PARADIGMAS DO NOME DO PAI
E DOS NOMES DO PAI
EM MAR PARAGUAYO
Gleuza Salomon
A
linguagem, a língua, a alíngua (lalangue) e a letra.
Estamos aqui diante de estratificações como a da língua, que
antes de tudo é uma paixão - no cenário psicanalítico.
Ela é, a língua, algo mais que nos é dado e, por isso, não se
trata de aprendê-la. A linguagem não existe como tal, é de
per si uma ficção do real. Estas seriam, aqui, novas
elaborações advindas do estudo da psicanálise aplicada à
literatura e ainda extraídas do seminário XXXIII - Le
Sinthome, editado em livro por Jacques-Alain Miller, no
ano passado, pela Seuil. Nesta obra Lacan pesquisa e constrói
o seu Segundo Ensino - sobre uma das mais geniais obras
literárias do século 20. Philippe Sollers considera que a
partir dela a língua inglesa não existe mais. Argumenta Lacan:
isso se vê apenas
em
Finnegans Wake, de James Joyce!
Reportamo-nos também ao Seminário de Orientação Lacaniana, de
Jacques-Alain Miller, que ao se referir especialmente a este
momento lacaniano, o denomina como contra ensino, onde
Lacan é o seu próprio oponente. Esta estrutura lembra aquela
do conto que encontramos no estilo borgeano. Neste contexto,
Miller cita a Jorge Luis Borges: Um livro que não contém o
seu contra-livro é considerado incompleto.
Sob
estas orientações surge este estudo sobre o livro Mar
Paraguayo, no qual Wilson Bueno inventa, com a escritura (écriture),
a prosa-poema translingüística e com a letra (ver a seguir) a
língua portunhol: "Todos os componentes lingüísticos e sonoros,
indissoluvelmente, língua e fala, estão postos num estado de
variação contínua", comenta o estudioso argentino, Adrián
Cangi.
Lembra-nos Miller de que a escritura já havia sido
formulada por Lacan em seu seminário IX, quando extrai de
Freud o traço unário e ainda salienta, ao traduzi-lo, a
sua qualidade de escritura e com isso é precursor deste
conceito.
Por sua vez, este será um dos conceitos mais polemizados pelo
seu contemporâneo Derrida.
Particularmente, estendemos nosso estudo sobre a alíngua e
para mais alguns outros tópicos anteriormente já trabalhados
por Lacan como por mais alguns psicanalistas. Queremos aqui
contrapô-los a esta nossa, até então, inédita aplicação
psicanalítica sobre o Mar Paraguayo. Estamos
aqui, lado a lado, literatura e psicanálise. Neste
contexto Jacques-Alain Miller, nas páginas anexas do
Le Sinthome nos disse: Lacan apelava à Joyce para dar
mais um passo além do ponto onde Freud parou. A literatura voa
para socorrer a psicanálise que quebra a cara.
Vale aqui lembrar que no artigo publicado na revista Ornicar
5, ano 1975/76, U ou Não existe a metalinguagem, ali
Miller já nos ensinava que uma análise é o atravessamento da
língua única, vemos aqui que é ele o precursor do conceito de
alíngua.
No
caso específico, alíngua é a escrita de cada um, é
uma rede de fonemas repleta de equívocos que a língua
permite,anterior à aquisição da linguagem.
Atenção: será este atravessamento da
alíngua que possibilitará a passagem da linguagem para a
escritura e que fará com que Wilson Bueno invente Mar
Paraguayo?
Bueno ouvia de sua avó contos fantásticos, fábulas e lendas
indígenas na mescla dos híbridos portunhol-guarani. Esta
transmissão oral traz a língua viva de sua raça, de sua
descendência, o tupi-guarani e o português. De seu pai recebeu
o sobrenome espanhol Bueno. Estórias foram murmuradas nos
ouvidos daquele menino que veio a Curitiba, ainda criança e
muito pobre. O escritor fala-nos desta experiência singular,
neste parágrafo de Mar Paraguayo: - higuêra, copa,
sombrêros: la fala ancestral de padres e avuêlos que se van de
infinito a la memória, se entretienem todo habla y tricô:
estas vozes guaranis solo se enterniecen se todavia tecen:
ñandu, de acordo y de entremeio por los arabescos que,
sinfonia, se entreleza, radrez de verde e ave y canto, en el
andamento feliz de una liberdade: ñanduti: ñanduti:
ñandurenimbó.
