ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

PARADIGMAS DO NOME DO PAI[1] E DOS NOMES DO PAI[2]

EM MAR PARAGUAYO

 

 

Gleuza Salomon

 

 

A linguagem, a língua, a alíngua (lalangue) e a letra.

Estamos aqui diante de estratificações como a da língua, que antes de tudo é uma paixão - no cenário psicanalítico. Ela é, a língua, algo mais que nos é dado e, por isso, não se trata de aprendê-la. A linguagem não existe como tal, é de per si uma ficção do real. Estas seriam, aqui, novas elaborações advindas do estudo da psicanálise aplicada à literatura e ainda extraídas do seminário XXXIII - Le Sinthome, editado em livro por Jacques-Alain Miller, no ano passado, pela Seuil. Nesta obra Lacan pesquisa e constrói o seu Segundo Ensino - sobre uma das mais geniais obras literárias do século 20. Philippe Sollers considera que a partir dela a língua inglesa não existe mais. Argumenta Lacan: isso se vê apenas em Finnegans Wake, de James Joyce!

Reportamo-nos também ao Seminário de Orientação Lacaniana, de Jacques-Alain Miller, que ao se referir especialmente a este momento lacaniano, o denomina como contra ensino, onde Lacan é o seu próprio oponente. Esta estrutura lembra aquela do conto que encontramos no estilo borgeano. Neste contexto, Miller cita a Jorge Luis Borges: Um livro que não contém o seu contra-livro é considerado incompleto.

Sob estas orientações surge este estudo sobre o livro Mar Paraguayo, no qual Wilson Bueno inventa, com a escritura (écriture), a prosa-poema translingüística e com a letra (ver a seguir) a língua portunhol: "Todos os componentes lingüísticos e sonoros, indissoluvelmente, língua e fala, estão postos num estado de variação contínua", comenta o estudioso argentino, Adrián Cangi.

Lembra-nos Miller de que a escritura já havia sido formulada por Lacan em seu seminário IX, quando extrai de Freud o traço unário e ainda salienta, ao traduzi-lo, a sua qualidade de escritura e com isso é precursor deste conceito.[3] Por sua vez, este será um dos conceitos mais polemizados pelo seu contemporâneo Derrida.

Particularmente, estendemos nosso estudo sobre a alíngua e para mais alguns outros tópicos anteriormente já trabalhados por Lacan como por mais alguns psicanalistas. Queremos aqui contrapô-los a esta nossa, até então, inédita aplicação psicanalítica sobre o Mar Paraguayo. Estamos aqui, lado a lado, literatura e psicanálise. Neste contexto Jacques-Alain Miller, nas páginas anexas do Le Sinthome nos disse: Lacan apelava à Joyce para dar mais um passo além do ponto onde Freud parou. A literatura voa para socorrer a psicanálise que quebra a cara.

Vale aqui lembrar que no artigo publicado na revista Ornicar 5, ano 1975/76, U ou Não existe a metalinguagem, ali Miller já nos ensinava que uma análise é o atravessamento da língua única, vemos aqui que é ele o precursor do conceito de alíngua.

No caso específico, alíngua é a escrita de cada um, é uma rede de fonemas repleta de equívocos que a língua permite,anterior à aquisição da linguagem.[4]

Atenção: será este atravessamento da alíngua que possibilitará a passagem da linguagem para a escritura e que fará com que Wilson Bueno invente Mar Paraguayo?

Bueno ouvia de sua avó contos fantásticos, fábulas e lendas indígenas na mescla dos híbridos portunhol-guarani. Esta transmissão oral traz a língua viva de sua raça, de sua descendência, o tupi-guarani e o português. De seu pai recebeu o sobrenome espanhol Bueno. Estórias foram murmuradas nos ouvidos daquele menino que veio a Curitiba, ainda criança e muito pobre. O escritor fala-nos desta experiência singular, neste parágrafo de Mar Paraguayo: - higuêra, copa, sombrêros: la fala ancestral de padres e avuêlos que se van de infinito a la memória, se entretienem todo habla y tricô: estas vozes guaranis solo se enterniecen se todavia tecen: ñandu, de acordo y de entremeio por los arabescos que, sinfonia, se entreleza, radrez de verde e ave y canto, en el andamento feliz de una liberdade: ñanduti: ñanduti: ñandurenimbó.

Por outro lado, existe um efeito de exclusão do sujeito - estrutural e concomitante ao fato de que a língua se apropria da linguagem. Lacan neste momento estabelece um novo paradigma, onde antes estava o sujeito do inconsciente agora está o falasser (parlêtre). Este falasser será nomeado como inconsciente. No início de seu ensino o inconsciente era considerado como semelhante à linguagem. Citamos um dos seus célebres paradigmas: o inconsciente é estruturado como uma linguagem.

