ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A TRANSCRIAÇÃO DE HAROLDO DE CAMPOS E A IDENTIDADE NACIONAL

 

Geovanna Marcela da Silva Guimarães

 

Eu acho que o latino-americano foi e tem sido, até um determinado momento, o terceiro-excluído, ou seja, sua literatura foi entendida como uma literatura menor ou receptora (o próprio Antonio Candido define a literatura brasileira como um galho menor de uma árvore menor que seria a literatura portuguesa). Tenho uma idéia diferente, pois não considero que existam literaturas maiores ou menores. Acho que existem diferentes contribuições à literatura universal, à grande literatura. (...) Minha idéia é esta: não existem literaturas menores, mas contribuições distintas no concerto da literatura universal. Sob essa perspectiva, os latino-americanos, nessa literatura, inscrevem constantemente suas diferenças, desde a chamada fase colonial. (...) Nossas literaturas, chamadas literaturas terceiro-mundistas, marginais ou periféricas, designações que, a meu ver, não descrevem a realidade, contrariamente a outras, que têm vocação mais monolingüe e imperialista (como é o caso específico, por exemplo, de certa parte da literatura francesa e de certa parte da literatura norte-americana), têm uma vocação universal, universalista.

 

(Haroldo de Campos em entrevista concedida à Revista Zunái de poesia e debates no ano de 1997.)

 

A tradução na América Latina é uma discussão que envolve o nacional e o estrangeiro e é de fundamental importância para se entender o processo de assimilação feito pela cultura latina dos padrões culturais das nações europeias. Para se entender isso é preciso levar em conta o princípio de tradução defendido por Haroldo de Campos, que a trata como um processo singular de arte, impulsionadora da interação entre línguas e culturas. Se levarmos em conta tal princípio será possível entender como ocorre o processo de assimilação de padrões estrangeiros de uma cultura “desenvolvida” por uma cultura “subdesenvolvida”. Para Haroldo de Campos tal assimilação só acontecerá quando a tradução feita é de algo universal – algo possuidor em sua essência de uma militância cultural – pois para ele a tradução só assim poderá ser realizada e concebida como algo realmente importante. Por outro lado, a tradução é também um processo criativo, uma transcriação, e não uma mera transposição do original. Essa nova visão da tradução, não mais vista como algo servil, dará uma nova dimensão para a discussão entre o nacional e o estrangeiro, pois ela fará voltar à tona o interesse pelo que é nacional, local e regional e será ela também que confirmará que é do contato com o estrangeiro que o nacional será constituído.

 

Essa visão é compartilhada por outros teóricos da tradução, tais como Antoine Berman, que em seu livro A Prova do Estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica discute o processo de traduçãona Alemanha a partir da ótica dos grandes escritores e filósofos alemães da época: Goethe, Herder, Schlegel, Novalis e Hölderlin. Para Berman, como mostra no capitulo que trata da tradução empreendida por Lutero na Alemanha, o processo de tradução é de grande relevância para a formação de uma cultura: “a formação e o desenvolvimento de uma cultura própria e nacional podem e devem passar pela tradução, ou seja, por uma relação intensiva e deliberada com o estrangeiro” (BERMAN, 2002, p. 62).

 

Para Haroldo de Campos a tradução é um processo que liga autores, espaços e tempos, línguas, culturas e obras, pois a tradução é o encontro, diálogo e relação entre culturas e épocas num determinado tempo e história. Essa relação possibilitará a renovação e a libertação da língua que se tornará estranha para o tradutor, leitor privilegiado e concreto, pois é no encontro com outra língua que os limites que a língua nacional possui se tornam perceptíveis. O reconhecimento dos limites da língua só será possível caso o tradutor tenha o domínio tanto da língua nacional (materna) quanto da estrangeira. Esse domínio do tradutor sobre a língua que fala e a língua que traduz só se dará através do uso da linguagem poética do original como estrutura de engendramento para a poética da língua tradutora. O original (estrangeiro) modifica as estruturas da língua materna do tradutor. É a isso que Haroldo de Campos chama de tradução como crítica e criação. A tradução como crítica é a escolha de uma obra estrangeira, representante do passado de uma nação, como fonte de enriquecimento cultural para a outra nação que entra em contato com ela.

 

O tradutor deve estar ao nível do original para que haja a configuração/criação da língua nacional. A tomada da língua estrangeira como estatuto de criação da língua nacional é chamado por Haroldo de Campos de transcriação, que é algo histórico, pois é a leitura do passado, tradição e cultura de um povo.