Por
outro lado, existe um efeito de exclusão do sujeito -
estrutural e concomitante ao fato de que a língua se apropria
da linguagem. Lacan neste momento estabelece um novo paradigma,
onde antes estava o sujeito do inconsciente agora está o
falasser (parlêtre). Este falasser será nomeado como
inconsciente. No início de seu ensino o inconsciente era
considerado como semelhante à linguagem. Citamos um dos seus
célebres paradigmas: o inconsciente é estruturado como uma
linguagem.
Porém, enfocaremos aqui o Segundo Ensino, onde Lacan faz
também da linguagem uma redução da alíngua. A linguagem é uma
elucubração do saber sobre a alíngua, sobre a matéria
significante primordial, que passará pelo léxico, pelo
ordenamento dos vocábulos.
Estamos diante de novos paradigmas da psicanálise,
que nos permitem atravessar o Mar Paraguayo e as novas
barbáries. O ato de "fazer existir" as línguas indígenas, seja
na literatura, seja no próprio ato de falar, nos demonstra por
primeiro que não somos todos racistas, mesmo que isso
ek-sista
em
nós. O
"não-todo" (pas-tout) racista descompleta o "todo" (tout)
implicado no racismo, aí se constitui a sua função lógica.
Esta aporia da exclusão estrutural do sujeito afirma-se em
cada um quando imagina escolher uma língua; todavia,
efetivamente, do que se trata é de optar por ela. Então, é o
caso de falar ou não uma língua. A respeito desse tema
encontramos na página 62, da tradução francesa de "Finnegans
Wake", a pergunta de James Joyce: ...parlez-vous le
gaélique? ...você fala o gaélico? Logo a seguir responde:
Lick-Pa-flai-hai-pa-Pa-li-si-lang-lang. Teria Joyce,
lançando mão da escritura desta frase enigmática, obtido a
inscrição de uma perda referente a um ideal? Seria isto que
havia sido precocemente enunciado em sua juventude no final de
seu primeiro livro Retrato de um artista quando jovem?
Ele, como artista, atribuía-se a missão de trazer: a
consciência incriada (increée) de minha raça. Ou, além
disso, seria o retorno pela escritura de uma resposta cínica à
sua recusa em falar gaélico? Ou o que lhe restara, enfim, era
a alíngua inglesa.
É
precisamente esse paradigma que se evidencia na tradução de
Érin Moure do Mar Paraguayo para o francenglish-mohawk.
O que nos permite ficar sabendo que os quebequenses, por sua
vez, também recusaram terminantemente a falar o mohawk, a
língua indígena daquela região. E agora? Pode a literatura
mudar isso?
Já
brasileiros e paraguaios falam palavras do tupi-guarani tal
como vemos na língua portuguesa brasileira, no portunhol e no
jopará.
Portanto, no ato de falar criamos a língua. Textualmente cito
Lacan: criamos uma língua, na medida em que, a todo
instante, lhe damos um sentido, lhe damos a impulsão, sem a
qual a língua não estaria viva. Ela está viva porque a cada
instante a criamos.
Oswald de Andrade, poeta modernista do romance-invenção,
antecipou o falasser em sua genial citação homofônica
translinguística de Hamlet: tupi or not tupi.
Artífice de sua alíngua sobre a linguagem, Bueno
desencadeia um certo matiz pacificador neste desdobrar de seu
falasser sobre portunhol-guarani atingindo outras línguas,
como na tradução de Mar Paraguayo para o francenglish
mohawk.
Consideramos que o resultado primordial da psicanálise é o
falasser. No ato da fala, ele é a metamorfose de si mesmo.
Atravessa a alíngua onde antes se encontrava a escrita
de seu próprio destino. Logo, é por meio do ser falante que
através da fala para um psicanalista poderá tecer para si
mesmo um novo destino. Por isso, Lacan formula: não existe
inconsciente coletivo! O que existe são inconscientes
particulares, na medida em que cada um impulsiona, a cada
instante, a língua que fala.
Salienta Lacan, ainda na mesma questão, que a
singular escritura de Finnekans Wake se dá pelo uso particular
que Joyce faz de seu sintoma que são os rumores da língua.
Esses rumores que ressoavam em Joyce vêm para compor as
reduções relativas a tudo que se produziu em sua própria época.
Finnegans Wake resulta: "dos discursos e de todas as
vozes daqueles que escreveram".
Roland Barthes toma para si esta interpretação lacaniana e a
postula como paradigmática da obra ímpar de James Joyce.
