ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

LEZAMA LIMA E O TEMPO DISSIPADO

Gabriel Kolyniak

A compreensão da construção da temporalidade no texto literário é ameaçada a cada vez que a sua análise pressupõe concepções sobre o tempo que o engaiolam numa forma determinada e determinante do modo de relação entre signo, sentido e tempo. É que o texto literário tem a característica singular de gestar seu tempo em seu próprio ventre e fazer com que processos incompossíveis convivam num mundo que começa no impossível. Na obra de Lezama Lima, esta potência é explorada de maneira única; seja na prosa, na ensaística ou na poesia, o tempo é a dimensão preferencial de sua atividade de invenção: veja-se, por exemplo, a importância dos processos de dissolução da linearidade entre fenômeno sensível, signo e sentido que compõem o conceito de súbito, amplamente explorado pelo autor para a perseguição de um princípio estético fundado numa teologia poética.

Este artigo apresenta parcialmente os resultados de minha pesquisa de iniciação científica, nomeada Aspectos da enunciação e subversões do tempo em José Lezama Lima: reflexões sobre o conto "O pátio amorado", para a qual recebi apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo); o trabalho foi originalmente orientado pela Profa. Dra. Rosana Paulillo (Depto. de Lingüística - PUC-SP); após o seu falecimento, a Profa. Dra. Edilene Matos (Depto. de Arte - PUC-SP) assumiu a orientação. O trabalho consiste na abordagem do conto "O pátio amorado", de José Lezama Lima, por meio de um dispositivo de análise produzido a partir do encontro entre a teoria da enunciação e a filosofia. Procuro descrever os mecanismos de temporalização presentes no conto que têm a força de não apenas romper com o tempo cronológico, mas de fazer emergir uma outra espécie de temporalidade, desvinculada dos regimes de linearidade e sentido exigidos por aquele.

O critério de escolha dos teóricos para a produção deste dispositivo explica-se pela vizinhança que todos eles mantém com a necessidade de marcar o caráter profundamente deslizante da produção do sentido, bem como o de atentar para a multiplicidade de relações estabelecidas entre os homens e o tempo. A análise do sistema poético lezamiano indicou-nos a possibilidade de uso das obras de Bergson e de Gilles Deleuze para potencializar o dispositivo de análise, por meio de uma atividade intelectual na qual filosofia e lingüística se misturaram e, por vezes, quase se confundiram. Deste ramo, foram convocados Benveniste, Jacqueline Authier-Revuz, Dominique Maingueneau e outros teóricos ligados ao campo de estudos da enunciação. A articulação entre as diversas teorias tentou ao máximo evitar generalizações, com a pretensão de apenas montar um dispositivo de análise adequado às exigências de nosso objeto. Tanto a filosofia quanto a lingüística devem passar pelo crivo do que é pertinente ao texto literário, isto é, devem se deixar atravessar por fabulações não-filosóficas e não-científicas; será este o risco, o abismo e a ascese mais profundos do campo da análise de texto literário. É exigida alguma prudência e, numa convivência algo conflituosa, hybris em demasia para fazer da análise uma invenção de mundo, no qual admitem-se funcionamentos conceituais decididamente oriundos de movimentos não conceituais. Queremos com isto dizer que percorreremos concepções de criação, tempo e enunciação sujeitando-as à possibilidade singular do campo literário de comportar a produção de mundos de funcionamentos divergentes; talvez seja nossa pretensão, talvez nossa forma de prestar homenagem à Escritura que, como diz Blanchot, é contemporânea da traição da Lei, de toda lei e mesmo da própria lei.

Será preciso, a princípio, deixar claro o modo de entrada da produção teórica de Lezama neste trabalho. Seguindo a sinalização de Susana Cella, em El saber poético, sustentaremos também a posição de que o sistema poético lezamiano deve ser considerado como igualmente representado pela sua produção literária e pela ensaística, o que afirma a insubordinação que essas diferentes instâncias de trabalho criativo mantém umas em relação às outras. Não seria preciso opor o ensaio ao poema, mas sim fazer com que os dois se impliquem numa composição que tende ao infinito. Por isso, não se pode tomar um ensaio de Lezama Lima como um testemunho acerca de uma verdade qualquer sobre sua obra; o ensaio não é atividade de testemunha, de identificador, mas sim de vidente - da mesma maneira que sua prosa e sua poesia.

Não foram poucos os críticos que procuraram rastrear o modo de funcionamento do sistema poético lezamiano. Rubén Rios Avila marca nele a singularidade da relação entretida entre a metáfora e o conceito; haveria uma ambigüidade marcada pela oscilação entre dois pólos: Aristóteles e Pascal [1] . De um lado, o círculo, a identidade que o mundo encontra no conceito, o qual tende ao repouso; de outro lado, a elipse, o movimento perpétuo da metáfora. Avila indica uma oscilação entre as duas formas como a relação fundante do sistema poético lezamiano, que, de acordo com a posição do crítico, seria um "flujo indetenible de metáforas y conceptos, de metáforas conceptualizadas o de conceptos metaforizados, donde el movimiento y el reposo subsisten el uno sobre el otro" [2] .

A imagem teria, entre os dois pólos, uma processualidade que resiste a qualquer sentido, oferecido seja pelo gesto analítico, seja pelo gesto metafórico. Para Avila, ela seria

 

la expresión más elocuente de la pluralidad que define todo lenguaje. Si la modernidad encuentra en la metáfora la estructura para una epistemología nueva, para Lezama la imagen abarca no sólo la metáfora, sino también el concepto. La imagen es la estructura que define a la metáfora como una voluntad de concepto y al concepto como una ficción de la metáfora. La imagen es el tejido del simulacro que hace posible el sentido

 

A definição de imagem como agente e como estrutura liga-se diretamente à sua conceituação como um absoluto. Não é a imagem "de" alguma coisa, mas sim a imagem como um absoluto. Josely Vianna Baptista, no posfácio ao volume de contos de Lezama Lima traduzidos por ela, adverte o leitor sobre

 

... o caráter indomável com que nele [no texto de Lezama Lima] irrompe a imagem, e como a esta imagem se sobrepõe outra e outra e outra ainda, numa disritmia em que a frase sufoca e se contorce pela distribuição anárquica da pontuação, pela proliferação de adjetivos, a acumulação hiperbólica de figuras se estendendo em orações subordinadas que crescem, se dobram e desdobram terminando em abismo onde fulge - num átimo - o rastro do percurso: somos então tomados pela reverberação da idéia e a sensação da presença quase física da imagem [3] .

 

A divergência entre as formas do tempo no desenvolvimento da imagem (a exemplo da última frase do parágrafo §1) torna sensível a condição da imagem como matéria-tempo; o incondicionado poético de Lezama atinge a própria estrutura temporal, que passa a remeter ao mundo como imensa imagem; nesse mundo, a imaginação é o princípio organizatório e a memória ontológica se constitui como processualidade fundamental, como o próprio devir [4] .

 

O continuum da obra de Lezama seria, considerando-se esta exigência, uma continuidade da dobra, quer dizer, a sua tendência ao infinito. Isto porque não se tenta capturar um objeto, mas a própria variação das imagens torna-se objeto. A obra não encerra uma forma, tampouco descreve um estado finito da variação infinita que constitui a imagem como estrutura e agente da oscilação entre o círculo e a elipse. Esta característica singulariza-se no sistema poético lezamiano pela forma como é tratado um tipo de saber próprio da poesia. Não é pela negação ou reificação do conceito ou da metáfora que se encontra este modo de conhecimento poético; é antes exigida uma reversão da ordem epistemológica que distribui os alcances do conceito e da metáfora em relação ao real. Isso se deve a diversos fatores. Em primeiro lugar,

 

Como en Dante, para Lezama la actividad poética restituye la pureza paradisíaca que las lenguas humanas perdieron con el Pecado. La lengua original, que se deriva de la primera respuesta de Adán a Dios, tenía una relación natural y necesaria entre el signo y el sentido y entre el hablante e el oyente ... Lezama nombra lejania a la ruptura o separación básica que ocurre en la naturaleza caída, y para tratar de reparar esa falta, el hombre necesita del poder de la imagen, que es una especie de suplemento del vacío que deja el pecado. Entonces el acto de la imaginación es un "artificio" posible precisamente porque la verdadera naturaleza ya no existe. Por eso Lezama repite a menudo la frase de Pascal: "Como la verdadera naturaleza se ha perdido, todo puede ser naturaleza. [5]

 

O artifício afirma-se como operação primeira da constituição do real, o que leva a uma ampla reformulação das relações entre as formas de conhecimento das quais os homens dispõem para manipular a experiência sensível e as produções de mundo. Se a verdadeira natureza está perdida para o intelecto, então tudo é permitido: o mundo é uma questão de invenção. Porém, não deveríamos considerar que é a anulação da verdadeira natureza que faz com que tudo seja permitido; como diz Deleuze em relação à liberdade com que a figura, no barroco, encontrava,

 

C'est avec Dieu que tout est permis. Non seulement moralement, puisque les violences et les infamies trouvent toujours une sainte justification. Mais esthétiquement, de manière beacoup plus importante, parce que les Figures divines sont animées d'un libre travail créateur, d'une fantaisie qui se permet toute chose [6] .

 

O êxtase trazido pela manipulação do tecido do simulacro e do sentido, do qual Avila falava, dessa perspectiva, move a experimentação dos limites da livre exploração das faculdades do espírito (memória, imaginação, entendimento, razão etc.) [7] , e assim leva o pensamento e a criação a uma potência que ultrapassa a atividade mimética, de imitação de um real que lhe permanece alheio. O conceito e a metáfora tornam-se, nesse modo de pensar, indiscerníveis; a metáfora não é uma ausência de conceito, da mesma maneira que o conceito não é uma proteção contra a ameaça da linguagem conotativa.

Na obra do nosso autor cubano, o conceito de metáfora é trabalhado como uma operação própria do pensamento poético, e não como um tropo. Avila evoca, no seu já mencionado texto, uma posição de Nietzsche exposta no seu texto Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, no qual o pensador alemão fala da natureza metafórica da linguagem, e afirma a falibilidade de qualquer verdade face à Vida, pois a linguagem seria desprovida da transparência exigida para adequar-se à natureza das coisas. A instalação de Lezama num campo problemático no qual a metáfora é levada metodicamente até o limite do incompreensível indica uma das possíveis respostas a esta barreira imposta pela constituição da linguagem como modo de expressão da verdade. A acumulação imagética tende a encontrar um campo de indiscernibilidade entre os seres, isto é, a dirigir-se à Relação - ou Devir.

