LEO
LOBOS: O DESFILE DE SUA ANIMALIDADE
NA
URBE MULTICULTURAL
Geruza Zelnys de Almeida
o
artista não associa idéias, associa formas,
que para ele são as únicas idéias que contam
-
Décio Pignatari
feroz é a letra que me escreve
-
Leo Lobos
Uma
excitação visual toma o leitor já às primeiras palavras, ou
melhor, pinceladas do poeta-pintor chileno Leo Lobos (Santiago,
1966). Deslocado do ser para o somos, o leitor
deslumbra-se ante a novidade de estar na malha dos
fatos que compõem Uma
visita ao zoológico fantasma e outros poemas.
Esse
é o convite-cartão-postal que Leo nos estende já em
Devagar,
primeiro poema da composição: o vagar divagaroso por novos
lugares, numa velocidade-luz que ilumina a face do homem pós-moderno:
homem-fantasma que, além de ser, está "só" a desfilar
sua animalidade na multiplicidade física do Mundo.
É
assim que países e continentes, sob a penapincel, tornam-se
espaços informes, cujos esboços deslizam e se con-fundem no
espaço-tropical da folhatela: de um lado
Europa,
África, Ásia, Oceania
América do Sul,
(somos)
de
outro,
Paris,
Marnay, Cerquilho,
Sorocaba, Tatuí, Tietê, São Paulo, Santiago
Valparaíso, Isla Negra, Rio de Janeiro...
(Quatro
tempos)
O
mundo por detrás das "colinas de açúcar" seduz e produz
sensações sonoro-visuais no leitor transformado em visitante-caminhante-ciclista.
Imagens essas que abrigam o valor cronotópico, teorizado por
Bakhtin, desta poesia: tempo e espaço estendendo-se e interpenetrando-se
numa perfeita simbiose:
uma
cidade após outra
o tempo
em procissão
fato após fato
dia mais dia
(Quatro
tempos)
circulam
rápidos em uma roda infinita
andam
vão
como
se perseguissem
a
si
mesmos
(Ciclistas)
Passado
ativo no presente e determinante do futuro como se nota em
O sonho de futuras primaveras, dedicado ao poeta Jorge
Oteiza: marcadores temporais perpassando as grades-palavras
da jaula poemática. Ou no espaço físico que se con-verte em
meta-físico nos desvãos de uma memória repleta de saudades
em Minha família não é meu país.
Poeta
itinerante, a contemporaneidade está cravada mesmo em poemas
como Um passeio pela Alemanha é um lugar na parede,
no qual as lembranças germânicas penduram-se "eloqüentes"
na parede-papel, tal qual uma Itabira drummondiana. Assim,
Leo constrói imagens que "falam", "riem", "bailam",
"suspendidas" na "boca" (Falam) de uma
poesia de plasticidade ímpar, irmã de sua pintura ágil e multicolorida.
A
leitura dessa poética é re-veladora das visitas clandestinas
do pintor Leo que, com traços rápidos e certeiros, faz a linguagem
recuperar seu colorido: no espaço em branco, pingos-palavras
desenham "um jardim secreto de Jabucatibas" (somos)
para alimentar o leitor-menino ou contornam "Frida, o gato
negro de CAMAC" (A onze mil quilômetros de distância),
esgueirando-se sinuosamente olhando-nos olhá-la.
Cromatismo que se apresenta muitas vezes sem a presença explícita
das cores, mas com matizes imagéticos que se fundem em clara
e delicada harmonia, como diria Fenollosa:
sabes
bem e mal são
nomes que podem
significar a mesma
flor
(So
you to me)
aí
estás te vejo vir
do verde de tua estância
te vejo rir e rir quero
minha mão
é
tua
mão é
minha mão
(Quatro
tempos)
Esses
matizes sonoro-visuais projetam-se nos núcleos sêmicos: carros,
velocidade, tempo, cidade, ruas, balas, chaminés, dinheiro,
entre outros termos que pro-movem o intercâmbio poemático.
