por seu próprio texto. O excesso simbólico tende,
neste caso, a operar a mesma indeterminação da relação temporal
entretida pelas imagens que verificamos em (§1, 3).
Vale marcar que a presença
deste excesso que tende à indeterminação, tanto em (§1, 3)
quanto em (§1, 4-6), vem a complexificar o presente da instância
de enunciação; a cada nova escolha interpretativa, somos obrigados
a alterar nossa perspectiva e passamos de uma ponta de presente
desatualizada a outra, pois os circuitos psicológicos que
pressupomos em cada série imagética não coincidem entre si.
Já não podemos confiar num presente e num passado atualizados,
à medida que a imagem percorre, numa mesma série, diferentes
circuitos e não cessa de fazer jorrar o tempo em duas direções
diferentes: cada deslizamento de sentido implica um novo processo
de atualização e virtualização.
Acompanhando a série
de enunciados (§1, 10-12), observamos que as imagens comparadas
em como não coincidem entre si no que toca à categoria
do aspecto verbal. O palácio ser algo mais que um palácio
melancólico (§1, 10) se explica por haver uma tristeza
forte e invasiva [que] pesava (§1, 11). É interessante
perceber que uma tristeza forte e invasiva pesava se
relaciona ao ser mais que um palácio melancólico por
meio do pronome indefinido algo. Representar-se-ia
esta relação por meio do seguinte gráfico:
[agora] era algo
mais que um palácio melancólico
algo mais = uma tristeza
forte e invasiva pesava
A presença do pronome
indefinido e do advérbio de tempo conota uma situação de enunciação
na qual o enunciador nos diz: agora havia qualquer coisa
de diferente, alguma coisa havia mudado. Ele não começa
por dizer: isto era novo e, por isso, dizer que o palácio
era apenas melancólico não é o bastante. Com efeito, é introduzida
uma casa vazia - algo -, um signo esvaziado de significado.
Sobre este zero, iniciará por dizer ser este algo mais
o fato de que "uma tristeza forte e invasiva pesava". Porém,
ela não pesava como uma sombra (§1, 11), mas como
o crepúsculo que vai ardendo seus diminutos címbalos, suas últimas
chamas diante da invasão da chuva persistente. Proponho
a seguinte representação para este segmento:
[agora] era algo mais
que um palácio melancólico
algo mais =
uma
tristeza forte e invasiva pesava
(porém) não (pesava) como uma sombra (*pesaria)
(mas sim) como o crepúsculo
que vai ardendo
seus diminutos címbalos
=
suas últimas chamas diante da invasão da chuva persistente
Como se vê, a partir
do momento em que o narrador pretende descrever o algo mais,
a nova qualidade assumida pelo palácio, entra-se num plano puramente
de imagens. Atentemos para as não-redundâncias, para os ruídos semânticos
que se espalham nestes enunciados. Em primeiro lugar, temos
o evidente par [palácio + ser melancólico], os quais pertencem
a topoi diferentes. Porém, rapidamente esta ruptura de
isotopia pode ser "remendada" se o leitor a compreender como
uma expressão da melancolia causada pela visão do palácio, o
que é favorecido pela imagem fornecida em (§1, 9): a melancolia
que antes nos invade que nos possui quando contemplamos um repuxo
de escarcha.
Desta maneira, o ruído
proporcionado pela personificação é perfeitamente anulado pela
leitura, que arrazoa o seu efeito de delírio. Todavia, a partir
do momento no qual o narrador começa a discutir e precisar a
imagem fornecida para o algo mais que ele percebia no
palácio, parece que o terreno se torna mais movediço, o sentido
escapa em meio ao ruído. Em primeiro lugar, diz-se que a tristeza
forte e invasiva pesava. Dizer que um palácio é melancólico
é algo bastante diferente de dizer que uma tristeza é invasiva
e pesa sobre um palácio. Não há ruído quando se diz que uma
tristeza é forte, embora isto possa constituir um problema filosófico.
No entanto, a afirmação de ser esta tristeza "invasiva" põe
em funcionamento uma personificação de outra ordem do que aquela
gerada pelo "palácio melancólico": se lermos "invasivo" como
referente a "invasão", podemos supor que a tristeza que invadia
quem estivesse no palácio o fazia de maneira incontrolável,
a tal ponto que não só o palácio trazia uma sensação de melancolia,
como também essa sensação parecia um ente exterior a qualquer
subjetividade, de tão viva e potente. Se lermos, diversamente,
"invasiva" como "agressiva", que é um dos seus significados
dicionarizados, ela carregará consigo uma espécie de ameaça,
o que se opõe às sombras amistosas de (§1, 3). "A tristeza forte
e invasiva pesava não como uma sombra"; desta maneira, o palácio
passa a se configurar como uma espécie de ambiente dividido
entre as amistosas sombras que inundavam o centro do pátio e
a tristeza forte e invasiva que pesava. De qualquer maneira,
ser invasiva e pesar são atributos que não redundam
com "tristeza", o que os coloca como figuras.
O narrador irá caracterizar
com imagens o modo como a tristeza forte e invasiva pesa.