A substância poética seria aquela que, no quadro crítico que tentamos compor, constituir-se-ia como imagem-tempo; ela não tende a se confundir com a forma, como vimos; esta é sempre marcada por uma multiplicidade de entradas e de saídas, pelas quais a imagem pode continuar o seu processo, que tende ao infinito. Não é que haja uma substância primeira que extravasa os limites da forma e figura incompleta no texto dados os seus múltiplos aspectos e qualidades; é que o tempo tornou-se substância. Seria o caso de, acompanhando Deleuze, dizer que também não é a imagem da temporalidade, mas antes a imagem-tempo - a imagem, na obra de Lezama, não é imagem de. O direcionamento do gesto poético ao interstício de nada valeria se procurasse ali nomear ou recobrir a experiência com conceitos que acompanham uma suposta verdade das coisas; a maleabilidade da imagem precisa ser acompanhada por um gesto criador que assuma para si uma potência do falso.

Qual seria o sentido da constituição de um sistema poético, posto que a atividade direciona-se às zonas de indiscernibilidade entre os seres, as quais pressupõem uma falência de qualquer sistema face à sua constituição em fuga? Para Avila,

 

... el sistema sería una especie de fraude, una teología sin la responsabilidad de la religión, una teología poética, que es decir una teología de la ausencia [8] .

 

Face ao que retornamos à incrível proposição de que, com Deus, tudo é possível. O sistema, portanto, não tem o sentido de um super-organismo que aprisiona todas as singularidades que passam por ele; ele é uma "fraude", mas isto deve ser entendido em consonância com a observação de Pelegrín de que o poeta, no sistema lezamiano, apresenta-se como um centro regulador e manipulador de tipo leibniziano. Tal correlação entre Lezama e Leibniz pode ser compreendida a partir de algumas nuances do conceito de mônada na formulação do filósofo alemão. Como se sabe, a mônada é representada por uma casa de dois andares, sem portas nem janelas; a monadologia parte do princípio de que cada mônada expressa todas as séries que compõem o mundo, diferindo entre si unicamente porque cada uma expressa mais claramente diferentes regiões do mundo. Neste sentido, o sistema

 

está no alto, girando em torno de si, nada perdendo absolutamente nos compromissos de baixo, dos quais ele detém o segredo, e tomando, ao contrário, "o melhor de todos os lados", para aprofundar-se ou fazer mais uma dobra no compartimento de portas fechadas e de janelas muradas, compartimento em que Leibniz se encerra, dizendo: Tudo é "sempre a mesma coisa em vários graus de perfeição". [9]

 

O sistema leibniziano, a cada vez que é espelhado por uma mônada - uma perspectiva -, expressa-se de uma outra maneira; tudo não cessa de diferir da perspectiva do sistema, embora sempre seja ele o que se expressa. Da mesma maneira que se afirma a liberdade absoluta detida pelas figuras divinas dada a presença de Deus, a presença do sistema também libera a mônada de qualquer essência: é sempre uma maneira da mesma coisa, e não a diferença entre essências que encontram identidade no conceito. A busca lezamiana pelo que o autor chamava de um incondicionado poético parece referir-se precisamente a esta forma de liberdade das mônadas desvencilhadas de qualquer essencialismo. A observação de Pelegrín sobre a "rede de irradiações" faz do poeta um "centro regulador", mas sempre condenado à ex/centricidade [10] , assim como a elipse pascaliana.

Esse tipo muito peculiar de sistema, no qual a imaginação ocupa o papel de um princípio de conhecimento, liga-se diretamente à experiência flutuante da temporalidade. Num texto especialmente fecundo, Lezama Lima apresenta diretamente o tipo de traição temporal que é operada pelo criador. Vejamos:

 

Nuestras manos y nuestros dedos son muy obstinados en convertir una sucesión en lo súbito. Decidimos a traer todas las plantas a nuestro jardín, miramos en torno con el convencimiento rotundo del bosque, olvidando, como en el ejemplo mayor, que el bosque no es tan sólo lo que no se ve, sino lo que no existe: un encatamiento [11] .

 

O súbito de Lezama Lima é propriamente a convergência impossível entre imagem, conceito e metáfora, o rebrilho da natureza que se procurava conhecer depois de uma nova fuga na e da imagem. Dir-se-ia que o súbito é um dos elementos mais inquietantes do sistema, pois é nele que a imagem faz-se conhecimento, mas somente à custa da desaparição da forma. Os tão freqüentemente evocados versos de abertura de Inimigo Rumor atestam a forma da desaparição:

 

Ah, que tú escapes en el instante / en el que ya habías alcanzado tu definición mejor. / Ah, mi amiga, que tú no querías creer / las preguntas de esa estrella recién cortada, / que va mojando sus puntas en otra estrella enemiga. / Ah, si pudiera ser cierto  que a la hora del baño, / cuando en una misma agua discursiva / se bañan el inmóvil paisaje y los animales más finos: / antílopes, serpientes de pasos breves, de pasos evaporados, / parecen entre sueños, sin ansias levantar / los más extensos cabellos y el agua más recordada. / Ah, mi amiga, si en el puro mármol de los adioses / hubieras dejado la estatua que nos podía acompañar, / pues el viento, el viento gracioso, / se extiende como un gato para dejarse definir.

 

Se, da perspectiva da nomeação que dá repouso ao devir, a fuga do sentido representa uma falência ou uma fraqueza da razão face ao mundo, no sistema poético do qual tentamos nos aproximar ela é o reencontro paradoxal com a natureza primeva graças ao testemunho da sua inefável distância. Este é o direcionamento do incondicionado poético, mas também é o que dá sentido à presença de um "inominado" no sistema, um "significante ausente disseminado em seriações de significantes periféricos" [12] . Algo deve resistir à nomeação, à fixação no nome, para que se possa fazer presente no texto como dado imediato, como presença irresistível e inominável.

É essa resistência à nomeação que figura como impulso criador; não que ela o condicione, mas a magnitude de sua ausência no mundo da nomeação, a sua insistência como algo a ser entrevisto na falência do gesto analítico, faz dela precisamente o centro excêntrico da elipse e da curvatura infinita. A elipse como figura verbal de construção pode ser agregada a esse universo; trata-se precisamente da omissão de um termo que, face à proliferação da nomeação obrigatoriamente falível, isto é, de um excesso de mediação, coloca-se como um zero de sentido, o qual, paradoxalmente, distribui todo o sentido. Não que tal poética comece em um non-sense; é que o sentido primevo e infalível foi abortado em nome de um enigma constante que reverbera em cada uma das metáforas insolúveis.

Haroche mostra que a compreensão tradicional da elipse (ocultamento de um significante, isto é, um "dizer-menos") e da incisa (excesso de dizer, "dizer-mais" do que o necessário para a compreensão de alguma coisa), ao contrário de se basear num critério puramente lingüístico, sem relação com o exterior, se apoia na concepção de sujeito como um ente dotado de unidade e dono de si e, ao mesmo tempo, numa certa concepção de transparência da linguagem. Apenas por meio de tais concepções é que poder-se-ia considerar a elipse e a incisa como figuras formais, sem qualquer relação com o sujeito e com o universo extra-lingüístico. As rupturas que estas duas figuras de construção fazem no fio discursivo poderiam, de outro ponto de vista, mostrar os desvios que constituem espaços de indeterminação no texto como o momento em que a presença da subjetividade, cindida e rachada por excelência, se dá a ver [13] .

Os enunciados que comportam elipses carregam algo de indeterminado, uma incompletude que os torna ambíguos e os abre para o exterior, exigindo "une théorie de l'articulation de la grammaire avec son dehors" [14] . Da mesma forma, a incisa se apresenta como um dizer-mais que sobrecarrega o fio discursivo, mostrando a presença de um enunciador. As duas figuras, por criarem uma indeterminação no enunciado, seja por menos dizer, seja por dizer em excesso, apontam para o enunciador e para a sua subjetividade, mas também para aos pressupostos siuados nas formações discursivas.

A autora trabalha em torno dessa idéia, trazendo a voz de diversos outros pesquisadores, às vezes para refutá-los, às vezes para os acolher. Causa-nos grande impressão a sua citação de Felman - "toute promesse promet la complétion de l'incomplétude" -, a partir da qual a autora formula uma definição bela e eficaz da elipse: formalmente incompleta, a elipse "promete" a completude do sentido. A promessa do sentido, como já afirmado antes, dá à visão a presença de um sujeito heterogêneo e dotado de incompletude, e, ao mesmo tempo, de uma linguagem atravessada pela sua exterioridade. Trata-se de um percurso conceitual que, partindo de fenômenos aparentemente apenas formais, leva ao questionamento da possibilidade de fechamento da lingüística sobre o campo do "propriamente lingüístico". Como Haroche nos mostra, a linguagem não se constitui senão sobre uma heterogeneidade de sentido fundamental; daí a nossa recusa a remeter os constantes desvios de Lezama a uma linearidade da língua, como se fosse possível aprisionar os devires do sentido numa identidade conceitual.

Suspenderemos, de imediato, a discussão que levávamos até agora para incorrermos numa deriva conceitual, fincada em Bergson e Deleuze, com o objetivo de evidenciar algumas noções filosóficas que acompanham nosso debate. No ensaio "Introdução à metafísica", Bergson estabiliza algumas proposições que acompanham o movimento geral da sistematização da noção de intuição - que constitui a base do método bergsoniano - e apontam para a posterior definição do conceito de duração. Apresentamos alguns excertos deste texto:

 

I.                    Há uma realidade exterior e, entretanto, dada imediatamente a nosso espírito. (...)

 

II.                  Esta realidade é mobilidade. Não existem coisas feitas, mas somente coisas que se fazem, não estados que se mantêm, mas tão-somente estados que mudam. O repouso é sempre apenas aparente, ou melhor, relativo. A consciência que temos de nossa própria pessoa, em seu contínuo escoamento, nos introduz no interior de uma realidade segundo o modelo da qual devemos nos representar em outras. Toda realidade é, pois, tendência, se conviermos em chamar tendência uma mudança de direção em estado nascente.