 

Como ato crítico a tradução poética não é uma atividade indiferente, neutra, mas – pelo menos segundo a concebo – supõe uma escolha, orientada por um projeto de leitura, a partir do presente da criação, do “passado de cultura”. É um dispositivo de atuação e atualização da “poética sincrônica” Assim é que só me proponho traduzir aquilo que para mim releva em termos de um projeto (que não é apenas meu) de militância cultural (CAMPOS, 1994, p. 64)

 

A leitura do passado e da tradição de uma determinada cultura é feita pela tradução, quando a mesma é tomada no sentido do projeto modernista da antropofagia cultural, que é o pensamento a tradução como “uma estratégia antieurocêntrica, antietnocêntrica, desconstrutiva, articulada a partir do conceito de canibalismo, entendido como apropriação da energia vital do outro, a partir da sua destruição [...]” (LAGES, 2002, p. 910). Numa nota de rodapédo livro Walter Benjamin – Tradução e Melancolia,de Susanna Lages (2002), é dito que “por meio da teorização e prática de Haroldo de Campos, o gesto antropofágico do modernismo brasileiro correu o mundo e está no cerne do projeto de repensar a tradução de uma perspectiva pós-colonial” (p.91). Lages diz que Haroldo de Campos na “Nota Prévia” de um de seus livros, A Operação do Texto (1976), considera a tradução como o dispositivo que desencadeia e desdobra a antropofagia cultural, que é para ele a “devoração” crítica e seletiva dos padrões estrangeiros pelos padrões nacionais.

 

A Antropofagia proporciona ao nacional uma relação dialética e dialógica com o universal, pois com ela o estrangeiro será transcriado e transculturado, não apenas no sentido do texto em si, mas sim no de um dispositivo cultural que se configura como imbricamento de tempos e espaços literários diversos para a manutenção de uma tradição viva, como pensa Haroldo de Campos:

 

Creio que, no Brasil, com a “Antropofagia” de Oswald de Andrade, nos anos 20 [...] tivemos um sentido agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal. A “Antropofagia” oswaldiana [...] é o pensamento da devoração crítica e seletiva do legado cultural universal (...) (CAMPOS, 1983, p. 231)

 

 

Assim, Haroldo de Campos dá à tradução um papel de criação, porque a tradução não é cópia, mas mímese que visa a di-ferença: “na tradução mais do que em nenhuma outra operação literária, se virtualiza a noção de mímese, não como teoria de cópia ou de reflexo salivar, mas como produção da di-ferença no mesmo” (CAMPOS,1981, p. 183).

 

A mestiçagem das línguas é o que romperá com o caráter colonialista e imperialista que uma nação impõe à outra – temos como exemplo de imposição cultural a relação que envolve a América Latina e a Europa. A imposição de uma língua, de uma cultura à outra é uma forma de demonstração de poder e hegemonia de uma nação, dita superior, sobre outra, dita inferior. De igual maneira, isso demonstrará que o encontro entre culturas é violento. Será dentro do contexto cultural da mestiçagem que a tradução terá a função de encontrar em uma única língua várias outras línguas. Com essa nova concepção o tradutor, na visão haroldiana, terá a capacidade de ler minuciosamente as línguas contidas no texto. Para Maria José Coracini em “Identidade e o monolinguismo do outro” (2007) toda língua é estrangeira, na medida em que provoca em nós estranhamentos, e toda língua é materna, na medida em que nela nos inscrevemos, em que ela se faz ninho, lar, lugar de repouso e de aconchego. É esse plurilinguismo que se deixa ver também nas traduções de Haroldo, como observa Susana Lages:

 

Suas transcriações multiplicam-se em traduções, transluciferações, transfingimentos, transficcionalizações, transpoetizações, intraduções, transfusões, transmutações, projetando ao infinito as possibilidades interpretativas e nomeadoras de todo possível ato de tradução e situando-se no horizonte que todas  unifica, sempre parcial e historicamente, na diversidade dos nomes e das línguas; no contexto de uma traição, como ato de violência inerente e necessário à preservação de uma tradição viva (LAGES, 2002, p 92)

 

Esse processo pode ser observado dentro do romance de Mário de Andrade, Macunaíma: O herói sem nenhum caráter, quando o personagem-título se depara com a heterogeneidade dentro da sua língua materna. Macunaíma quando estranha a sua língua sente-se exilado e deslocado. A assimilação da cultura e língua do outro ocasionará a transformação da língua materna. O encontro das línguas é chamado por Coracini de “com-fusão” (fusão de línguas).

