O OLHAR E A VOZ NO DIVÃ
Gleuza Salomon
Heidegger com Lacan
No verão de 1943, Martin Heidegger parece desconhecer o pré-socrático em Freud, Eros e Thanatos (1), no entanto, proporá aos seus alunos, o fazer da palavra de Heráclito uma nova experiência da origem do dizer. Pedirá o consentimento ao enigma heraclítico do Logos : se não ouvirem simplesmente a mim, mas, se tiverem auscultado (obedecendo-lhe, na obediência) o logos, então é um saber (que consiste em) dizer igual o que diz o logos: tudo é um. O um como o assim como, em sua seqüência, Heidegger comete o ato de recusá-lo, conceitualmente, na perspectiva metafísica. Insere Ártemis, como uma figura metafórica de Heráclito, na medida em que ela é a portadora de luz (vida) e, de opacidade (morte). (2). Isso traz a contradição, justamente no aparecimento destes contrários, o que nos conduz a articular, nestes últimos, as antinomias empedoclianas, exatamente como Freud pensou a sua teoria sobre as pulsões.
Ártemis, na função de protetora da palavra de Heráclito, no fragmento 123, enuncia – A natureza ama ocultar-se. Ela ocupará para Heráclito, o lugar da palavra originária e muda, conforme a interpretação de Heidegger. Este lugar será imutável e nele ecoará a articulação da palavra-a-se-dizer. Por outro lado, observemos que este mesmo lugar, em Freud, será ocupado pela representação da pulsão de morte que é muda por natureza, esta definição foi proposta em seu texto, O Eu e o Isso. Jacques Lacan faz, ao longo de seu ensino, uma incessante interlocução com Heidegger, a ponto de editá-lo como comenta em seu escrito De um Desígnio nos Escritos. O artigo do filósofo tem como título Logos. Neste, Heidegger critica Freud, no ponto que Lacan considera como sendo o de sua eminência, ao ter verificado que o mais profundo afeto é regido pela linguagem.
Lacan considera que o-ser-para-a-morte heideggeriano assemelha-se à pulsão de morte de Freud, com o adendo para a psicanálise, de que é um ser-para-o-gozo, o qual nos interessa particularmente. Todo o trabalho interpretativo do analista visa esvaziar esse gozo, e com isso causará o de-ser do analisando. Nesta operação analítica, visa Lacan, a morte do ser-para-a-morte, o qual como um cartão de visita, como um S1 que representa um sujeito para outro significante, engrenará o sujeito ao saber, assim como à ordem do mundo. Esta definição do significante em Lacan lhe permitirá conceitualizar a segunda morte, ele o fará, precisamente, em seu Seminário sobre a Ética em Psicanálise. Este entendimento do ser em Heidegger, assim como o seu projeto matemático, conduzem Lacan aos matemas, os quais vêm representar o sujeito em sua logicidade linguageira. E, neste fio lógico, o objeto a do pensamento funciona como causa a partir de uma rasgadura da imagem serena do pensamento encontrada na obra de Heidegger, "O que chamamos pensar?" Quanto ao invento do objeto a lacaniano, a voz, contrapô-lo-íamos à Ártemis, nesse mesmo lugar da palavra originária e muda? A voz, enquanto objeto a, na sua função afônica, é causa do furo que ela mesma produz entre a função da linguagem, e àquela da palavra. Em outra perspectiva, Lacan definirá a voz, como uma hiância estrutural, não pertencendo à vertente da palavra e, sobretudo, se apresentará para o sujeito na posição de fora de sentido, como exterior ao sujeito do inconsciente.
Jacques-Alain Miller chama a nossa atenção em relação à voz, em Seminário de Orientação Lacaniana de 11/06/2008, no momento, em que ela ultrapassa a função de objeto a, isso ocorrerá sempre que se dela suspeitar, de só ser semblante, um semblante de gozo próprio ao aparelho significante.
Objetos a lacanianos: o olhar, e, a voz.