 

Haveria, pois, uma realidade que é exterior ao sujeito ou ao espírito. Quanto a isso, não temos maiores comentários; interessa a sua forma de apresentação ao espírito. Ela é dada imediatamente, isto é, sem a mediação de qualquer representação. Parando por aí, Bergson não sustentaria diferenças radicais em relação a Kant, à medida que a a intuição, na obra do filósofo alemão, não seria fonte de representações - a representação seria constituída na síntese das faculdades: "já não temos necessidade de definir o conhecimento como uma síntese de representações. É a própria re-presentação que se define como conhecimento, isto é, como a síntese do que se apresenta." [15]

Todavia, sendo considerada como tendência, a realidade escaparia face à representação e às formas que fixam um segmento de um processo. O que se põe como dado imediato não é, portanto, nenhuma marca que permita reconhecer, mas só a diferença incessante das coisas com elas mesmas. Vejamos como Bergson desdobra tal conceituação do real no que tange à percepção:

III. Nosso espírito, que procura pontos de apoio sólidos, tem como função principal, no curso ordinário da vida, representar-se estados e coisas. Ele toma, de quando em quando, aspectos quase instantâneos da mobilidade indivisa do real. Obtém assim sensações e idéias. Através disto substitui ao contínuo o descontínuo, à mobilidade a estabilidade, à tendência em via de mudança os pontos fixos que marcam uma direção da mudança e da tendência. Esta substituição é necessária ao senso comum, à linguagem, à vida prática (...). Nossa inteligência, quando segue sua marcha natural, procede por percepções sólidas, de um lado, e por concepções estáveis, de outro. Ela parte do imóvel, e não concebe nem exprime o movimento senão em função da imobilidade. Ela se instala em conceitos pré-fabricados, e se esforça por prender, como numa rede, alguma coisa da realidade que passa. Não é, sem dúvida, para obter um conhecimento interior e metafísico do real. É simplesmente para se servir dele, cada conceito (como, aliás, cada sensação) sendo uma questão prática que nossa atividade põe à realidade e à qual a realidade responderá, como convém nesse comércio, por um sim ou por um não. Mas assim a inteligência deixa escapar do real o que é a sua própria essência. [16]

Algumas depreensões mais radicais desta concepção da relação entre a inteligência e o real são tiradas no quarto parágrafo, no qual se afirma que as dificuldades e confusões produzidas pela metafísica "vêm principalmente de que nos instalamos no imóvel para surpreender o movente em sua passagem, em vez de nos colocarmos no movente para atravessar com ele as posições imóveis".

Justificar-se-ia, na perspectiva do movente, um outro método filosófico, pertinente à intuição. Justamente porque a "marcha natural do pensamento" é o de não acompanhar a realidade móvel dos processos que compõem a realidade, "filosofar consiste em reverter a marcha habitual do trabalho do pensamento" [17] . A leitura do bergsonismo por Gilles Deleuze - que é, em grande medida, nossa referência para o manejo de alguns dos filósofos que passam por esta pesquisa -, em grande parte apresentada em Bergsonismo e nos seus dois livros sobre cinema, apresenta um Bergson dessemelhante, porém atravessado por um bergsonismo radical.

No capítulo "A imagem do pensamento", de Diferença e repetição, Deleuze aborda o problema dos pressupostos e do começo em Filosofia, em relação ao qual é proposto o conceito de imagem do pensamento. Afirma o autor que, mesmo quando certos filósofos supõem encontrar um começo livre de pressupostos para o pensamento, ainda fazem referência a uma imagem do pensamento; o cogito, como começo, é o que Descartes dá como "um conceito filosófico ao pressuposto do senso comum", pois ele "exprime a unidade de todas as faculdades no sujeito; exprime, pois, a possibilidade de todas as faculdades se referirem a uma forma de objeto que exprime a realidade subjetiva" [18] . Da mesma forma, em Kant, "é a identidade do Eu no Eu penso que funda a concordância de todas as faculdades e seu acordo na forma de um objeto suposto como sendo o Mesmo" [19] .

É neste panorama que o bom senso e o senso comum compõem-se como instâncias da imagem do pensamento,

 

pois se o senso comum é a norma de identidade, do ponto de vista do Eu puro e da forma de objeto qualquer que lhe corresponde, o bom senso é a norma de partilha, do ponto de vista dos eus empíricos e dos objetos qualificados como este ou aquele (...). É o bom senso que determina a contribuição das faculdades em cada caso, quando o senso comum traz a forma do Mesmo. (...) O pensamento é suposto como sendo naturalmente reto, porque ele não é uma faculdade  como as outras, mas, referido a um sujeito, é a unidade de todas as outras faculdades que são apenas seus modos e que ele orienta sob a forma do Mesmo no modelo da recognição

 

Esta orientação da imagem dogmática do pensamento é semelhante àquela apresentada por Bergson, pois tenderia a tentar apreender o real por meio da identidade e da partilha, da unidade e do Mesmo, os quais se introjetam no pensamento e sustentam a sua "marcha habitual". A continuidade do texto já citado de Deleuze vem a afirmar que

 

tal orientação é deplorável para a Filosofia, pois o triplo nível suposto de um pensamento naturalmente reto, de um senso comum natural, de direito, de uma recognição como modelo transcendental, só pode constituir um ideal de ortodoxia. A Filosofia não tem mais qualquer meio de realizar seu projeto, que era o de romper com a doxa. Sem dúvida, a Filosofia recusa toda doxa particular; sem dúvida, ela não retém qualquer proposição particular do bom senso ou do senso comum. Sem dúvida, nada reconhece ela em particular. Mas, da doxa, ela conserva o essencial, isto é, a forma; do senso comum, ela conserva o essencial, isto é, o elemento; e, da recognição, ela conserva o essencial, isto é, o modelo (concordância das faculdades, fundada no sujeito pensante tido como universal e se exercendo sobre o objeto qualquer). [20]

 

Seria por esta razão que pensar deveria ser algo que, antes de mais nada, começasse por "uma crítica radical à imagem do pensamento". Essa célebre formulação deleuziana precisa ser entendida em relação ao último trecho citado, no qual afirma-se que, mesmo que o filósofo rejeite a imagem do pensamento no que refere ao fato, ele não a rejeita em direito. De nada adianta rejeitar um modo de pensar a partir das verdades que ele supõe se não é posta em questão, ao mesmo tempo, a necessidade de uma imagem para o pensamento: um modo de pensar que não procure seu fundamento pré-filosófico na imagem do pensamento, mas que se constitua como um pensamento sem imagem.

Trata-se de uma mesma inclinação: filosofar como um modo de aderir à perspectiva do movente, e não à dos pontos fixos; na obra de Deleuze, este princípio bergsoniano desdobrar-se-á, para além do problema da imagem do pensamento, em diversas dimensões. Podemos apontar alguns exemplos: em Mil Platôs, uma série de distinções remete a esta preocupação, como aquela entre maior e menor (oriunda de outro livro escrito com Guattari, Kafka: por uma literatura menor), molar e molecular; em Proust e os signos, na busca de um livre funcionamento das faculdades face aos signos do tempo redescoberto; em Francis Bacon: logique de la sensation, na emancipação da Figura e das relações entre as figuras em relação à representação e à figuração, assim como no acompanhamento da passagem da figura por uma multiplicidade de níveis de sensação.

Retomando o último parágrafo citado de Bergson, vemos uma preocupação especial com o conceito; parece que a produção do método da intuição depende em grande medida de uma reavaliação da conduta do conceito. Essa necessidade advém do caráter movente do real, do fato de que não há estado de alma, por mais simples que seja, que não mude a cada instante, pois não há consciência sem memória, não há continuação de um estado sem adição, ao sentimento presente, da lembrança de momentos passados. Nisto consiste a duração. (...) O estado, tomado em si mesmo, está em perpétuo devir (...)" [21] .

Para o conceito acompanhar o real, num mundo em que a duração define-se como devir incessante, ele próprio deve estar na mesma condição. Em outro texto, Bergson afirma que a metafísica, em geral, utiliza o tipo de referência que se faz ao espaço para se reportar ao tempo; "quando evocamos o tempo, é o espaço que responde ao chamado. A metafísica teve de se conformar aos hábitos de linguagem, os quais se regram pelo senso comum" [22] . Quer dizer, a impotência da metafísica para apreender o tempo reside no seu alojamento sob a imagem do pensamento, da sua subordinação senso comum - e ao bom senso.

A compreensão do movimento como uma sucessão de estados fixos seria um dos fatores a perturbar a apreensão do tempo pelo pensamento. Diz Bergson: "objeta-se ao entendimento que entre esses pontos se passa qualquer coisa? Ele intercala novas posições, e assim indefinidamente. Ele desvia o olhar da transição. Se insistimos, ele faz com que a mobilidade, apertada em intervalos cada vez menores à medida que aumenta o número de posições consideradas, recue, fuja, desapareça no infinitamente pequeno" [23] . Não é na sucessão de instantes - que nada são senão recortes de simultaneidades - que se encontra a passagem de um estado a outro, pois o devir inaugura um ponto de indiscernibilidade entre os estados. É que a sucessão é pensada em analogia com a justaposição, quando os processos temporais não obedecem a coordenadas da mesma ordem que as do espaço.

Em relação à mudança, diz o filósofo que "o real não são os 'estados', simples instantâneos tomados por nós, ainda uma vez, ao longo da mudança; é, ao contrário, o fluxo, é a continuidade da transição, é a mudança ela mesma" [24] . Neste sentido, a mudança deixa de ser uma dimensão do real para tornar-se a sua constituição. Em verdade, o conceito de duração é o que engendra a mudança; ela é "criação contínua, jorro ininterrupto de novidade". A metafísica só poderia tornar-se a própria experiência, como quer Bergson, à custa do esvaziamento das questões que eram unicamente pertinentes aos pressupostos oriundos da instância pré-filosófica, isto é, da imagem do pensamento.

Por exemplo, a distinção entre o possível e o real, considerado o possível como um dado que será desenvolvido pelo real, descarta de todo a imprevisibilidade da próxima mudança de direção. Os inúmeros desencontros e paradoxos desenhados em torno de tal oposição derivaria, da perspectiva bergsoniana, do fato de que eles respondem a falsos problemas. São falsos porque partem do imóvel (de um possível dado de antemão, que descarta as múltiplas direções que cada mudança instaura) para compreender o móvel (o real e a sua implicação com a passagem e a conservação do tempo).