 

A tradução proporciona a abertura ao novo. Assim ocorreu com a Europa, cuja literatura incorporou o “novo”, o calor e a exuberância que as traduções tiraram das obras latinas que “aqueceram” a cansada e fria literatura inglesa. Há aqui uma inversão de papéis observada por Haroldo de Campos: é a história da literatura inglesa que se sente rebaixada por causas das traduções presentes em seu acervo. Isso se deve ao pensamento de uma cultura superior, una e homogênea, que põe seus padrões acima dos padrões da cultura latina, que ao contrário, se valeu das traduções como um princípio de formação, conferindo-lhes a imagem de uma cultura heterogênea, híbrida e mestiça. Esse pensamento encontra-se no texto Da tradução como criação e como crítica (1962),de Haroldo de Campos, quando ele cita Ezra Pound, autor da obra Literary essays, que trata a tradução como categoria estética de criação.

 

Para Haroldo de Campos a tradução percorre o mesmo caminho poético percorrido pelo original. Caminho esse que será a transposição da poética do original para o texto traduzido, na verdade, a língua do tradutor. Há nesse processo a chamada isomorfia que dará à obra original uma nova informação estética que a ligará à tradução, fazendo com que original e tradução tenham a mesma forma, porém, com conteúdos diferentes. A igualdade na forma e a diferença no conteúdo, processo de isomorfia, provém da transcriação de signos, que é um projeto estético radical.

 

O tradutor haroldiano é um transformador de signos, cuja tarefa é “reconhecê-los com sua mirada aléfica e, por través deles, redesenhar a forma semiótica dispersa, disseminando-a, por sua vez, no espaço da sua própria língua” (CAMPOS, 1981, p. 189). Com o domínio da língua estrangeira o tradutor conseguirá tirar do original (estrangeiro) aquilo que será necessário à sua obra nacional. Extrair algo do original, é essa a grande realização da tradução. O estranhamento da língua – que ocasionará abertura àquilo que vem de fora – só será sentido quando o tradutor se vê confrontado com a língua estrangeira. Enquanto esse encontro/confronto não ocorre, a língua nacional servirá de “zona de conforto”, devido à crença de que há um domínio do sujeito falante sobre a língua que ele fala. A transformação das línguas não é encarada como uma barreira entre uma língua e outra, mas sim como possibilidades de se adquirir e criar algo novo e diferente, pois vai ser a partir dessa diferença que a tradução conseguirá extrair da obra original aquilo que a mesma não conseguiu dizer. Em Haroldo de Campos, como já foi visto anteriormente, a relação de diferença não será prejudicial ou uma barreira para a constituição de uma identidade latina, pelo contrário, será a possibilidade de se criar algo novo e nacional.

 

Os processos mencionados acima, Isomorfia e Transcriação, são observados nas  traduções poéticas e nos chamados textos criativos (textos intraduzíveis), onde a palavra é tomada como objeto, pois é a partir delas que se pode alargar os sentidos e os sons não percebidos no original. Quanto à isomorfia:

 

Admitida a tese de impossibilidade em princípio da tradução de textos criativos, parece-nos que esta engendra o corolário de possibilidades, também em princípio, da recriação desses textos. Teremos como quer Bense, em outra língua, uma informação estética, autônoma, mas estarão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo  sistema (CAMPOS, 1962, p. 34)

 

Quanto à Transcriação:

 

Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado de  dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor  enquanto possibilidade aberta de recriação.  Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele “ que é de certa forma similar àquilo que ele denota”). O significado, o parâmetro semântico, será apenas tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se pois no avesso da chamada tradução literal (CAMPOS, 1962, p. 35)  

 

A tradução transcriadora só será possível onde há intraduzibilidade, pois é nela que o tradutor tem a liberdade de criar e recriar os signos. No artigo Da tradução como criação e como crítica, Haroldo de Campos lista as principais obras criativas e intraduzíveis e entre elas está, mais uma vez, o clássico da literatura brasileira: Macunaíma: O herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, que é um exemplo de assimilação dentro da América Latina, onde vemos a síntese de todas as linguagens presentes na história de suas origens.

 

Há, também, nesse pensamento uma crítica às traduções convencionais, destituídas de um projeto estético radical, que, nesses casos, só são centradas nas estruturas poéticas mais óbvias, que são a rima e métrica, em detrimento do som e do sentido que percorrem o texto. As traduções convencionais fazem com que o texto se torne uma fonte em que só se pode fazer o recolhimento de palavras, da mesma forma em que ocorre em um dicionário. Haroldo de Campos diz que essas traduções são morigeradas e medianas em comparação com as traduções transcriadoras.  A apreensão do sentido e do som de um texto pelo poeta-tradutor-transcriador traz a necessidade de que ele esteja ao nível do original, caso contrário, não haverá a reconfiguração e criação do original.             