A
escritura desses rumores passa à condição de linguagem. Lacan
confessa o quanto isso lhe causou perplexidade. No entanto,
cedo percebeu que nada disso é analisável. "O rumor é por
onde tudo se comunica, tudo se atravessa".
Joyce faz uso deste seu sintoma em seu work in progress
que levou 17 anos para ser concluído. Desse uso cria o efeito
do pun, do trocadilho. Lacan considera fascinante que,
em Finnegans Wake,
Joyce jogue com cada palavra onde o seu sentido habitual se
perde. Isso acontece porque ele inventa trocadilho em cada
palavra, uma por uma, em ordem particular. É neste seu
artifício de linguagem que Lacan encontra a função do sinthome
designando-a como: o seu gozo opaco que exclui o sentido.
Em
Mar Paraguaio, Bueno nos informa sobre o seu sintoma,
que se caracteriza pela errância de palavra em palavra,
onde cada uma escreve o erro da outra: Una el error dela
otra.
No hay idiomas aí. Solo la vertigen de la linguagem. Deja-me
que exista.
Observamos que os dois artistas escolhem modos diferentes e
mesmo avessos, quanto às invenções, em suas línguas, sejam
elas o anglogaélico ou o portunhol guarani. Esta aceitação ou
não, da língua, é algo particular de cada um. E, o que nos
interessa - psicanaliticamente falando - é a invenção do
sintoma. Queremos isolá-lo aqui neste estudo como: o rumor da
língua, para Joyce, e a errância da língua, para Bueno. E, o
seu sinthome, apesar de produto da redução de suas alínguas à
linguagem para a escritura possui para cada um formações
completamente diferentes. O rumor da língua em Joyce passa
pelo uso de equívocos compostos de homofonias
translinguísticas que se aparentam ao trocadilho e que pode
ser caracterizado por uma metáfora invertida onde o
não-sentido produz o sentido. Consideramos que a metáfora
produz o sentido no não-sentido. Quanto ao trocadilho, este
teria uma função contrária a fuga de sentido. Neste aspecto,
para Miller, o Witz, o trocadilho, é a forma princeps do
Nome do Pai. E no plural, Nomes do Pai, é um modo de falar da
fuga de sentido.
A errância em Bueno passa pela aparente apropriação
da metonímia translinguística, a escorrer infinitamente da
vocalidade para uma oralidade cuja ortografia é sempre
variável. Mas, a sua escritura institui a fuga de sentido de
uma verdade que quase se revela. Por isso, quase se assemelha
à função lingüística da metonímia que, por sua vez, se
aparentará com o que será para Lacan nomeado como fuga de
sentido e/ou infinito semântico. Esta operação é um como se
à função metonímica, cujo campo comportaria a verdade em
sua condição de oprimida. Talvez devêssemos seguir Lacan,
a respeito do que o teria levado a introduzir a lógica dos
nós borromeanos. Observa que há uma consistência entre
eles e esta só se adere porque eles estão realmente
entrelaçados. Esta é uma metáfora do dizer lacaniano a tentar
nos despertar para um erro relativo a seu ensino. Este erro se
refere ao uso da metáfora, onde comportaria a errância. Por
isso ele se pergunta sobre o que afinal limitaria a
substituição de um significante por outro? Esta operação que
encontramos na metáfora, o que a limitaria? De um certo modo,
os nós demonstram que a mesma errância poderia ser também
encontrada na metáfora, na forma da fuga de sentido, por isso
a pluralização do Nome do Pai. Falamos aqui de um real da
metáfora, o qual coloca Lacan na via do real da experiência
analítica, que é a via do sinthome.
A
errância translingüística
em
Mar Paraguayo
não pára de se escrever na variabilidade do sintoma que passa
da singular experiência do autor com sua alíngua para o
extraordinário acontecimento da invenção de uma língua: o
portunhol. A quarta língua (portunhol) funciona como o nó do
sinthome entre as três línguas faladas (português, espanhol e
guarani), que estão representadas pelos três anodamentos dos
nós borromeanos e de seus campos: Real, Simbólico, e
Imaginário.
Em
suas obras primas, tanto Bueno como Joyce fazem de seu sintoma
um sinthome, isto é: identificam-se com o que lhes é mais
próprio, o núcleo real do sintoma. Isso dá lugar ao falasser (inconsciente)
que se une ao sinthome. E esta operação é designada por Lacan
como Nome do Pai.