Como já dissemos, o método da intuição relaciona-se diretamente com uma exigência de instalação do pensamento no movente, ou de sua implicação com a duração. A primeira regra deste método, de acordo com a leitura deleuzeana, é "aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, denunciar os falsos problemas, reconciliar verdade e criação no nível dos problemas", pois

 

cometemos o erro de acreditar que o verdadeiro e o falso concernem somente às soluções, que eles começam somente com as soluções. Esse preconceito é social (pois a sociedade, e a linguagem que dela transmite as palavras de ordem, "dão"-nos problemas totalmente feitos (...), e nos obrigam a "resolvê-los", deixando-nos uma delgada margem de liberdade). (...) A verdadeira liberdade está em um poder de decisão, de constituição dos próprios problemas (...). Mas colocar o problema não é simplesmente descobrir, é inventar. A descoberta incide sobre o que já existe, atualmente ou virtualmente (...). A invenção dá o ser ao que não era, podendo nunca ter vindo. [25]

 

Já havíamos marcado que o conceito, quando tem como referência o imóvel para capturar o móvel, tendia ao fracasso ou à crise quando confrontado com um tempo constituído como criação contínua. Importa, a esta altura, acompanhar este caráter de invenção que o conceito necessariamente tem de comportar. A descoberta, incidindo sobre o que já existe, força um movimento retrospectivo do tempo, pois considera os estados ulteriores a um zero e traça uma série de causalidade baseada num sentido produzido a posteriori dos acontecimentos, enquanto o sentido jamais deixa de ser contemporâneo do acontecimento. Estamos, neste ponto, em contato com alguns dos mais importantes desdobramentos da noção de duração tal qual a entende Bergson.

A duração não seria compreensível somente da perspectiva de um presente que passa, pois ela é "memória, consciência, liberdade" [26] . A relação entre duração e liberdade já foi rapidamente abordada, no que tange à invenção de problemas. Esta relação poderia nos entreter por mais tempo, mas não nos seria imediatamente interessante; deixemos tal discussão para outra ocasião. Interessa mais a relação entre duração e memória. Duração é memória porque esta deve ser entendida não apenas no sentido psicológico, mas também ontológico; a relação entre o ser/devir e o passado, o presente e o futuro permaneceria obscura se não fosse a conceituação da memória como duração, e não como faculdade do espírito.

Com o risco de repetir algumas das marcações anteriores a respeito da duração, remarquemos as suas características centrais. A duração tem como caracteres: i) ser una, indivisível; ii) ter um caráter de criação, o que nos oferece uma perspectiva positiva para o tempo, à medida que ele cria, ao contrário de apenas destruir; iii) como decorrência da primeira característica, não admitir a segmentação em passado-presente-futuro, entendidas como um passado que já foi presente, um presente que já foi futuro e em breve será passado, um futuro que será presente e logo passado. Na realidade, a duração não passa, pois a matéria que, a princípio, deixaria de existir e desapareceria no abismo do passado insiste no presente. Ela insiste porque a própria duração é a memória, que jamais deixa de se expandir e, ao mesmo tempo, de criar, de engendrar o Novo: a cada momento, a duração, entendida como memória que num só lance se conserva e se altera radicalmente, faz deste mundo um outro de si.

Portanto, o presente define-se por passar, mas isto só é possível porque ele é, ao mesmo tempo, passado e presente. Por outro lado,

 

o passado jamais se constituiria, se ele já não tivesse se constituído inicialmente, ao mesmo tempo em que foi presente. Há aí como que uma posição fundamental do tempo, e também o mais profundo paradoxo da memória: o passado é 'contemporâneo' do presente que ele foi. Se o passado tivesse que aguardar para já não ser, se ele não fosse 'passado em geral', desde já e agora que se passou, ele jamais poderia vir a ser o que é, ele jamais seria este passado. Se ele não se constituísse imediatamente, ele não poderia ser reconstituído a partir de um presente ulterior. O passado jamais se constituiria se ele não coexistisse com o presente do qual ele é o passado [27] .

 

A coexistência do passado em geral com o presente garante que a memória inche e se conserve, ao mesmo tempo em que não cessa de mudar. Diversamente, "o passado é contemporâneo do presente que ele foi"; isso se exprime nos movimentos da lembrança; esta não faz do passado em geral um presente, mas exige que nos instalemos em uma região do passado. Mesmo que todo o passado coexista na forma de um "passado em geral" e a memória seja uma instância irredutível à consciência, ele se organiza em regiões e comporta a produção de passados de um presente; porém, a coexistência de todos os passados se dá no nível do virtual, enquanto o processo de evocação deste passado chama-o desde o virtual até o atual.

O par formado por virtual e atual não é, portanto, uma oposição comparável àquela entre possível e real. Virtual e atual são ambos componentes do real [28] . Como uma fórmula de Proust mencionada por Deleuze, sobre os estados de ressonância: "reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos" [29] . É a exigência da passagem do presente para o passado e vice-versa; é preciso que o atual e o virtual sejam considerados como componentes do real para afirmar duas imagens do tempo, uma fundada no passado, outra no presente. (...) O passado (...) se manifesta como a coexistência de círculos mais ou menos dilatados, mais ou menos contraídos, cada um dos quais contém tudo ao mesmo tempo, e sendo o presente o limite extremo (o menor circuito que contém todo o passado). Entre o passado (...) e o presente (...) há, pois, todos os círculos do passado que constituem tantas outras regiões, jazidas, lençóis estirados ou retraídos (...). Mas (...) pode o presente valer, por sua vez, pelo conjunto do tempo? Talvez sim, se conseguirmos destacá-lo de sua própria atualidade (...). Desta feita, não há mais futuro, presente e passado sucessivos, segundo a passagem explícita dos presentes que discernimos. Na bela fórmula de Santo Agostinho, há um presente do futuro, um presente do presente, um presente do passado, todos eles implicados e enrolados no acontecimento, portanto, simultâneos, inexplicáveis. Do afeto ao tempo: descobrimos um tempo interior ao acontecimento, que é feito da simultaneidade dos três presentes implicados, dessas pontas de presente desatualizadas. [30]

É tempo de delinearmos a imagem bergsoniana utilizada para a memória e para a duração, tal qual esta se exprime na estrutura da memória e na relação entre as imagens na memória (trata-se, portanto, de uma imagem virtual do tempo). É o cone invertido a figura escolhida pelo autor em Matéria e memória. Esquematicamente, temos o seguinte desenho:

O vértice S representa, virtualmente [31] , o presente - menor circuito que contém todo o passado -, enquanto o corte AB secciona uma região de passado como pura virtualidade. Porém, as imagens-lembrança não circulam apenas por AB, bem como o presente não passa (pois esta é a sua grande deifinição) somente em S, pois toda imagem tem de passar por dois processos, um de virtualização - em direção à coexistência virtual de todo o passado, seccionado por jazidas, níveis ou regiões - e outro de atualização de um passado para um presente. A produção de um presente dotado de um passado, e não um presente ilimitado e um passado em geral, depende, desta maneira, dos dois movimentos, pois o passado que sobrevive, coexistindo virtualmente com todos os outros, conserva também uma ponta de presente desatualizada, a qual pode vir a se atualizar num novo processo.

O passado AB coexiste com o presente S, mas comportando em si todos os pares A'B', A''B'' etc., que medem os graus de uma aproximação ou de um distanciamento puramente ideais em relação a S. Cada um desses pares é, ele próprio, virtual, pertencente ao ser em si do passado. Cada um desses pares, ou cada um desses níveis, compreende não tais ou quais elementos do passado, mas sempre a totalidade do passado. Ele simplesmente compreende essa totalidade em um nível mais ou menos dilatado, mais ou menos contraído. Eis, portanto, o ponto exato em que a Memória-contração inscreve-se na Memória-lembrança e, de algum modo, assegura-lhe a continuidade. Donde, precisamente, esta conseqüência: a duração bergsoniana define-se, finalmente, menos pela sucessão do que pela coexistência. [32]

Compreendemos alguma coisa, pois, sobre o papel do virtual na compreensão do tempo como duração e produção do novo. Manifesta-se na coexistência dos lençóis de passado; porém, parece ainda não estar clara a noção de ponta de presente. Esta deriva não só da coexistência virtual do passado, mas também do caráter do presente que passa: a ponta de presente remete a um presente puro, e não à forma pura do passado na memória. Se esta diz-se nas "alternativas indecidíveis entre círculos de passado", aquela se apresenta nas "diferenças inextricáveis entre pontas de presente" [33] . É porque cada presente produz diferença em todo o conjunto do tempo que a noção de ponta de presente pode subsisitir; é a presença do tempo no presente, da multiplicidade de perspectivas que entram em relação a cada lance.

Passemos, pois, à montagem de uma dispositivo analítico para atravessar o texto de Lezama. Tematizaremos, por ora, o problema do eu na linguagem, que será capital, na sua relação com a Duração, para essa invenção. Afirmávamos, anteriormente, ser preciso procurar também os modos de expressão, na linguagem, da relação do sujeito com os lençóis de passado e com as pontas de presente desatualizadas, e não só com passado e presente atualizados. Para isso, devemos ir além da instauração dos presentes de enunciação; seria preciso investigar sob que formas estas dimensões da duração (ou do tempo puro) se fazem presentes no texto.

A primeira distinção a que recorreremos para tal investigação remete à obra de Émile Benveniste, que propôs a separação de dois planos de enunciação. O problema que move tal reflexão de Benveniste, apresentada no artigo "As relações de tempo no verbo francês", é a distinção entre o valor das formas simples e o das compostas do pretérito em língua francesa. O autor procura mostrar que a diferença entre os dois pode ser descrita do ponto de vista de "dois sistemas distintos e complementares" [34] , a saber, o da história e o do discurso.

De acordo com o autor, o plano da história é aquele em que se inscrevem os fatos quando estes parecem ser narrados por si mesmos, isto é, sem que o enunciador faça referência a si ou insira apreciações sobre o próprio dizer. Neste plano, figuram enunciados que não façam referência ao presente de enunciação e digam exclusivamente respeito a atos, estados e acontecimentos que não se desenvolvem nos seus limites espaço-temporais. O plano do discurso, ao contrário, carrega a marca do seu processo de produção, e nele o enunciador não hesita em marcar a própria presença por meio de dêiticos e verbos que fazem referência ao presente de enunciação.

O passado simples, em francês, seria a forma da narração por excelência; enquanto isso, o passado composto, ao lado do presente do indicativo, seria a forma típica do plano do discurso. Tal opção rejeita a diferenciação entre as duas formas apenas pelo aspecto verbal, situando-a no eixo da relação entre passado e presente. Interessa-nos mais, está claro, a distinção entre os dois planos do que a discussão sobre as formas simples e compostas dos verbos.