O que isso significa? Respondemos com J. Lacan, tanto a voz como o olhar, ambos, não são visíveis ao sujeito em seu campo perceptivo. E será no estudo dos fenômenos psicóticos, na alucinação verbal-auditiva ou visual que os objetos, a voz e/ou o olhar presentificar-se-ão ao sujeito em seu campo perceptivo. Por outro lado, se faz necessário a Lacan estudar o campo das Artes, priorizando o campo escópico, como na pintura, do qual ele extrai o objeto olhar que surge da obra de arte. O olhar está fora, enfim, não se encontra inscrito no campo visual. No entanto, será em Roland Barthes, em seu trabalho sobre a fotografia, ao isolar o punctum perceptivo, que permite a Lacan demonstrar a oposição entre o olho e o olhar. Deparamo-nos com a função lógica dos objetos a, onde o objeto vocal não pertence ao registro sonoro, pois sua função é á-fona. De modo diferenciado do Logos heideggeriano, que consiste em pressupor que se possa tudo dizer a partir da articulação da palavra e de seu próprio eco, Lacan pensa a voz como terceira, inscrevendo-a numa perspectiva topológica.
No que concerne ao Logos, Merleau-Ponty considera que há um Logos do mundo estético, como um campo de significações sensíveis constituintes do corpo e, do mundo. No ponto 11 da homenagem póstuma de Lacan a Ponty (3): somos convidados a nos interrogar sobre o que é da alçada do significante ao se articular na mancha, nos “azulzinhos” e “marronzinhos” de Cézanne, já comentados por J. Lacan em seu seminário 11. Estas pinceladas encantam o filósofo, porque nelas encontra isso com o qual o pintor pretendeu tornar eloqüente a sua pintura, ao denominá-la como pintura falante. Perguntemos a Ponty: nesta fala pictórica está concernido o objeto a lacaniano, como voz? Lacan nos elucida esta questão, logo a seguir deste ponto de elaboração Merleau- Ponty, porque aqui se ultrapassa o campo perceptivo, não se tratará mais disso, mas, sim do campo do Desejo. Este é o terreno da arte que adquire aqui esse efeito: de um Eros do olho e de uma corporalidade da luz, define Lacan com Ponty.
Entramos neste momento, em outro campo, no psicanalítico e nele, ao que nos interessa aqui: direcionar o analisante ao saber de seu próprio gozo como indizível e, é, o objeto a, a voz que ocupará o lugar de indizível para o sujeito e, neste lugar, ela, (a voz) exercerá para esse sujeito, a função de mais-de-gozar. Como lembra-nos Graciela Esperanza (4), Lacan em 1967 afirmou: Há que se separar “Taceo e Sileo” porque o silêncio da operação da análise não se confunde com o objeto a, na condição de voz áfona do eloqüente silêncio pulsional. E ela se pergunta: como o silêncio do analista pode fazer soar o silêncio da pulsão se damos ao termo “tocar” o poder de entrar em contato com o poderoso “mutismo” desta?
Jacques-Alain Miller considera que o sujeito, a cada vez, em sua busca, situar-se-ia em relação a uma cadeia de significantes, ou melhor, em uma rede de significações que lhe são próprias. A instância da voz estará aí, presente, na medida em que é a própria rede de significantes que se agarrará ao objeto indizível. Nesse sentido, a voz é o que não se pode dizer e é isso que se atará a esta rede na qual o sujeito é determinado. Esta definição remete ao "O impossível de dizer" que é o ponto de partida de uma psicanálise.
Pode-se aqui salientar que a este impossível, soma-se "tudo o que não se pode dizer" que é a definição conceitual psicanalítica do objeto voz. E, na música, como seria a função voz? Temos o exemplo de Schoemberg, que radicalizou o cromatismo wagneriano e as formas melódicas do tonalismo desde a sua preocupação com a linha e a cor do som. Ele qualifica as suas primeiras composições como um jogo de luzes e cores. Assim como o seu colega Kandinsky (professor da Bauhaus), pintor e compositor cênico para dança e teatro. Vemos isso mais precisamente no título de sua peça teatral “O som amarelo”. Nele o artista já nos fala da matéria que tenta extrair de suas criações, o som colorista e o movimento. Estes dois artistas antecipam e ilustram a função lógica dos objetos a lacanianos, o músico buscava a cor e o pintor o som. Observa- se que se dá pela via criativa uma mutação dos objetos naturais em seus campos perceptivos, transformando-se em objetos culturais, e em objetos de sublimação (as obras de arte).