É a
função do pai que humaniza o desejo, sendo mais explícito em
Bueno através de sua ars literária, o que lhe resulta
na filiação do portunhol.
Ambos artistas destroem a linguagem da qual precedem, porém
Joyce dissipa-a na língua, ao ponto dela mesma perder a sua
identidade e fundir-se em outras línguas. Bueno, aparentemente,
procura dar ao guarani uma identidade mas, ao longo da sua
escritura, ele vai construindo e desconstruindo o guarani na
sua raiz molecular. Como se a língua guarani fosse um iôiô -
um ir e vir de palavras jogadas do seu "elucidário" (dicionário,
dentro do livro, que verte o guarani para o português) - e
inseridas num movimento de fort-da sem fim, para fora e
para dentro, da tessitura variável e contínua do portunhol. Ou
em palavras inventadas e retiradas de outras línguas como
brinks.
Neste parágrafo, o autor descreve a sua experiência na própria
escritura, como un juego-de jugar: pimpirrota, piribela
floral, loculho sierva, cincinatti, abrolhos, carmencinda,
...Como un juego de jugar: el viejo comtemplativo... esto
relato solo quer y desea sê-lo uno juego-de jugar: como los
dioses en el princípio, en el tupã-karai, antes del des-princípio
de todo, los dioses y su lance de dados, su macabro inventar,
oguera-jera, esto mundo achy: como un juego-de jugar: ñe'ê.
Evidencia-se que, em seu último ensino, Lacan apóia-se mais
sobre a alíngua do que sobre a linguagem. A alíngua
seria concebida como uma secreção de um certo corpo e que
se ocuparia menos dos efeitos de sentido, além do que existem
efeitos que são os afetos, diria Miller. Lemos esta
questão em forma poética no Mar Paraguayo: Queriendo-me
talvez acabe aspirando, en neste zôo de signos, a la urdidura
essencial do afecto que se vá en la cola del escorpión.
Observa ainda Miller que "A cisão entre a língua e a
linguagem, entre a comunicação e a nominação, entre o efeito
de sentido e o afeto, invalida a hipótese anterior de Lacan,
onde o afeto seria redutível a um efeito de sentido. Por isso,
Lacan criou o sinthome, porque o que Lacan nele nomeia é o
quanto o afeto é irredutível ao efeito de sentido. Isto é o
que encontramos
em
James Joyce:
o sinthome é rebelde ao efeito de sentido, por isso é
inanalisável".
A
leitura de Finnegans Wake nos propõe um enigma, na
medida em que desconhecemos o que Joyce quis nos dizer.
Este uso enigmático, em sua escritura, foi o que levou Lacan a
considerar a própria experiência psicanalítica como uma
resposta a um enigma. Isto fará com que ele avance em seu
ensino, quando responde ao enigma com a topologia, como fruto
da conjunção do simbólico com o real. Porém, esta resposta
deverá ainda passar pela via do sentido que a remeterá para
uma nova conjunção: o campo do simbólico e o do imaginário.
Lembremo-nos que os três registros lacanianos: R.S.I. (Real,
Simbólico e Imaginário), serão pensados como uma metáfora dos
Nomes do pai.
O
inglês de Finnegans Wake
Finnegans Wake,
em Joyce bem mais do que uma obra de arte, foi o produto de
seu gozo (mais-de-gozar) da escritura. Lacan considera este
sinthome, um fim a ser alcançado numa análise E acrescenta-lhe
Miller: é a identificação de Joyce ao seu sintoma, é isso o
que se espera de uma análise.
Esta identificação faz com que Joyce leve a literatura a uma
zona fronteiriça. Desde então, a psicanálise trabalha com a
operação resultante da letter-litter, trocadilho
extraído de Joyce por Lacan. O núcleo real do sintoma é um
resto de inanalisável. Isso indicará um novo modo de sintoma,
que não é da mesma ordem daquele que foi até então constituído
como formação do inconsciente. Este sintoma (symptôme),
ao receber uma nova escritura, a de sinthome, "faz
um agrafo à fuga de sentido".
A homofonia translinguística teve como precursor
Lewis Caroll e é reeditada por Joyce em Finnegans. Esta
se aplica magistralmente ao inglês, como observa Lacan na
conferência de junho de 75, na Sorbonne, e mais tarde em Yale.