O plano do discurso - que será, de agora em diante, nomeado de plano do comentário ao invés de discurso, dados os sentidos que o termo possui na lingüística contemporânea - é aquele que coincide, como já afirmamos, com a situação de enunciação. Nos termos de Paulillo, "aí aparecem os dêiticos marcadores de pessoa (eu-tu) e de ostenção (aqui-agora) e os enunciados são vazados na forma do presente. O plano da enunciação caracteriza aqueles discursos que são totalmente ancorados na situação de enunciação em que se produzem." [35]

O plano do relato - nomeação que utilizaremos para o que Benveniste nomeava de plano da história - exclui, por sua vez, o presente. Ancorando-nos novamente em Paulillo,

 

sem dúvida, o discurso que relata é produzido num ato de enunciação, mas ele não se põe em relação direta com a singularidade do ato, nem com o presente empírico que corresponde ao momento de sua produção. No plano do relato, o tempo do discurso é alheio à temporalidade da enunciação, pois o discurso relata acontecimentos passados, anteriores e exteriores à enunciação em que se produz. Esse deslocamento temporal produz a possibilidade de um deslocamento global em relação à singularidade da enunciação, dos sujeitos e da situação de enunciação, que aparecem nessa forma como alheios ao universo relatado - ocorre aqui a ausência de dêiticos, ausência de menção ao eu-outro e ao aqui-e-agora do acontecimento enunciativo. Os sujeitos do discurso aparecem então, essencialmente, na figura da terceira pessoa, de um outro que não o enunciador ou o interlocutor. [36]

 

Utilizaremos, para a análise dos níveis temporais do conto, o modelo de Benveniste para a divisão em dois planos de enunciação. Verificaremos, nesta análise, que Lezama, por mais de uma vez, multiplica o plano do comentário, isto é, instaura mais de um ponto de vista no presente de enunciação; não é bem que haja dois presentes, mas, à medida que cada perspectiva traça um caminho diferente no "passado em geral" para sua atualização, coexistem no mesmo enunciado dois passados específicos diferentes, embora seu "presente" pareça ser correspondente. Retomando o esquema do cone invertido, seria dizer que, num presente S, há diversos circuitos virtuais (AB, A'B', A''B''...) que fazem coexistir diversas regiões do passado numa mesma linha, embora ainda deva haver circuitos psicológicos de imagens-lembrança; porém, estes correspondem à atualização dos circuitos virtuais AB, A'B', A''B'', a qual sempre deve se dar no salto para S [37] .

O presente constituído como presente de enunciação, por outro lado, tem seus limites dados pela duração de uma situação de enunciação. Da mesma forma, o sujeito é um efeito do próprio ato de enunciação; se quisermos ser rigorosos em relação a essa questão, verificaremos que não há um sujeito estável que determina os sentidos de um enunciado, mas sim um ente de constituição heterogênea, marcado pela alteridade e pela não-coincidencia, que não cessa de diferir de si a cada novo movimento de produção de sentido [38] .

Authier-Revuz trata, no artigo "Hétérogéneite(s) Énonciative(s)", das formas da heterogeneidade mostrada, diferenciada da assim chamada heterogeneidade constitutiva do discurso. Para evidenciar a diferença entre os dois conceitos, a autora faz um breve resumo das bases teóricas mais conhecidas da análise do discurso, a saber, Bakhtin, Foucault, Althusser e Freud lido por Lacan. Considerando a centralidade da noção de heterogeneidade dentro da disciplina mencionada e a importância dos pilares teóricos citados, o artigo ora em foco se nos apresenta como um texto de base em relação à nossa posição teórica.

A reflexão de Authier-Revuz pode ser entendida a partir do tipo de fenômeno que a move: as ressonâncias lingüísticas, no fio do discurso, da tensão existente na relação entre o sujeito e o seu exterior, entre o discurso e o interdiscurso. O princípio bakhtiniano do dialogismo, que afirma a existência de uma dialogização interna do discurso, é de interesse para tal problemática à medida que dá suporte à compreensão da produção de sentido e de discurso como condicionada por uma saturação da linguagem. Porque cada palavra, expressão ou discurso já foi emitido por um outro, o sentido é produzido pelo já-dito, de maneira tal que o centro do discurso é o seu exterior.

A autora evoca, em relação a este tópico, o pensamento de Michel Foucault e de Althusser. Foucault demonstrara a importância do interdiscurso para a produção de discurso e de sentido, bem como apontara a necessidade de o sujeito, ao dizer, produzir a ilusão de ser o dono do seu próprio discurso. De outra parte, prosseguindo com a abordagem geral dos diversos teóricos que lhe dão suporte, Authier-Revuz comenta a leitura lacaniana da obra de Sigmund Freud, mostrando a relação entre descentramento do sujeito e inconsciente. Ao que parece, este quadro teórico encontra relação na idéia de descentramento: do dizer, em Foucault; do discurso, em Bakhtin; do sujeito, em Lacan...

A constatação do descentramento de todas essas instâncias envolvidas no universo discursivo faz-se acompanhar da afirmação de uma heterogeneidade constitutiva de todo o discurso. Não há homogeneidade em nenhuma das instâncias mencionadas; porém, pode-se considerar tal heterogeneidade de dois pontos de vista diversos. Por um lado, podemos conceituar a heterogeneidade ativa em qualquer enunciação, porquanto o próprio sujeito é heterogêneo. Não é possível, entretanto, ter "acesso" a essa heterogeneidade constitutiva em estado puro; ela é, por vezes, indicada pelos enunciados. Essa indicação é chamada de heterogeneidade mostrada; porém, a relação entre as duas não é, certamente, de simples "tradução". Há fenômenos que evidenciam a alteridade e o caráter heterogêneo do sentido, coisa que pode acontecer por diversas vias. Trata-se de formas que alteram "a unicidade aparente da cadeia discursiva, pois elas aí inscrevem o outro (segundo modalidades diferentes, com ou sem marcas unívocas de ancoragem)" [39] .

A autora discorre, na continuidade do artigo, sobre as formas marcadas da heterogeneidade mostrada, em especial sobre os enunciados com conotação autonímica. Seja por meio de um comentário meta-lingüístico sobre um termo ou uma expressão utilizada ("o termo é grosso, mas..."), seja por meio da avaliação sobre o caráter do próprio dizer ("sem querer ser grosseiro..."), entre outros casos, faz-se referência, simultaneamente, ao próprio dizer e ao olhar de um outro (ou à sua representação).

A reflexão específica sobre as formas marcadas da heterogeneidade mostrada explicita algumas das operações conceituais que circundam o conceito de heterogeneidade na sua relação com o sujeito. Para a continuidade desta discussão, tomaremos os conceitos de locutor-L e locutor-l, que referem duas dimensões distintas do locutor, oriundos da produção de Ducrot. O seu uso nessa pesquisa é calcado na sua apresentação por Maingueneau, na obra Elementos de lingüística para o texto literário. A distinção entre locutor-L e locutor-l faz-se como desdobramento da distinção entre sujeito falante e locutor. Todos estes níveis de distinção vêm a afirmar a coexistência de múltiplas instâncias no interior da subjetividade; o eu na/da linguagem não seria uma produção anterior a estas instâncias, mas sim uma produção contemporânea da circulação e das divergências entre elas.

Desmembra-se o eu na linguagem, em primeiro lugar, em duas dimensões; o sujeito falante corresponde ao "papel de produtor do enunciado, do indivíduo (ou dos indivíduos) cujo trabalho físico e mental permitiu produzir esse enunciado", enquanto o locutor é a "instância que assume a responsabilidade do ato de linguagem" [40] . Como se vê, o critério da distinção é a responsabilidade - mas responsabilidade sobre quê? Em qual dimensão do ato de linguagem este eu enconta aquilo pelo qual é responsável? Já sabemos que o eu, no dizer, refere o locutor. Como afirma Benveniste em "Da subjetividade na linguagem", o pronome pessoal eu se refere

 

ao ato de discurso individual no qual é pronunciado, e lhe designa o locutor. É um termo que não pode ser identificado a não ser dentro do que, noutro passo, chamamos uma instância de discurso, e que só tem referência atual. A realidade à qual ele remete é a realidade do discurso. É na instância de discurso na qual eu designa o locutor que este se enuncia como sujeito [41] .

 

Ora, nessa perspectiva, julgar-se-ia que o eu é uma produção que remete a uma relação de síntese de diversas instâncias no presente que se põe a cada ato de linguagem, pois estes atos, para se instaurarem, devem produzir o presente com o qual se implicam. Só é possível a constituição de um sujeito de linguagem no dizer, ao mesmo tempo em que a responsabilidade pelo que se diz e pelos sentidos produzidos pelo dizer recai sobre o eu contemporâneo à enunciação, isto é, à atualidade, a ponta de presente atual instaurada pela nomeação de um agora, claramente distinto de um antes e a espera de um depois.

Este mapa de uma instância subjetiva que toma a responsabilidade pelo sentido bastaria, se não fosse a presença da memória. A relação entre as instâncias subjetivas e o tempo não poderia se explicar pelo seu modo de funcionamento no que se refere às pontas de presente atuais. A distinção ducrotiana entre locutor-L e locutor-l insere-se nesta problemática, à medida que diz respeito a duas dimensões do envolvimento do enunciador com o seu enunciado; por um lado, a forma-sujeito que é prevista por uma determinada discursividade ou posição de fala (locutor-L), à qual o sujeito adere enquanto dura uma situação de enunciação; por outro, a identificação de uma subjetividade que escapa aos limites da situação de enunciação (locutor-l), a qual pode ser referida ou não no fio discursivo.

Fica claro que esta distinção entre locutores aponta para uma cisão da atividade de referenciação no que toca ao eu. Num mesmo texto, pode-se fazer referência a duas dimensões específicas do locutor (como já vimos, o locutor é a dimensão do sujeito que toma a responsabilidade pelo dizer). Este só "dura" na atualidade de uma instância discursiva; porém, a responsabilidade pelo dizer não poderia ser atribuída a um locutor se este respeitasse unicamente à situação de enunciação. Seria preciso que algo já tenha começado e tenda para um futuro, isto é, que aquele locutor tenha um passado e um futuro que o constituam como vivente no tempo. É dizer: a instauração de um presente de enunciação e de formas-sujeito não se faz sem que haja também a produção de um passado específico para os locutores. O "recheio" de passado que dá espessura ao locutor depende, portanto, da invocação de imagens-lembrança e da sua relação com as imagens-percepção, ou, em outros termos, de um processo de atualização e de virtualização.