Jacques-Alain Miller comenta, em seu ensaio intitulado “Jacques Lacan e a voz”, que o ato de cantar é uma forma de fazer calar o que tem o valor de voz enquanto objeto pequeno a. A tese de Lacan é de que a voz não pertence ao registro sonoro, nesse sentido, ela é afônica, por isso, ela poderá encarnar o furo, ela então, ordenar-se-á ao sujeito do significante, ou melhor, ao sujeito do inconsciente a partir do lugar vazio da castração da qual a voz exercerá sua função de objeto não-substancial. Esse objeto sem substância que encarna “tudo o que não se pode dizer” é a voz como tal. Schoemberg exemplica o vocal em sua Ópera “Moisés e Aarão”, no momento em que a fala de Deus fará através de um sexteto vocal sem palavras, que enuncia, em quatro acordes de três notas, a série fundamental de um trítono central, como exemplifica José Miguel Wisnik em seu estudo O Som e o Sentido, citando Raymond Court.(5)
Concluímos que a voz, como objeto a lacaniano, por não pertencer ao registro sonoro, não é nem palavra, nem entonação, o que permite que um ruído (o som) possa se fazer olhar. O que isso nos mostra é que a função lógica do objeto independe tanto do campo perceptivo ao qual pertence e, tampouco, da fonte biológica no corpo: o ruído ao se fazer olhar passa a encarnar isso que cai do corpo sob a forma de restos.
Podemos ver isso acontecer no campo da pintura. Em Cézanne que nos diz: “Se eu pinto todos esses azulzinhos e marronzinhos, eu os faço olhar como eles olham. Azar se eles duvidam do como eu o faço, é ao misturar o verde matizado a um vermelho, entristece-se uma boca, ou faz-se sorrir uma face”. Lacan conceituará o olhar em O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise exatamente com essas palavras de Cézanne, com os seus “azulzinhos, marronzinhos e branquinhos”, essas manchas que caem dos pincéis do pintor são como as penas que caem do vôo do pássaro, penas, manchas. Esta pena do pintor, este olhar em sua função de corte, cedível, são como restos que caem do corpo humano porque o corpo, justamente, não tem penas, ironiza Lacan. Sendo assim, o olhar, que opera no sujeito que olha, ocorre concomitante à queda do desejo, na medida em que este se relaciona ao desejo do Outro (do grande Outro lacaniano). Nesse momento, o olhar cai do campo perceptivo do sujeito, como demonstra Merlau Ponty, a partir de Cézanne, ao enunciar: é a montanha que me olha, não sou eu que olho a montanha. Esta percepção do olhar de Cézanne, conceito que Merleau Ponty retomará para justamente, exemplificar o olhar, como estando de fora do sujeito. É um resto que cai do sujeito diante da obra de arte. Esta queda Lacan chamará de: a função lógica do objeto ª
O que Lacan traz de novo, tanto para a filosofia como para a psicanálise freudiana, é o sujeito como efeito do significante, por um lado, temos o sujeito do inconsciente, e por outro lado, temos o objeto, restos do que cai do sujeito porque nem tudo do sujeito poderá ser representado pelo significante. Lacan vai além da perspectiva do Renascimento, onde o sujeito era o ponto geometral, agora considera que no fundo do olho o quadro se pinta. Certamente que o quadro está no meu olho, diz Lacan, mas eu estou no quadro. Este reviramento faz com que o ponto do olhar esteja fora, e o que faz a mediação entre eu e o quadro é algo opaco, é a tela. É então que este terceiro elemento, no qual a luz recebe como anteparo, e que forma um espaço de luz, é que é o olhar, que é sempre um jogo de luz e opacidade. Nesse particular, a luz pode causar o efeito de olhar. Recordemos, no entanto, em Heidegger, Heráclito era simbolizado por Ártemis, a representação dos contrários, a luz e o opaco. Heidegger percebeu que a voz poderia ocupar este lugar, mas não pôde sequer imaginar que o olhar também pudesse surgir deste jogo. O olhar faz com que o sujeito entre na luz e é dela que ele é feito.