A língua inglesa, apesar de pouco estudada neste aspecto, é
composta por dois vocábulos, um de raiz latina e outro de raiz
germânica, o indo-europeu e o anglo-saxão, respectivamente. A
genialidade de Joyce foi apropriar-se desta particularidade e
enxertar no inglês outros vocábulos de outras línguas. Contudo,
Lacan escava em Ulysses o conceito joyceano sobre o
trocadilho: a mordida do inconsciente.
Este que recebeu de Jacques Aubert a tradução para o francês
de re-mords de l'inextimité que pode ser traduzido ao
português como: re-mordidos da inextimidade.
O mais impressionante na homofonia translinguística,
além do uso do trocadilho, é encontrar na leitura a
possibilidade da extração da letra. Lacan agradece este
achado em Finnegans por Aubert: Who ails tongue coddeau,
aspace of dumbillsilly? Onde se lê em francês: Où es ton
cadeau, espèce de imbécile? Esta homofonia
translinguística se suporta de uma só letra o ù (o WHO na
frase interrogativa do inglês soa como OÙ em francês). Isto
ocorre conforme a ortografia da língua inglesa, nos comenta
Lacan, onde suspeita do uso ambíguo de Joyce ao inventar
letras porque faz delas um uso individual da fonética. Alerta
Lacan: esta letra foi traçada pelos acidentes da história,
é uma letra que não é essencial à língua e é com ela que Joyce
escreve.
O
Portuñol-Guarani de Mar Paraguayo
Wilson Bueno presta uma justa homenagem aos guaranis que são
os signatários da resistência de uma nação cuja
excepcionalidade continental lhes são atribuídas pela
perpetuação dos seus falares na língua guarani. A astúcia
deste povo surge quando cria ardis de linguagem para confundir
os seus opressores. Nomeiam este fenômeno da língua como
apocopar
que em síntese é um jogo presente na fala guarani, a cortar e
acoplar palavras, até frases, desencadeando um sentido errante,
obscuro e enigmático. A língua é levada a tal extremo que nos
perguntaríamos acerca de um translinguismo. Ocorreria ele
dentro da própria língua guarani? Vemos aqui como os guaranis
reduzem as palavras RESÁ RARI para SAHARI
a significar olhos ariscos, com as duas palavras originárias
perdendo radicalmente o significado inicial. Nesta perda
absoluta do significado se faz um furo que permite uma nova
combinatória de significantes. Poderíamos considerar que numa
análise gramatical e lógica essas palavras passam para a
condição de significantes vocabulares, holofrasísticos
(S1/S2)? Ou seja, quando cortados e colados formam uma nova
palavra e inventam um novo sentido? Ora, classicamente, desta
perda algo se recupera e que é o mais-de-gozar com a
língua, por isso o jogo se perpetua em um puro gozo do dizer.
A
linguagem, esta que seria o estabelecimento da função de
articulação dos significantes no sentido do aprés-coup,
não está em operação. A linguagem não existe aí e, em
contrapartida, temos a afirmação na forma sintomática que algo
passa à ex-sistir: a língua guarani insiste em existir
no real. Esta é uma questão lógica e não literária. Miller nos
remete a Lacan de maio de 68, pois o Seminário recém lançado
neste 1 de março de 2006 se intitula De um Outro ao outro,
nele já se esboçava a elaboração de Lacan como similar ao
portunhol-guarani de Mar Paraguayo: tudo que faz
sentido joga a partida do Nome do Pai. Poderíamos supor que o
apocopar estabelece, como diz Bueno, un juego-de-jogar
com a língua e esta jogada seria semelhante àquela do Nome do
Pai.
É a
essa particularidade da língua guarani que Bueno recorre e
insere em sua escritura, com o fim único de enaltecê-la: Y
mucho más: una lengua capaz de lewiscarrollianamente dobrar-se,
desdobrar-se, en tantos insumissos papeles del decir como solo
los índios, los amantes y los chicos san capaces. Ah! Y também,
por supuesto, los combatentes de la causa literária. Cito
mais um trecho da apresentação de Bueno escrito em portunhol
para o lançamento de seu livro Mar Paraguayo, na cidade
do México: Porã, en guarani, quiere decir "bello", "muy
bello", y el guarani aún que salpicante e sarapintado a lo
largo deste Mar ahora también mexicano, no podría faltar acá,
porã, porãité, porãitereí, puesto que sería traicionar en
nestas olas el puro alelí, el rubro carmesín de una lengua de
resistência prê-colombina.
Por
outro lado, lemos no drama ficcional de Mar Paraguayo
que ele é ainda mais errante; vemos que o desejo e o escárnio
se debatem antagônicos, entre El Niño e El Viejo. A narrativa
em abismo conta e reconta o exílio político de um ditador.