A criação do locutor se dá, como vimos, numa relação complexa entre atual e virtual, sendo que o locutor-L respeita à atualização de singularidades e relações diferenciais, enquanto o locutor-l, à sua virtualização, à sua existência como Idéia [42] . Este processo é contínuo, e a relação entre as duas dimensões, conflituosa. A dimensão que assume a responsabilidade pelo dizer não o faz senão à custa de cindir-se; entre essas duas instâncias, as fissuras do discurso vêm a se instalar; não é propriamente que haja uma inadequação fundamental entre as duas que as move uma em direção à outra, mas sim que nelas se expressam processualidades que não dizem respeito somente ao esforço de identificação entre as duas, mas sim à criação e à diferença. A instância de enunciação não viria a se instalar somente pelos processos que se dão do virtual ao atual - pela atualização -, mas também por aqueles que direcionam as identidades e os passados específicos ao passado em geral, o que vem a ser o mesmo que a problematização. Como Authier-Revuz testemunha, a heterogeneidade do sujeito é inacessível como tal, e não seria abusivo relacioná-la com a heterogeneidade ou a multiplicidade que constitui o "passado em geral".

Diz-se que o aparelho de enunciação, no território da Lingüística, é inabordável como tal; deve-se buscar as suas marcas no interior do enunciado [43] . Estas podem ser encontradas tanto em elementos discretos - como no uso de pronomes pessoais de primeira e segunda pessoas, nos pronomes demonstrativos exofóricos etc. - quanto no continuum do texto. A enunciação é, certamente, como diz Benveniste, o processo por meio do qual o presente é criado, sendo este o tempo de inscrição dos enunciados, mas, remetendo às nossas últimas considerações, também envolve outras dimensões do tempo e do sujeito.

Pois bem, se o Autor abdica de produzir semelhança ou procurar identidade entre as diversas dimensões que o compõem como sujeito, das distintas faces do locutor e dos processos do tempo que superam a instauração do presente, eles se nos apresentam perfeitamente correspondentes ao seu funcionamento implícito em qualquer enunciação, isto é, como divergentes, não-coincidentes e dessemelhantes. Se fosse o caso de considerarmos um ser imanente ao texto, dotado de uma subjetividade cuja unidade validaria o sentido de uma interpretação que procura as suas marcas, ele deveria se dizer necessariamente da própria diferença, não só entre as dimensões, mas também do fundo indiferenciado que é coetâneo a toda diferenciação, aquilo que difere na diferença.

Da perspectiva do aparelho formal de enunciação, este reposicionamento das relações temporais respeita ao que identificaremos, em diversos segmentos do conto, como uma liberdade que o locutor se dá para transitar entre diferentes regiões do "passado em geral", fazendo de cada uma delas um presente de enunciação sem vínculos lógico-motrícios com um passado que deveria lhe anteceder e os futuros que poderiam lhe dar continuidade. O trânsito entre diversas pontas de presente, certamente, só se dá com a manutenção da exigência de traçar novos circuitos psicológicos a cada vez; talvez a escritura não possa evitar tal procedimento, à medida que a sua supressão impossibilitaria a instalação de um presente de enunciação. Por outro lado, como a linha de variação da imagem também faz variar o presente de enunciação e, é claro, o circuito psicológico que o instala, podemos, nos deslizamentos, atentar para o trânsito entre os tempos desenvolvidos como passado e presente específicos, para assim colhermos os cristais de tempo pelos quais a imagem jorra.

A noção de cristal de tempo foi proposta por Félix Guattari e aproveitada por Deleuze em Cinema II: A imagem-tempo. Ela é, como mostraremos, útil para a sistematização dos recursos estilísticos que detectamos em nossa análise. Detenhamo-nos em nossas conclusões, pois, para acompanhar o desenvolvimento deste conceito. O cristal de tempo mantém um forte vínculo com a distinção entre o virtual e o atual, sobre a qual havíamos nos detido ao falar das concepções bergsonianas sobre a Duração. De acordo com Deleuze,

A imagem-cristal, ou a descrição cristalina, tem mesmo duas faces que não se confundem. É que a confusão entre real e imaginário é um simples erro de fato, que não afeta a discernibilidade deles: a confusão só se faz "na cabeça" de alguém. Enquanto a indiscernibilidade constitui uma ilusão objetiva; ela não suprime a distinção das duas faces, mas torna impossível designar um papel e outro, cada face tomando o papel da outra numa relação que temos de qualificar como pressuposição recíproca, ou de reversibilidade. Com efeito, não há virtual que não se torne atual em relação ao atual, com este se tornando virtual sob esta mesma relação: são um avesso e um direito perfeitamente reversíveis. São "imagens mútuas", como diz Bachelard, nas quais se efetua uma troca. A indiscernibilidade do real e do imaginário, ou do presente e do passado, do atual e do virtual, não se produz portante, de modo algum, na cabeça ou no espírito, mas é o caráter objetivo de certas imagens existentes, duplas por natureza. Então, duas ordens de problema se colocam: uma de estrutura, outra de gênese. Em primeiro lugar, quais são estas consolidações de atual e virtual que definem uma estrutura cristalina (mais num sentido estético geral que num sentido científico)? E, depois, qual é a operação genética que aparece nessas estruturas? [44]

Pois bem, a imagem lezamiana é, na concepção do autor, uma unidade que comporta múltiplos desenvolvimentos; é de supor que cada forma à qual a figura adere expresse apenas um ponto de repouso aparente da linha de variação da imagem. Porém, como isso seria possível se esta forma não expressasse também as virtualidades que com ela coexistem? O segmento (§17, 5-9) é um exemplo claro desta coexistência; o deslocamento imagético da inundação para o bronze líqüido, com o qual aquela assume deste um certo modo de ser no tempo, implica que se considere haver, na imagem emanada da enchente, já alguns dos germes e pontos de entrada pelos quais o bronze pode fazer sua entrada no cristal e se deformar de acordo com os pés de Diana ou de uma galga russa. Não podemos estabelecer a ordem de semelhança entre a água e o bronze, pois passa-se de um ao outro não por serem semelhantes como matéria, mas pelo caráter emanado do modo de seu desenvolvimento.

A imagem-cristal não é o tempo, mas vemos o tempo no cristal. O tempo consiste nessa cisão, e é ela, é ele que se vê no cristal. ... A imagem-cristal é certamente o ponto de indiscernibilidade de duas imagens distintas, a atual e a virtual, enquanto o que vemos no cristal é o tempo em pessoa, um pouco de tempo em estado puro, a distinção mesma entre as duas imagens que não para de se reconstituir. Por isso haverá diferentes estados do cristal, conforme os atos de sua formação e as figuras que nele vemos. Analisávamos, antes, os elementos do cristal, mas ainda não os estados cristalinos; podemos chamar agora cada um desses estados de cristal de tempo [45] .

É com os olhos voltados para essa ordem de questões e para estas espécies de cristalizações temporais que percorremos o texto, procurando mostrar aquilo que, nele, é ruptura imediata da organização temporal chamada de cronologia. A importância dos métodos de seqüenciamento das ações na criação literária é tematizada desde a Poética de Aristóteles, e boa parte do desenvolvimento destas noções desde o século XVI até o formalismo russo é apoiada em alguns dos preceitos mais importantes do pensador grego.

Do texto de Aristóteles, é possível marcar que é insinuada a diferença entre dois planos temporais distintos; um corresponderia ao encadeamento lógico e necessário da fábula na sua condição de totalidade lógica das ações simples e complexas que a compõem. A atividade de seqüenciamento das ações, que é mais propriamente pertinente à criação literária, dar-se-ia sobre um outro plano, que respeita mais ou menos os encadeamentos necessários das ações componentes da fábula; estas são repartidas entre os personagens e é do seu desenvolvimento que dependeria o efeito da narrativa.

Tal concepção prevê que a substância do narrado mantém vínculos com um estado de linearidade das ações, embora a sua organização na exposição verbal possa ser feita livremente. Todavia, este modo de encarar a temporalidade no texto literário continua a subordinar o tempo às relações entre diferentes movimentos, de maneira que não se chega a desenhar a possibilidade de que a abolição da verossimilhança recaia sobre o estatuto da verdade, e não do compromisso mimético. Em outros termos, aceita-se qualquer forma do tempo no espaço da criação literária, mas somente à força de identificar o tempo de uma realidade extra-literária à linearidade lógica, derivada rigorosamente das relações entre as ações.

Vejamos, pois, uma amostragem de nossa análise, referente ao primeiro parágrafo do conto. A tradução que utilizamos, para este exemplo, é a de Josely Vianna Baptista, editada pela Iluminuras no volume de contos intitulado Fugados. Eis o parágrafo:

[1] O pano amorado de uma prolongada tristeza pendia dos longos pátios, [2] das câmaras arqueadas que formavam o palácio do Bispado. [3] No centro o grande pátio quadrado parecia inundado de amistosas sombras desde a morte do Monsenhor. [4] Os passos frios dos sacerdotes, [5] que pareciam contados por uma eternidade que se diverte, [6] atravessavam-no como o eco baritonal de um sermão fúnebre. [7] Sempre fora um palácio melancólico, [8] não como o são todos os palácios [9] e sim com a melancolia que antes nos invade que nos possui quando contemplamos um repuxo de escarcha. [10] Agora era algo mais que um palácio melancólico,
 [11] uma tristeza forte e invasiva pesava não como uma sombra, [12] mas como o crepúsculo que vai ardendo seus diminutos címbalos, [13] suas últimas chamas diante da invasão da chuva persistente.

A orientação descritiva deste parágrafo situa-nos na imersão em um estado de coisas que caracteriza o campo afetivo do palácio. Dado este caráter, prevê-se que a jazida de passado a ser descrita comporta-se como um presente único e as imagens que o percorrem são dadas como contemporâneas entre si. Aguçando o olhar sobre este parágrafo, salta aos olhos, por outro lado, a movência que as imagens encontram; elas não se deixam fixar pelo presente que compartilham.

Atente-se para o segmento (§1, 3). O verbo parecer atribuído ao pátio insere um ponto de forte indeterminação da relação temporal entre os termos comparados. Para adentrar na discussão sobre este enunciado e os processos enunciativos que o produziram, é conveniente demonstrar a impossibilidade de traçar uma cadeia dos enunciados dos quais a forma encontrada no conto se depreende que dê estabilidade ao sentido de (§1, 3). Fique claro que não se pretende procurar a verdadeira cadeia de enunciados que esclareceria o sentido próprio de (§1, 3); como já foi dito, a própria construção desta frase proporciona um completo esfumaçamento do sentido. Por isso, considera-se arbitrária cada uma das cadeias apresentadas a seguir, posto elas pretenderem, cada uma ao seu modo, estabilizar o sentido de enunciados já indeterminados do ponto de vista da significação e do sentido por meio de uma progressão que vai do mais indeterminado ao menos indeterminado; o processo enunciativo em foco parece ter como princípio um deslizamento de sentido essencial.

Cadeia (a):

  1. Algo mudou no pátio desde a morte do Monsenhor
  2. Desde a morte do Monsenhor, parecia haver sombras no centro do pátio.
  3. O pátio parecia, em seu centro, estar inundado de amistosas sombras desde a morte do Monsenhor.