É assim que a modernidade se inscreve na poesia do autor:
imagens em movimento disparam estímulos sobre a retina mental:
o
automóvel está possuído pela força
dos animais que o habitam
(Uma
secreta forma)
e no carro em combustão interna nos
deslocamos paraplégicos
(Hi-tek)
pássaros
de alumínio
rabiscam
o céu de metal
em múltiplas direções
a uma velocidade desconhecida
(Caminhante)
Leo
Lobos eleva tanto o ordinário quanto o extraordinário em traços
paralelos que se tocam: o automático e o mágico mesclam-se
ante o olhar aglutinante de poeta que seleciona e combina
as cores em sua tela:
enigmas
ardem sob
as águas estes momentos
de verdadeiro egoísmo
de guerras totais
misérias humanas
restos
dinheiro sujo
ignorância
estupidez
(Ardendo
sob as águas)
O
pintor sobrepõe imagens de luz e sombra:
Sinosnuvens carregados de
perfumes humanos chovem
no final desta noite sobre
o zoológico de plasma e tudo
retorna nos olhos de um gato
sabiamente
a ser luz solar
e Paris
Paris
é
outro dia.
(Uma
visita ao Zoológico fantasma)
e
o poeta plastifica esse trabalho na construção "sinosnuvens",
que a mente recebe como um portmanteau (sinusvens):
gota-paisagem concreto-abstrata pass(e)ando sua leveza pela
folha de papel. Leveza ouv-ista no tamanho dos versos que
se diluem: concretização de uma nuvem-sibilância movendo-se
ao som do vento.
Mas
não é só na utilização do portmanteau que a influência
de Lewis Carrol é anunciada. O poeta pinta-o em Buscando
luzes na cidade, como a dar uma pista da estrutura multifacetada
e espelhada na qual se funda sua poética: poemas que refletem
outros poemas, reflexos que se estilhaçam mostrando a diversidade
das mesmas imagens atravessadas pelo tempo do olhar:
por
que lugar se entra
se sai do espelho
(Buscando
luzes na cidade)
Na janela como num espelho
do
fundo de uma larga mesa
observo esta imagem
(Mise-en-abîme)
A
configuração rítmico-temporal do mundo moderno é visualizada,
também, na construção hesitante entre versos longos e versos
curtos: movência que expande-contrai-expande o nós-eu-nós
no todo da composição e é arrematada em Um a mais na fila
do que sou:
Ainda
que a cidade se mova inteira
eu não me movo de mim
ainda que as ruas
tu não te moves
ainda que os rios:
um
a mais na fila do que sou
Assimetria simetricamente construída num lirismo particular
que texturiza o estar atônito diante do tumulto de
imagens poéticas:
É
difícil ser um pássaro
e voar contra a tormenta
melhor é como um gato estar
(Três
mulheres, um piano, um gato e uma tormenta)
Trecho
dos mais singulares, síntese do ser-estar em pássaro-gato.
Leo é essa metamorfose atuante na construção de uma tormenta
lingüística na qual se ouvem pintores, poetas, escultores,
filósofos, engenheiros, amigos de est(r)ada. Sabe-se pássaro,
voz individual que se eleva; sabe-se gATO, participante da
uma voz coletiva soante e em eterno diálogo:
sempre
atento escutar
três línguas diferentes falar
um idioma fascinante
misterioso e conhecido
ouvir e ir em sua música
(Idem)
A
sensibilidade cromática e plástica de Leo Lobos faz de sua
poesia um roteiro a ser deliciosamente per-seguido, não como
quem passeia, mas como o animal faminto: sentidos alertas,
olhos atentos, pés e asas dis-postos:
como
o Equador
sob nossos pés descalços
à saída do sol
entre uma e outra costa
voarás
(O
canal passará)
Porque
o lobo é um animal social. Vive em família e só a abandona
quando não há alimento suficiente para todos os membros da
alcatéia. É em busca do alimento poético que o Leo-lobo prepara
seus caminhos... e os nossos:
uma
tribo de pós-modernos coletores
no jardim secreto de Jabuticabas
nos alimentamos
de raízes ancestrais que se perdem no tempo
(somos)
Caminhos
que não se calam, nem quando a tinta negra da noite abocanha
em seu útero silente esse lobo itinerante:
Fluir, leve andar
descalço inflar lentamente os pulmões
pesar
cada passo sentir
cada
instante entrar
silencioso dentro
da
noite
como
se ela
fosses
tu
(Silencioso
dentro da noite)
*
Geruza
Zelnys de Almeida
é mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP.
E-mail
para contato:
geruzazelnys@terra.com.br.
*
Todos
os poemas de Leo Lobos apresentados aqui foram traduzidos
por Cristiane Grando, doutora em literatura pela USP.
E-mail:
crisgrando@yahoo.com.br.
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Veja também
poemas
de Leo Lobos.
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