O Olhar e As Meninas de Velázquez
Em, o Seminário, livro 13: o objeto da psicanálise, Lacan desenvolverá este tema inclusive tendo como aluno Michel Foucault, que a seguir, publicará um ensaio sobre “As Meninas” de Velásquez, com seu título famoso “As Palavras e as Coisas”. O comentário que Lacan fará sobre o quadro de Velásquez, porque entendeu que nele está retratada, justamente, a função do artista enquanto tal, que é a de provocar o olhar. O artista o convoca porque o olhar não está presente no campo perceptivo, por ser de ordem libidinal, e de fora do significante, e cair como um resto. Observemos que Velásquez retrata no quadro “As Meninas”, um pintor e este escondendo o quadro, isso significa que ele está ali escamoteando o olhar. É o pintor que se faz ver, que se faz presente, face ao quadro que está voltado ao avesso para aquele que vê (o espectador). Porém, o pintor ali retratado não dirige o seu olhar para nós, mas ele olha a menina. Nesse sentido, para Lacan, neste quadro o olhar aparece, no entanto, está elidido em sua função. O olhar que está nos olhos do pintor emergirá da divisão que este causa ao vermos que ele, o pintor, olha a menina. Esta distância entre o que é visto e, o que está pintado no quadro, este quadro que nós não vemos, é precisamente o lugar que evoca o objeto olhar. O pintor localiza o que não se pode ver, e que se encontra por baixo da saia da menina. A fenda. O olhar é, então, convocado a elidir esta falta, esta fenda, neste lugar em que a falta se mostraria. Falta algo, e é aí que olhar virá para cobrir, mais especificamente, a castração: a sobre – fi. Citando Lacan, em Escritos - A ciência e Verdade: A infante, a fenda, é o signo que ocupa o lugar decaído, do olhar do pintor; o personagem de Alice carrolliana, construído por meio de seu nome e sua imagem, figura a divisão do sujeito e revela "sobre o próprio falo que ele não passa desse ponto de falta que indica o sujeito".
Isso significa para Lacan que o sujeito está no percebido, é neste ponto que desenvolverá a grife do sujeito. Com esta pintura, Velásquez nos demonstra a função tanto do quadro como a do espelho. E o quanto estas funções são diferenciadas. Neste quadro, “As Meninas” temos tanto o quadro ao avesso, assim como também temos o espelho em função avessa ao especular, pois, sob a superfície do espelho sobrepõe-se a cena que supostamente refletiria o tema do quadro, que virá por encantamento captar a imagem do casal real cujo retrato aí se fixa. A imagem, a cada vez que se olha, é a cada vez mais enigmática, porque será instantaneamente, reenviada pela sua própria , como a dos modelos dentro do próprio quadro. É, então, o espelho que mostra a paisagem, a cena ausente que está aí sendo pintada pelo pintor, o que provocará um descentramento da perspectiva. Lacan intriga-se com esta superposição do quadro sobre o espelho e isso o remete à situação analítica, particularmente, à função escópica, o olhar, na medida em que é ele o que mais elide a castração, a falta do sujeito. A intensidade e latência da pulsão escópica será constituída pelo objeto olhar. Por isso, o quadro pode vir a se inscrever no campo perceptivo e isolar o lugar do objeto a, o vazio, e sua relação com a divisão do sujeito, que se reduzirá ao próprio vazio. É desta divisão que se suporta o desejo, é o olhar, como objeto escópico, e a voz como objeto vocal, que a prática analítica deverá situá-los sem jamais recobri-los.
Para nos atermos um pouco mais sobre, o objeto a, lembremo-nos de que estes dois objetos que desenvolvi até aqui, o olhar e a voz são lacanianos, sendo que é importante elucidar a vocês de que temos mais três objetos freudianos, são eles: o objeto oral, o objeto anal e o objeto fálico. Os cinco objetos, em conjunto, são considerados por Lacan como objetos naturais. Enfim, quais seriam estes objetos? O oral seria, no seminário da Angústia de J. Lacan, o mamilo, o bico do seio e o seio como nutridor. A clivagem, no sentido de separação de funções, onde o mamilo é situado como um ponto erógeno, onde o objeto a como forma oral é soletrada como um pedaço do corpo. E, o seio nutridor, é para Lacan, o ponto de angústia que se faz pela satisfação que é esperada do seio. O objeto anal é capturado na perspectiva do ideal, ou da sublimação. O fálico está presente no corpo na evanescente forma da ereção. O balanço que Lacan faz entre o olho e o olhar, porém, é do olhar que Lacan extrai a relação mais enganadora do sujeito, onde ele desaparece, como nos diz Miller, desaparece de tal modo, que desconhece mais do que nunca o que ele perde naquilo que acredita como sublimação. O objeto vocal que nos é dado pela voz psicótica, precisamente a voz inaudível. Por outro lado, o objeto da cultura é feito a partir dos objetos naturais, do corpo despedaçado, assim veiculamos as reproduções das imagens, e as estocamos. Também, veiculamos a voz, na forma de a registrarmos. Mesmo grandes indústrias, cinematográficas e fonográficas e tutti quanti, são edificadas ao olhar e a voz. Ao objeto oral, temos todos os desequilíbrios dados pelos hábitos alimentares contemporâneos. No objeto fálico, vemos a indústria farmacêutica sendo edificada e referida aos fenômenos de detumescência postos por Lacan, segundo Miller, no cerne de sua elaboração do falo evanescente, e isoladas nas imagens de Salvador Dali, referentes aos relógios moles.