 

Neste caso, o escopo de parecer é estar (inundado de sombras). Portanto, o fato de as sombras figurarem como amistosas não é relevante do ponto de vista do deslizamento de sentido operado por parecer. O pátio pareceria inundado de sombras, e poder-se-ia compreender que o narrador, ao falar de sombras, não se refere ao fenômeno físico provocado pela obstrução de um feixe de raios luminosos, mas a sombras como imagens insistentes no espírito dos freqüentadores do pátio desde a morte do Monsenhor. Ressaltar-se-ia, segundo esta interpretação, a dimensão da importância que a presença do bispo tinha para a manutenção de um estado de espírito relevante unicamente para os que tinham contato afetivo com o pátio; esta interpretação, como se vê, lida diretamente com o grau de envolvimento do enunciador com o seu dizer. Chegar-se-ia ao sentido do algo, significante zero, suposto na cadeia (a): algo da sensação provocada pela visão do pátio para um observador cuja memória estivesse tomada pela recordação do Monsenhor, como é o caso do suposto enunciador do texto.

Isto conotaria uma relação entre narrador e o seu relato que ultrapassaria a mera observação dos fatos por uma voz relativamente neutra. Entenda-se que neutra aqui se refere à espécie de relação emocional entre o narrador e o relato. A voz do narrador de "O pátio amorado" parece, numa tal interpretação, tomada por uma memória da qual não se revela, no conto, a motivação. Não se trata da memória pressuposta pelo fato de o conto ser narrado na primeira pessoa, tampouco de uma memória expressa em enunciados como jamais me esquecerei, tão freqüentemente presentes na literatura do século XIX [46] . Acredito estar em causa uma região não-dita da memória que afeta o dizer sobre os acontecimentos - uma zona silenciosa que faz pressão sobre a fala. É evidente que um tal funcionamento, no campo da literatura, surge unicamente como efeito de sentido: o narrador parece ser afetado por regiões de não-dito em sua memória, a qual é apenas suposta pelo leitor para propiciar certos efeitos de sentido.

Cadeia (b):

1. Algo mudou no pátio desde a morte do Monsenhor.

2. O centro do pátio estava tomado por mais sombras do que o usual.

3. Havia tantas sombras que elas pareciam inundar o centro do pátio.

4. Tais sombras não eram intimidadoras, como as sombras usualmente são. Eram, ao contrário, amistosas.

A interpretação feita desta maneira tem grandes diferenças em relação à estabelecida em (a). Desta vez, toma-se sombras como a referência a um fenômeno físico, observável por qualquer pessoa, independentemente do seu envolvimento afetivo com o pátio. O que compõe a figuração, nesta cadeia, é a qualificação do pátio como inundado. Em outras palavras, as sombras figurariam no texto como a descrição de um fenômeno físico, e a razão do uso de parecer é evidenciada pela não-redundância entre inundar e sombras. Diferentemente do que vimos em (a), o uso de parecer se justifica em (b) por um ruído semântico; a qualificação das sombras como amistosas também causa ruído, e está incluída no escopo de parecer. No entanto, a qualificação de qualquer coisa como amistosa quando este adjetivo não redunda com o substantivo adjetivado carrega já algo de subjetivo; dizer que alguém foi amistoso com alguém não necessariamente exprime subjetividade, mas dizer que uma nuvem, uma árvore, uma pedra ou uma sombra é amistosa com certeza denota a presença de uma subjetividade se dizendo. De qualquer maneira, certamente a marca de subjetividade presente nessa figuração não é da mesma ordem que a encontrada na cadeia (a), pois não implica necessariamente uma região silenciosa que se deixa entrever; trata-se de uma ordem de sensação que não denota maiores proximidades com o narrado. A diferença entre a cadeia (a) e a cadeia (b) é, dessa maneira, da ordem do envolvimento entre o enunciador e o seu próprio dizer, e a relação desse dizer com a memória.

Enfim, tanto na interpretação (a) quanto na interpretação (b), para além das diferenças em relação à função expressiva da modalização em "parecer", percebe-se que a sensação causada sobre o narrador pela visão do pátio se expressa de alguma maneira, seja na qualificação metafórica das sombras como amistosas, seja na relação mnemônica do narrador com seu relato insinuada pelo dizer.

Avancemos nossa análise para o segmento compreendido em (§1, 4-6). Neste trecho, há uma série de figurações. Para facilitar a demonstração dessa cadeia, utilizamos o seguinte esquema, de figuração a figuração:

Os passos frios dos sacerdotes atravessavam o pátio.

1. adjetivação de passos como frios.

2. Os passos frios pareciam contados por uma etenidade que se diverte.

3. passos frios atravessavam o pátio como o eco baritonal de um sermão fúnebre.

Se fosse suposto serem simples artifícios poéticos as três figurações utilizadas para os passos, tenderíamos a acreditar que a informação por eles trazida é de menor importância do que um suposto núcleo do enunciado. Qual seria este núcleo? Trata-se do pequeno dito: os passos dos sacerdotes atravessavam o pátio, tomando passos dos sacerdotes como sinédoque de sacerdotes. Todavia, logo se vê não ser isto o importante para este enunciado; importa dizer que os passos dos sacerdotes pareciam ser frios (figuração que, no texto, não conta com qualquer termo próprio para estabelecer a comparação, o que configura metáfora em senso estrito), pareciam ser contados por uma eternidade que se diverte, e que estes passos frios dos sacerdotes atravessavam o pátio como o eco baritonal de um sermão fúnebre. A rigor, do ponto de vista dos planos de enunciação, há predominância de verbos pertencentes ao plano do relato. Porém, lidamos com a vontade de mais-dizer do narrador, o qual, ao mesmo tempo em que parece fazer um movimento de dar mais precisão ao já dito, esgarça o seu sentido. Esse mais-dizer, provavelmente, se inscreve no plano do comentário, à medida que evidencia a presença de um enunciador tomado de simpatia por seu próprio texto. O excesso simbólico tende, neste caso, a operar a mesma indeterminação da relação temporal entretida pelas imagens que verificamos em (§1, 3).

Vale marcar que a presença deste excesso que tende à indeterminação, tanto em (§1, 3) quanto em (§1, 4-6), vem a complexificar o presente da instância de enunciação; a cada nova escolha interpretativa, somos obrigados a alterar nossa perspectiva e passamos de uma ponta de presente desatualizada a outra, pois os circuitos psicológicos que pressupomos em cada série imagética não coincidem entre si. Já não podemos confiar num presente e num passado atualizados, à medida que a imagem percorre, numa mesma série, diferentes circuitos e não cessa de fazer jorrar o tempo em duas direções diferentes: cada deslizamento de sentido implica um novo processo de atualização e virtualização.

Acompanhando a série de enunciados (§1, 10-12), observamos que as imagens comparadas em como não coincidem entre si no que toca à categoria do aspecto verbal. O palácio ser algo mais que um palácio melancólico (§1, 10) se explica por haver uma tristeza forte e invasiva [que] pesava (§1, 11). É interessante perceber que uma tristeza forte e invasiva pesava se relaciona ao ser mais que um palácio melancólico por meio do pronome indefinido algo. Representar-se-ia esta relação por meio do seguinte gráfico:

[agora] era algo mais que um palácio melancólico

algo mais = uma tristeza forte e invasiva pesava

A presença do pronome indefinido e do advérbio de tempo conota uma situação de enunciação na qual o enunciador nos diz: agora havia qualquer coisa de diferente, alguma coisa havia mudado. Ele não começa por dizer: isto era novo e, por isso, dizer que o palácio era apenas melancólico não é o bastante. Com efeito, é introduzida uma casa vazia - algo -, um signo esvaziado de significado. Sobre este zero, iniciará por dizer ser este algo mais o fato de que "uma tristeza forte e invasiva pesava". Porém, ela não pesava como uma sombra (§1, 11), mas como o crepúsculo que vai ardendo seus diminutos címbalos, suas últimas chamas diante da invasão da chuva persistente. Proponho a seguinte representação para este segmento:

[agora] era algo mais que um palácio melancólico

algo mais =

uma tristeza forte e invasiva pesava

(porém)            não (pesava) como uma sombra (*pesaria)

(mas sim)         como o crepúsculo

                                    que vai ardendo seus diminutos címbalos

= suas últimas chamas diante da invasão da chuva persistente    

 

Como se vê, a partir do momento em que o narrador pretende descrever o algo mais, a nova qualidade assumida pelo palácio, entra-se num plano puramente de imagens. Atentemos para as não-redundâncias [47] , para os ruídos semânticos que se espalham nestes enunciados. Em primeiro lugar, temos o evidente par [palácio + ser melancólico], os quais pertencem a topoi diferentes. Porém, rapidamente esta ruptura de isotopia pode ser "remendada" se o leitor a compreender como uma expressão da melancolia causada pela visão do palácio, o que é favorecido pela imagem fornecida em (§1, 9): a melancolia que antes nos invade que nos possui quando contemplamos um repuxo de escarcha.

 

Desta maneira, o ruído proporcionado pela personificação é perfeitamente anulado pela leitura, que arrazoa o seu efeito de delírio. Todavia, a partir do momento no qual o narrador começa a discutir e precisar a imagem fornecida para o algo mais que ele percebia no palácio, parece que o terreno se torna mais movediço, o sentido escapa em meio ao ruído. Em primeiro lugar, diz-se que a tristeza forte e invasiva pesava. Dizer que um palácio é melancólico é algo bastante diferente de dizer que uma tristeza é invasiva e pesa sobre um palácio. Não há ruído quando se diz que uma tristeza é forte, embora isto possa constituir um problema filosófico. No entanto, a afirmação de ser esta tristeza "invasiva" põe em funcionamento uma personificação de outra ordem do que aquela gerada pelo "palácio melancólico": se lermos "invasivo" como referente a "invasão", podemos supor que a tristeza que invadia quem estivesse no palácio o fazia de maneira incontrolável, a tal ponto que não só o palácio trazia uma sensação de melancolia, como também essa sensação parecia um ente exterior a qualquer subjetividade, de tão viva e potente. Se lermos, diversamente, "invasiva" como "agressiva", que é um dos seus significados dicionarizados, ela carregará consigo uma espécie de ameaça, o que se opõe às sombras amistosas de (§1, 3). "A tristeza forte e invasiva pesava não como uma sombra"; desta maneira, o palácio passa a se configurar como uma espécie de ambiente dividido entre as amistosas sombras que inundavam o centro do pátio e a tristeza forte e invasiva que pesava. De qualquer maneira, ser invasiva e pesar são atributos que não redundam com "tristeza", o que os coloca como figuras.