Isso se contrapõe às múltiplas cenas de limiares do
desabrochar da sexualidade do corpo e da idéia fixa da morte,
o desejo e a obsessionalização mórbida da vida. A palavra
"ossessiva" é um neologismo translinguístico: osso + obsessiva,
a carne ossessiva do sexo, onde podemos ler, o falo
órgão (presa e caçador), e o gozo fálico referente ao sujeito
obsessivo (caça e caçador), onde o eu se constitui como falo,
nesta dobradura entre o desejo do outro e o desejo do próprio
órgão, entre o menino e o homem.
Cito aqui a frase, "...Y depués há el niño con sus duros
muslos cavalo- la fuerza inventada del hombre en sus ombros y
en la carne ossessiva del sexo con que ossessivo me busca y
caça: yo, su presa y caçador."
Os
fragmentos poéticos entoam no portunhol a sinfonia guarani
inventada no aleatório nome próprio do cãozinho da
Marafona: Brinks. Neste nome são enxertado os sufixos
diminutivos da língua guarani: Brinksmichîmíra'ymi.
Assim, como o cãozinho não existe, a Marafona olha a sua volta
e se dá conta de que igualmente nada existe mesmo. E,
abruptamente, apreende a solidão em que se encontra e diz a si
mesma: Estoy tan sola: Brinksmichîmíra'ytotekemi. A
mais longa palavra de Mar Paraguayo traz o significado daquilo
que não existe e é esta frase-palavra que finaliza o parágrafo
da página 73 da edição(Iluminuras) brasileira.
De
um certo modo, a Marafona é a caricatura de uma mulher, do
deboche que a faz se travestir de um gozo inconfessável.
Marafona c'est moi! Desse modo, Bueno faz
uma paródia de si mesmo, assim como confessou Flaubert quanto
ao seu personagem ficcional Mme Bovary.
Quanto ao enunciado não existe, consideramos que ele
possa estar aqui sugerido por Bueno. Psicanaliticamente
falando ele nos diz de um dos mais importantes conceitos de
Lacan: "não existe a relação sexual". Esta negatividade
inserida aí requer uma positividade: a de que existe o sintoma.
Como já observamos acima, a estrutura aglutinante do guarani é
declinada sobre a palavra Brinks, desdobrada pelo uso do
diminutivo, na mesma forma de aglutinação repetitiva dos
sufixos que encontramos na língua guarani. Estes foram
traduzidos para o português, como:
Brinkssisinhinhozinhoziinhozinhozinho. Cria-se um efeito de
ordem alusiva e paradoxal que poderia nos levar a perguntar de
novo: afinal, o que não existe? Esta pergunta nos faz lembrar
do sexto paradigma de Lacan - um recorte do sobrevôo
panorâmico que fez Miller. Lá ele nos diz: a alíngua é
o fio condutor do efeito traumático que se produz no humano,
diante da não relação (proporção) sexual, diante da
inexistência da relação sexual. A linguagem por sua vez seria
por onde se inscreve e se sustenta a não-relação.
Está explícito, tanto em Joyce como em Bueno, que ambos passam
a sintraumatizar a experiência com a sexualidade. Sendo
que esta lhes foi a causa traumática, tendo como ponto de
partida o encontro da ordem do inevitável na vida de qualquer
um com o real dos sexos.
O
objetivo de toda filosofia ou sabedoria é a de nos ensinar a
não mais nos preocuparmos com as coisas da vida,
diz Jacques-Alain Miller em seu curso de novembro de 2004, ao
citar Wittgenstein, acrescentando: é a crença de que
os problemas irão se evaporar. Esta crença tem como pano de
fundo, a linguagem órgão, como uma parte do organismo humano,
assim como pensa Chomsky.
Porém, a problemática da vida surge porque "não existe relação
sexual" para a espécie humana.
Esta é uma questão estrita à psicanálise.
Esta ausência de saber, no que concerne à sexualidade, é equivalente
ao postulado da "não-relação": ressalta a falha no saber e
nos indica um certo não está escrito. Por isso, o desejo (enquanto
puro dizer), a sexualidade e o amor serão colocados para a
psicanálise na categoria da contingência.
Lacan, Jacques; De l'inconcient au réel; p.133; Le
sinthome; Ed.Seuil; Paris; 2005
J.-Alain Miller; Interpretação;20/12/96; inédito
|