Num terceiro registro dos objetos, depois dos objetos naturais e daqueles equivalentes na cultura, Miller nos mostra os objetos da sublimação, todos os objetos que podem vir no lugar do objeto perdido, ou que podem vir no lugar da Coisa, das Ding. Aqui, deve-se reconhecer considera Miller, o gênio de Marcel Duchamp, nos seus ready-made, e o que a Arte deve a ele pelo seu reconhecimento em um dado contexto. No entanto, apesar do analista ocupar a posição de objeto a, causa de desejo, os seus analisantes não são suas obras. Adverte-nos Jacques-Alain Miller. Vemos aqui que o analisante não ocupa o lugar de objeto do psicanalista, por isso jamais deve ser pensado como um objeto de pesquisa, da ciência. A clínica analítica opera a partir da direção do analista, ele, enquanto função de causa de desejo. E, se há alguma obra, ela se situará além do analista, recorda-nos Jacques-Alain Miller.
Gráfico da Cessão dos Objetos naturais.
A música lacaniana
Retomando, a questão da perspectiva, talvez interesse falarmos da tese de José Miguel Wisnik, na qual, ele desenvolve este tema com o título “O som e o sentido”. Enfim, trata-se de uma tese sobre a perspectiva na música. Também nos interessa aqui este estudo de Wisnik por considerar que a resolução do trítono no acorde equivale à fórmula da perspectiva na pintura, favorecendo o deslocamento do mundo modal, cuja base da escala que se apresentava como pentatônica ou diatônica (escala de sete notas desde os gregos, ao passar pelo cantochão que significa o modo de escalar do ocidente). Segundo ele, as músicas modais, voltadas para a sensação do pulso, onde os desenhos melódicos escalares, assim como os ritmos tendem ao Um, de um certo modo à lógica heraclítica do todo, que está aí presente, o todo e o Um. A hipótese de Wisnik é de que a circularidade em torno do eixo harmônico fixo é este o traço que diferencia o mundo modal do mundo tonal.
A busca de um encontro com a matéria através da decomposição dos elementos também se encontra na literatura, em James Joyce, nos poetas concretos, na narrativa do Nouveau Romain, em Guimarães Rosa, e até em Cantor na matemática, como na criação do princípio matemático e descentralizado da série dodecafônica de Schoemberg.Nos seus ensaios dos anos 70 sobre James Joyce, com uso do recurso da paródia, nos diz Lacan: LOM CAHIM CORPS e NAN-NA KUN, esta frase em 1999 será reinterpretada por Miller para demonstrar que aí, simplesmente, Lacan nos dizia através da homofonia da língua francesa, o homem tem um corpo, diferente do animal que é o corpo. Este referia-se ao fato de que o sintoma é um acontecimento do corpo, é isso que o sintoma é, ao que ele se liga "on l’a l’on a la l’air ou l ‘on l’air de l’on la”. Podemos observar aí, segundo Miller, a música lacaniana: l’on la l’on la de l’air, precisamente, um eco do eco, este que estaria em questão no acontecimento do corpo. Bem mais tarde, como comentou Miller, Lacan nos deixa essa cantiga onde faz uma paródia de Joyce como para diferenciar o homem das espécies animais, pelo fato do homem ter um corpo. Enquanto o animal é o corpo. Há para Lacan uma diferença radical na relação com o corpo, que passa entre o ter e o ser o corpo. Como citamos acima, o la, la, la... O relato que Freud faz dos “distúrbios patológicos da visão” que lhe ocorrera quando se encontrava em Atenas. Por não acreditar que estava ali. Não podia crer em seus próprios olhos. Ter ido tão longe! Estar ali, defronte às colunas gregas do Coliseu, cuja significação lhe foi interditada pelo sintoma, era a satisfação de ter ido muito mais longe do que o seu próprio pai. Este acontecimento do corpo, o escotoma (“distúrbios patológicos da visão”), foi um sintoma que se manifestou em Freud tardiamente, e este acontecimento ele o relata numa carta a Romain Rolland.