Novas imagens para precisar as imagens utilizadas para dizer
de uma sensação que se sente num pátio: a tristeza pesava como
o crepúsculo que vai ardendo seus diminutos címbalos, suas últimas
chamas diante da invasão da chuva persistente (§1, 12).
Se, há pouco, falava-se das possibilidades do leitor de arrazoar
o delírio do narrador por meio de algo como "ele quer dizer
que se sentia tristeza no palácio", em (§1, 12) essas possibilidades
parecem menores. Isto porque, além de não haver redundância
entre "sombra" e "pesar", também não há redundância aspectual
entre [sombra + pesar] e [crepúsculo + ir ardendo...]. Por redundância
aspectual entendemos a redundância entre o aspecto e o modo
de processo entre dois termos de uma comparação quando cada
um deles tem valor aspectual separadamente.
Do ponto de vista do
aspecto dado pela conjugação, a comparação feita em: "uma tristeza...pesava
COMO o crepúsculo que vai ardendo..." combina dois verbos com
aspecto cursivo. Em primeira instância, não haveria não-redundância
entre os dois. Porém, se pensarmos em termos semânticos, veremos
que os dois termos da comparação possuem formas divergentes
no que tange ao aspecto, pois pesar não implica fim nem
começo marcados; já ir ardendo seus diminutos címbalos, suas
últimas chamas diante da invasão da chuva persistente
implica um fim próximo. Tendo isto em vista, logo se vê a não-redundância
aspectual como um meio de sutil manipulação do aspecto de pesar.
Como comparar, tendo isto em vista, estas duas imagens?
O elemento inquietante
exprimido por "algo" em (§1, 10) se torna mais claro, ao mesmo
tempo em que, paradoxalmente, o sentido se torna mais obscuro:
a tristeza... pesava... como o crepúsculo que vai ardendo...
suas últimas chamas...diante da invasão da chuva persistente.
Já vimos que se verifica, nesta comparação, uma não-redundância
aspectual; portanto, o ruído por ela gerado afeta a compreensão
da duração de pesar. Esta dificuldade dada pela comparação
entre o que se diz da sombra e o que se diz do crepúsculo
é agravada, ainda, pelos pequenos ruídos dentre a série do
crepúsculo: [crepúsculo + ir ardendo]; [címbalos
+ do crepúsculo] = [chamas + do crepúsculo];
[invasão + da chuva]; [chuva + persistente].
Ao final de uma série
de imagens inter-relacionadas e permeadas por zonas de ruído,
resta um algo cujo sentido ainda está incompleto, por
se fazer e já vindo-a-ser. Poder-se-ia estender o trabalho
de preenchimento de sentido do pronome indefinido até o infinito;
imagem a imagem, o sentido incessantemente tornar-se-ia mais
e mais esfumaçado. Talvez seja mesmo esta a natureza do devir
do sentido; conforme Paulillo, "as formas de saturação pela
determinação (de um nome, de um sintagma) - porque se trata,
aqui também, de uma saturação, a função da determinação -
"uma espécie de X", por exemplo - no que respeita à
não coincidência mot/chose, é mostrar que X, por si
só, não garante a adequação; assim, a determinação incide
sobre X para melhor circunscrever o sentido, para obter a
adequação. No entanto, as formas de determinação produzem
um efeito inverso, isto é, ao invés de precisar, "esfumaçam"
o sentido de X, projetando para um "além" discursivo,
para um "depois", o encontro desse sentido preciso.
Nesse sentido, há saturação em relação a um vir-a-ser do sentido"
(Paulillo, 2004: 165).
Como procuramos mostrar
em nossa deriva teórica e nesta amostragem da análise, no
sistema poético de Lezama, as relações lógicas e motrícias
entre os corpos são constantemente ignoradas, pois o material
da escritura é a imagem que emana dos corpos e das culturas;
ela não estabelecem nenhuma relação com uma verdade objetiva
que as anteceda; antes, o seu desenvolvimento não-linear (ou
numa linha vertiginosa) é contemporâneo das produções de sentido
que caracterizam a produção discursiva da verdade histórica.
Por isso, quando a escritura abdica de identificar a tarefa
de narrar à de encadear ações com respeito aos atributos necessários
dos corpos e de suas relações, e passa a ter como referência
o desenvolvimento livre da imagem, não poderíamos ter a linearidade
do tempo dada pela linearidade lógica; é possível que ainda
tenhamos a linha de variação livre da imagem, mas esta não
se sustenta em encadeamentos necessários, pois, em se tratando
de imagens, já se abandonou em primeira instância a pretensão
de calcar as suas relações numa verdade objetiva e inegável
face à realidade.
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Gabriel Kolyniak é poeta e pesquisador. Seus livros de poemas,
Selado (2003-05),
Lavrador em sombra (2004-05), Severo (2005) e Bruto (2005-06) permanecem
inéditos. Mora em São Paulo, onde se dedica à poesia, ao ensino
de música e à atividade de pesquisa em literatura. E-mail:
gakolyniak@uol.com.br.
Leia também
poemas de Gabriel Kolyniak.
Cf. Claudine Haroche,
"L'ellipse (manque nécessaire) et l'incise (ajout contingent):
Le statut de la détermination dans la grammaire et son
lien à la subjectivité", in: CONEIN, Bernard et alli,
Matérialités
Discursives.
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