                       

Em Transblanco: reflexões sobre a transcrição de Blanco, de Octavio Paz, com excurso sobre a teoria da tradução do poeta mexicano, a tradução é  tomada como a reconfiguração do chamado intracódigo, presente em todas as línguas, que é algo “cativo” do original e só será libertado com a transpoetização do original em outra língua, ou seja, a tradução, transformando, assim, o nacional em universal. O intracódigo universal passa de uma língua para outra por ser responsável pelas traduções criativas ou intraduzíveis. Ao se fazer a reconfiguração de uma língua para outra o tradutor estará fazendo uma releitura do passado, ou seja, a releitura da tradição de uma cultura.

 

 

A tradução é uma “operação semiótica” em dois sentidos (refiro-me, no caso, à tradução de poesia ou, por extensão, de textos literários análogos em complexidade pelo alto teor de informação estética de sua linguagem). Num primeiro sentido, estrito, a tradução de poesia é uma prática semiótica especial. Visa ao resgate e à reconfiguração do ‘intracódigo’ que opera na poesia de todas as línguas como um ‘universal poético’ ” (CAMPOS., 1994, p. 63)

 

O pensamento de Haroldo de Campos é o mesmo de Walter Benjamin em “A Tarefa do Tradutor” que toma a verdadeira e boa tradução como aquela que apreende o essencial do original. O essencial é o inapreensível, o mistério, em outras palavras, o poético. O intracódigo remete ao conceito benjaminiano de Língua Pura.

Na terminologia de Walter Benjamin – uma terminologia deliberada e ironicamente ontoteológica – esse intracódigo poderia corresponder ao que o autor de “Die Aufgabe des Ubersetzers” (A Tarefa do Tradutor) chama de die reine Sprache (a língua pura)  (CAMPOS, 1994, p. 63)

 

Em Lages é dito que no caso da cultura brasileira a tradução de obras estrangeiras é o meio, por excelência, da apropriação do conhecimento e que “a imagem da apropriação textual como ato de canibalismo representa o contrário do que ele pode representar dentro das culturas ditas hegemônicas: a liberação de um cânone assimilado acriticamente ao longo da história literária – o oposto (complementar?) do etnocentrismo domesticador das culturas anglo-americana ou européia” (LAGES, 2002, p 93). Podemos, mais uma vez, tomar como exemplo dentro do cenário literário brasileiro o romance de Mário de Andrade, Macunaíma: O herói sem nenhum caráter, porque podemos observar em sua estrutura, de forma bem precisa, como ocorre a assimilação dos padrões estrangeiros e quais as consequências que tal assimilação acarreta para o cenário nacional.

 

A estrutura do romance de Mario de Andrade, dentro do cenário modernista brasileiro do século XX, aponta para o conceito de nacional construído pela defesa do indígena como sendo o elemento forte e primitivo da cultura brasileira. Macunaíma encarna o pensamento antropofágico modernista da “devoração” crítica do legado cultural universal elaborado a partir da perspectiva do “mau selvagem” antropófago em oposição à figura do “bom selvagem” submisso e idealizado do romantismo brasileiro dos romances de José de Alencar e de Gonçalves Dias. 

 

O conceito de nacional constrói-se pela defesa do indígena – elemento primitivo e exótico da cultura e capaz de compor esse ‘interior forte’– e é reinterpretado pelo Modernismo como desprovido da roupagem européia, branca e etnocêntrica (SOUZA, 2002, p. 56)

 

Em Macunaíma há a “devoração” antropofágica das culturas indígena e européia, quando o processo de assimilação e tradução da cultura estrangeira é notada no capítulo “Carta às Icamiabas” em que Macunaíma narra às suas súditas, Icamiabas,  toda a sua jornada em busca do Muiraquitã e conta a elas como são os costumes da civilização em oposição aos costumes indígenas. Esse mesmo capítulo serve para vermos como é que a cultura européia chega ao Brasil e como os brasileiros recebem e incorporam no seu cotidiano os padrões importados. Um desses exemplos é a maneira como as Icamiabas são chamadas e vistas pelos eruditos brasileiros. Elas são chamadas de Amazonas e personificadas como sendo guerreiras que cavalgam “ginetes belígeros” e provenientes da Hélade clássica. Essa distorção de personagens nacionais é explicada por Macunaíma – pesaroso de tais contradições – como sendo uma forma mais “formosa” de descrever suas súditas que ficariam dentro dos padrões clássicos.