No tema da música, Lacan nos disse, tê-la deixado de lado. Talvez retornasse, falava desse modo, mais precisamente, no Seminário 20, intitulado, mais, ainda. No entanto, para Lacan, a voz, por vezes, ocupará a função de ferocidade, na qualidade de voz do supereu, voz que comanda o sujeito em seu gozo: goza ! Precisamente, no Seminário 20, Lacan nos fala do que gira em torno do fato de que “Não há relação sexual”, é a música do epitalâmico e a carta de amor. E, cita Chamber Music, o primeiro livro de James Joyce publicado em 1907, onde escreve poesias dentro de um repertório de vocabulário arcaico da poesia elisabetana, de suas árias singelas às quais pensava em musicá-las. No poema XIII, “eterno/ epitalâmico”, o pedido que o apaixonado faz ao vento, seja qual for, de que este adentre ao pequeno jardim e cante junto à janela da moça, pois, o Amor está sol a pino”. Esta preciosa obra poética joyceana vem tatuar no jovem Joyce o seu modo singular de sujeito, o modo de responder à relação sexual que não há. Um estudo minucioso de Richard Elmann revela na obra de Joyce: uma metrificação rigorosa, efeitos de gradação vocálica em longas cadeias monossílabas, emprego diverso do aliterativo, da assonância e paranomásias, de formas rítmicas da light rime, no arremate dos versos, utilizadas para dar circularidade ao som, e da ressonância num espaço fechado. Ellmann critica Joyce pelo fato de não haver transmitido em seus primeiros poemas, a voz, mas apenas a técnica da linguagem poética, o ensaio, o pastiche. Por outro lado, na produção de Finnegans Wake como um Working in Progress, Joyce rompe com a técnica e inaugura uma nova posição subjetiva, ao inventar esta escrita translingüística.
O certo é que somente o corpo de Joyce gozava com a sua escrita, lembra-nos Miller. O que devemos recordar na referência ao sintoma, é que ele interessa apenas ao sujeito que dele padece. Lacan deixa de lado o Dasein, o vir-a-ser-do sujeito heideggeriano, como resultado da experiência analítica, para se dedicar à topologia dos nós borromeanos. No momento em que Lacan trabalhava este tema, em RSI (6), viaja a Freiburg-in-Brisgau com a intenção de interessar Heidegger na lógica da borracha, enfim, nesta pesquisa do nó borromeu. Assim como, mais tarde busca Dali, em sua passagem por New York, porém, ambos recusaram, tanto a seguir Lacan, como a estudarem este novo paradigma de seu ensino.
Notas
1- Sigmund Freud ilustra a pulsão de vida e a pulsão de morte, com a dialética dos contrários, a do Amor (Eros) e da Discórdia (Thanatos). Ele as extrai do pré-socrático, Empédocles. A pulsão de morte será a grande descoberta de Freud, porém, esta encontrou muita resistência entre os seus alunos, sobretudo em C.G. Jung. No final do “Mal-Estar da Civilização”, Freud nos fala da eterna luta desses contrários na vida subjetiva, e também na vida coletiva. Alerta-nos sobre o destino da espécie humana. Este será decidido pela circunstância em que o desenvolvimento cultural fará frente às perturbações da vida coletiva exercida pela força destrutiva. Este último parágrafo foi escrito por Freud em 1931 anunciando a ameaça de Hitler. Freud termina este ensaio perguntando-se sobre o desenlace deste conflito que antevia.
Referências bibliográficas
1-FREUD, Sigmund. 1973. A pulsão e seus destinos. Madri. Biblioteca Nova.p.2039.
2- Heidegger, M. 1998. Heráclito. Rio de Janeiro. Relume Dumará., pp. 40.
3 - LACAN, Jacques. 2007. O Sinthoma - seminário 23. Rio de Janeiro. Zahar, pp. 204.
4 - ______. 2003. Outros Escritos. Rio de Janeiro. Zahar, pp. 191- 192
5- ESPERANZA, G. 2008. in-Scilicet. Rio de Janeiro. Contracapa, pp. 319- 320.
6- WISNIK, J.M. 1999. O som e o sentido. São Paulo. Companhia das Letras, pp. 185.
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Gleuza Salomon é psicanalista. Publicou, em co-autoria, os livros As Figuras do Vazio (1997) e O brilho da infelicidade (1998). Foi coordenadora do Fórum Social do Mercosul em janeiro e abril de 2008.
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