 

O narrador irá caracterizar com imagens o modo como a tristeza forte e invasiva pesa. Novas imagens para precisar as imagens utilizadas para dizer de uma sensação que se sente num pátio: a tristeza pesava como o crepúsculo que vai ardendo seus diminutos címbalos, suas últimas chamas diante da invasão da chuva persistente (§1, 12). Se, há pouco, falava-se das possibilidades do leitor de arrazoar o delírio do narrador por meio de algo como "ele quer dizer que se sentia tristeza no palácio", em (§1, 12) essas possibilidades parecem menores. Isto porque, além de não haver redundância entre "sombra" e "pesar", também não há redundância aspectual entre [sombra + pesar] e [crepúsculo + ir ardendo...]. Por redundância aspectual entendemos a redundância entre o aspecto e o modo de processo entre dois termos de uma comparação quando cada um deles tem valor aspectual separadamente.

 

Do ponto de vista do aspecto dado pela conjugação, a comparação feita em: "uma tristeza...pesava COMO o crepúsculo que vai ardendo..." combina dois verbos com aspecto cursivo. Em primeira instância, não haveria não-redundância entre os dois. Porém, se pensarmos em termos semânticos, veremos que os dois termos da comparação possuem formas divergentes no que tange ao aspecto, pois pesar não implica fim nem começo marcados; já ir ardendo seus diminutos címbalos, suas últimas chamas diante da invasão da chuva persistente implica um fim próximo. Tendo isto em vista, logo se vê a não-redundância aspectual como um meio de sutil manipulação do aspecto de pesar. Como comparar, tendo isto em vista, estas duas imagens?

 

O elemento inquietante exprimido por "algo" em (§1, 10) se torna mais claro, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, o sentido se torna mais obscuro: a tristeza... pesava... como o crepúsculo que vai ardendo... suas últimas chamas...diante da invasão da chuva persistente. Já vimos que se verifica, nesta comparação, uma não-redundância aspectual; portanto, o ruído por ela gerado afeta a compreensão da duração de pesar. Esta dificuldade dada pela comparação entre o que se diz da sombra e o que se diz do crepúsculo é agravada, ainda, pelos pequenos ruídos dentre a série do crepúsculo: [crepúsculo + ir ardendo]; [címbalos + do crepúsculo] = [chamas + do crepúsculo]; [invasão + da chuva]; [chuva + persistente].

Ao final de uma série de imagens inter-relacionadas e permeadas por zonas de ruído, resta um algo cujo sentido ainda está incompleto, por se fazer e já vindo-a-ser. Poder-se-ia estender o trabalho de preenchimento de sentido do pronome indefinido até o infinito; imagem a imagem, o sentido incessantemente tornar-se-ia mais e mais esfumaçado. Talvez seja mesmo esta a natureza do devir do sentido; conforme Paulillo, "as formas de saturação pela determinação (de um nome, de um sintagma) - porque se trata, aqui também, de uma saturação, a função da determinação - "uma espécie de X", por exemplo - no que respeita à não coincidência mot/chose, é mostrar que X, por si só, não garante a adequação; assim, a determinação incide sobre X para melhor circunscrever o sentido, para obter a adequação. No entanto, as formas de determinação produzem um efeito inverso, isto é, ao invés de precisar, "esfumaçam" o sentido de X, projetando para um "além" discursivo, para um "depois", o encontro desse sentido preciso. Nesse sentido, há saturação em relação a um vir-a-ser do sentido" (Paulillo, 2004: 165).

Como procuramos mostrar em nossa deriva teórica e nesta amostragem da análise, no sistema poético de Lezama, as relações lógicas e motrícias entre os corpos são constantemente ignoradas, pois o material da escritura é a imagem que emana dos corpos e das culturas; ela não estabelecem nenhuma relação com uma verdade objetiva que as anteceda; antes, o seu desenvolvimento não-linear (ou numa linha vertiginosa) é contemporâneo das produções de sentido que caracterizam a produção discursiva da verdade histórica. Por isso, quando a escritura abdica de identificar a tarefa de narrar à de encadear ações com respeito aos atributos necessários dos corpos e de suas relações, e passa a ter como referência o desenvolvimento livre da imagem, não poderíamos ter a linearidade do tempo dada pela linearidade lógica; é possível que ainda tenhamos a linha de variação livre da imagem, mas esta não se sustenta em encadeamentos necessários, pois, em se tratando de imagens, já se abandonou em primeira instância a pretensão de calcar as suas relações numa verdade objetiva e inegável face à realidade.

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Gabriel Kolyniak é poeta e pesquisador. Seus livros de poemas, Selado (2003-05), Lavrador em sombra (2004-05), Severo (2005) e Bruto  (2005-06) permanecem inéditos. Mora em São Paulo, onde se dedica à poesia, ao ensino de música e à atividade de pesquisa em literatura. E-mail: gakolyniak@uol.com.br.

Leia também poemas de Gabriel Kolyniak.



[1] Cf. Rubén Rios Avila, "La imagen como sistema", in: Coloquio Internacional sobre la obra de José Lezama Lima: poesía, pp. 126-27.

[2] Idem, p. 129.

[3] Josely Vianna Baptista, "Cardume argenteo de peixes verbais", in José Lezama Lima, Fugados, p. 106.

[4] Cf. a observação de Lezama Lima sobre o papel da imaginação durante o período do descobrimento em "Imagem da América Latina", in César Fernandez Moreno(coord.). América Latina em sua literatura.

[5] Emilio Bejel, op. cit., pp. 134-35.

[6] Tradução livre: "É com Deus que tudo é permitido. Não somente moralmente, porque as violências e as infâmias encontram sempre uma santa justificação. Mas esteticamente, de maneira muito mais importante, porque as Figuras divinas são animadas por um livre trabalho criador, por uma fantasia que se permite qualquer coisa." Gilles Deleuze, Francis Bacon: logique de la sensation, p. 14.

[7] Neste ponto, Lezama é claramente proustiano; este modo de contemplação corresponde ao tempo redescoberto de Proust.

[8] Rubén Rios Avila, op. cit., p. 130.

[9] Gilles Deleuze, A dobra: Leibniz e o barroco, p. 63.

[10] Cf. Benito Pelegrín, op. cit., p. 240.

[11] José Lezama Lima, "En una exposición de Roberto Diago", in: La visualidad infinita, p. 269.

[12] Benito Pelegrín, op. cit., p. 231.

[13] Cf. Claudine Haroche, "L'ellipse (manque nécessaire) et l'incise (ajout contingent): Le statut de la détermination dans la grammaire et son lien à la subjectivité", in: CONEIN, Bernard et alli, Matérialités Discursives.

[14] Claudine Haroche, op. cit., p. 150.

[15] Gilles Deleuze, A filosofia crítica de Kant, p. 16.

[16] Henri Bergson, "Introdução à metafísica", in Bergson - Bachelard. São Paulo: Editora Abril,  coleção Os Pensadores, 1974, p. 37.

[17] Idem, p. 38.

[18] Gilles Deleuze, Diferença e repetição, p. 222.

[19] Idem, ibidem.

[20] Idem, p. 223.

[21] Henri Bergson, op. cit., p. 31.

[22] Henri Bergson, "O pensamento e o movente", in Bergson - Bachelard. São Paulo: Editora Abril,  coleção Os Pensadores, 1974, p. 109.

[23] Idem, ibidem.

[24] Idem, p. 110.

[25] Gilles Deleuze, Bergsonismo, pp. 8-9.

[26] Idem, p. 39.

[27] Gilles Deleuze, Bergsonismo, p. 45.

[28] Essa proposição é de importância capital para a construção do pensamento deleuzeano; em Diferença e repetição, pode-se encontrá-la claramente delineada no capítulo "Síntese ideal da diferença": "a realidade do virtual consiste nos elementos e relações diferenciais e nos pontos singulares que lhes correspondem. A estrutura é a realidade do virtual...", p. 336.

[29] Apud Gilles Deleuze, Diferença e repetição, p. 335.

[30] Gilles Deleuze, Cinema II: a imagem-tempo, p. 123-24.

[31] Virtualmente, pois este ponto contém todo o passado em si; logo, não poderia ser um ponto, mas um modo do contínuo.

[32] Gilles Deleuze, Bergsonismo, p. 46.

[33] Gilles Deleuze, Cinema II: a imagem-tempo, p. 129.

[34] Émile Benveniste, "As relações de tempo no verbo francês", in Problemas de lingüística geral I, p. 261.

[35] Rosana Paulillo, "Procedimentos de análise do discurso referido", in: Sirio Possenti et alli. Análise do Discurso Político: abordagens, p. 30.

[36] Idem, ibidem.

[37] Cf. Gilles Deleuze, Cinema II: a imagem-tempo, p. 101 (nota 21).

[38] Cf. Rosana Paulillo, A enunciação vacilante: formas do heterogêneo no discurso de si, cap. III.

[39] Jacqueline Authier-Revuz, "Hétérogéneite(s) Énonciative(s)", in Langages. Paris, Larousse, n. 73, março de 1984, p. 102.

[40] Dominique Maingueneau, Elementos de lingüística para o texto literário, p. 86.

[41] Émile Benveniste, "Da subjetividade na linguagem", in: Problemas de lingüística geral I, p. 288.

[42] Cf. Gilles Deleuze, Diferença e repetição, pp. 339-42.

[43] V. Émile Benveniste, "O aparelho formal de enunciação", in Problemas de lingüística geral II, pp. 81-90.

[44] Gilles Deleuze, Cinema II: A imagem-tempo, pp. 88-9.

[45] Idem, p.102-3.

[46] Para citar alguns exemplos: em Melville, particularmente no princípio de Billy Budd; em diversos contos de Edgar Allan Poe; em Dostoiévski, como no princípio de Humilhados e Ofendidos etc.

[47] Assinale-se que falamos em termos de não-redundância tavez com certa reserva, à medida que a idéia de redundância prevê a possibilidade de equivalência entre palavra e coisa, o que é, certamente, uma das ilusões que estiveram presentes no quadro conceitual da Semântica. Nosso uso do termo, na realidade, filia-se mais à não-coincidência entre um modo do dizer e as representações já consolidadas que mediam a relação com o real. Este ruído entre representações é o elemento que faz a ligação entre as desestabilizações do sentido e do tempo a partir de um funcionamento desregrado das faculdades (no sentido de fontes específicas de representações) ao qual o conto arrasta, à maneira de Proust.

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