 

Em Macunaíma, encontramos as várias culturas (européia, africana e indígena) que compõem a identidade brasileira. E este pormenor é personificado no próprio personagem que é um indígena Tapanhumas nascido negro e que ao se lavar numa fonte milagrosa adquire a aparência de um europeu:

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia, tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. (ANDRADE, 2008, p.13)

 

O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada (...) Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos  azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nêle o filho da tribo retinta dos Tapanhumas. (ANDRADE, 2008, p50)

 

Com os seguintes trechos podemos tomar Macunaíma como a representação da identidade brasileira e daí a explicação para ele ser tido como o “herói da nossa gente”. A heterogeneidade característica do romance de Mário de Andrade é, para Carlos Fuentes, responsável por dar dinamicidade aos romances latino-americanos. Portanto, Macunaíma é uma obra dinâmica. É dinâmico por que mistura variadas culturas dentro de apenas uma que é a cultura brasileira. A cultura brasileira, dentro do romance, pode ser considerada como uma cultura constituída de várias outras culturas que se firmam em uma só.

 

O Brasil de Macunaíma é formado por índios, africanos, ingleses, alemães e portugueses inseridos dentro da nossa cultura, mas que ainda mantém seus próprios padrões, da mesma maneira que a cultura brasileira mantém os seus. No caso de Macunaíma, ele é um índio que vai parar na cidade de São Paulo em busca do Muiraquitã, amuleto deixado por Cí. Quando o “herói de nossa gente” depara-se com a Máquina do mundo e seus homens, ele não deixa de lado seus costumes indígenas.

 

O que mais chama a atenção no romance Macunaíma: o herói sem nenhum caráter é a representação de um Brasil que desconhece as suas raízes ao mostrar o quanto a cultura indígena, primeira civilização do Brasil, é desconhecida em toda sua história pelos brasileiros. Por exemplo, constatamos que a linguagem indígena é desconhecida quando os eruditos e letrados brasileiros “não sabem” escrever a palavra Muiraquitã, tão familiar às Icamiabas, e ao darem como a origem do objeto não as regiões indígenas do Brasil e sim as regiões da Ásia.

 

Com esta análise do romance Macunaíma, podemos retomar e entender o processo transcriador e tradutor empreendido por Haroldo de Campos, quando vemos que a cultura brasileira retratada por Mário de Andrade, entendido como um tradutor-transcriador, é uma cultura assimiladora e antropofágica, que no encontro e mistura com outros padrões culturais conseguiu manter e construir a sua identidade e nacionalidade a partir da assimilação antropofágica. Ao ser entendido dessa maneira, Macunaíma, dentro da ótica haroldiana, não será uma submissão aos padrões europeus, mas sim uma transculturação e transvaloração desses padrões, que serão desierarquizados e desconstruídos pelo indígena antropofágico.

 

Haroldo de Campos, ao fazer o diálogo entre os processos de tradução e antropofagia, tem como objetivo mostrar que a cultura latina, mas especificamente a sua literatura, não é uma “cópia inferior” da cultura européia e, sim, que ela é uma cultura tradutora e assimiladora daquilo que lhe foi imposto desde o início da sua formação.

 

Referências bibliográficas:

 

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Editora Agir, 2008

BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica. Tradução: Maria Emília Pereira Chanut. São Paulo: EDUSC, 2002.

CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In: Metalinguagem e  outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 31-48. 

CAMPOS, Haroldo de. “Da Razão antropofágica: Diálogo e diferença na cultura Brasileira” In: Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 231-255

CAMPOS, Haroldo de. “Post-Scriptum; Transluciferação Mefistofaútica”. In: Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 179-191. 

CAMPOS, Haroldo de. Transblanco: Reflexões sobre a transcriação de Blanco, de Octavio Paz, com um excurso sobre a teoria da tradução do poeta mexicano. In: CAMPOS, Haroldo de; PAZ, Octavio. Transblanco. São Paulo: Siciliano. 2º edição. 1994, p. 63-69 

CORACINI, Maria José. Identidade e o monoliguismo do Outro. In: A Celebração do Outro: Arquivo, Memória e Identidade: Línguas (materna e estrangeira), plurilinguismo e tradução. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2007, p. 45-55. 

LAGES, Susana Kampff. Melancolia e Tradução. In: Walter Benjamin: Tradução e Melancolia. São Paulo: Edusp, 2002, p. 65-97. 

SOUZA, Maria Eneida de. “O discurso crítico brasileiro”. In: Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 47-66.

SOUZA, Maria Eneida de. “O espaço nômade do saber”. In: Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 39-46.

 

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