Porém, enfocaremos aqui o Segundo Ensino, onde Lacan faz também da linguagem uma redução da alíngua. A linguagem é uma elucubração do saber sobre a alíngua, sobre a matéria significante primordial, que passará pelo léxico, pelo ordenamento dos vocábulos.[5]

Estamos diante de novos paradigmas da psicanálise, que nos permitem atravessar o Mar Paraguayo e as novas barbáries. O ato de "fazer existir" as línguas indígenas, seja na literatura, seja no próprio ato de falar, nos demonstra por primeiro que não somos todos racistas, mesmo que isso ek-sista em nós. O "não-todo" (pas-tout) racista descompleta o "todo" (tout) implicado no racismo, aí se constitui a sua função lógica.

Esta aporia da exclusão estrutural do sujeito afirma-se em cada um quando imagina escolher uma língua; todavia, efetivamente, do que se trata é de optar por ela. Então, é o caso de falar ou não uma língua. A respeito desse tema encontramos na página 62, da tradução francesa de "Finnegans Wake", a pergunta de James Joyce: ...parlez-vous le gaélique? ...você fala o gaélico? Logo a seguir responde: Lick-Pa-flai-hai-pa-Pa-li-si-lang-lang. Teria Joyce, lançando mão da escritura desta frase enigmática, obtido a inscrição de uma perda referente a um ideal? Seria isto que havia sido precocemente enunciado em sua juventude no final de seu primeiro livro Retrato de um artista quando jovem? Ele, como artista, atribuía-se a missão de trazer: a consciência incriada (increée) de minha raça. Ou, além disso, seria o retorno pela escritura de uma resposta cínica à sua recusa em falar gaélico? Ou o que lhe restara, enfim, era a alíngua inglesa.

É precisamente esse paradigma que se evidencia na tradução de Érin Moure do Mar Paraguayo para o francenglish-mohawk. O que nos permite ficar sabendo que os quebequenses, por sua vez, também recusaram terminantemente a falar o mohawk, a língua indígena daquela região. E agora? Pode a literatura mudar isso?

Já brasileiros e paraguaios falam palavras do tupi-guarani tal como vemos na língua portuguesa brasileira, no portunhol e no jopará.

Portanto, no ato de falar criamos a língua. Textualmente cito Lacan: criamos uma língua, na medida em que, a todo instante, lhe damos um sentido, lhe damos a impulsão, sem a qual a língua não estaria viva. Ela está viva porque a cada instante a criamos.[6]

Oswald de Andrade, poeta modernista do romance-invenção, antecipou o falasser em sua genial citação homofônica translinguística de Hamlet: tupi or not tupi.

Artífice de sua alíngua sobre a linguagem, Bueno desencadeia um certo matiz pacificador neste desdobrar de seu falasser sobre portunhol-guarani atingindo outras línguas, como na tradução de Mar Paraguayo para o francenglish mohawk.

Consideramos que o resultado primordial da psicanálise é o falasser. No ato da fala, ele é a metamorfose de si mesmo. Atravessa a alíngua onde antes se encontrava a escrita de seu próprio destino. Logo, é por meio do ser falante que através da fala para um psicanalista poderá tecer para si mesmo um novo destino. Por isso, Lacan formula: não existe inconsciente coletivo! O que existe são inconscientes particulares, na medida em que cada um impulsiona, a cada instante, a língua que fala.[7]

Salienta Lacan, ainda na mesma questão, que a singular escritura de Finnekans Wake se dá pelo uso particular que Joyce faz de seu sintoma que são os rumores da língua. Esses rumores que ressoavam em Joyce vêm para compor as reduções relativas a tudo que se produziu em sua própria época. Finnegans Wake resulta: "dos discursos e de todas as vozes daqueles que escreveram".[8] Roland Barthes toma para si esta interpretação lacaniana e a postula como paradigmática da obra ímpar de James Joyce.

A escritura desses rumores passa à condição de linguagem. Lacan confessa o quanto isso lhe causou perplexidade. No entanto, cedo percebeu que nada disso é analisável. "O rumor é por onde tudo se comunica, tudo se atravessa".[9] Joyce faz uso deste seu sintoma em seu work in progress que levou 17 anos para ser concluído. Desse uso cria o efeito do pun, do trocadilho. Lacan considera fascinante que, em Finnegans Wake, Joyce jogue com cada palavra onde o seu sentido habitual se perde. Isso acontece porque ele inventa trocadilho em cada palavra, uma por uma, em ordem particular. É neste seu artifício de linguagem que Lacan encontra a função do sinthome designando-a como: o seu gozo opaco que exclui o sentido.

Em Mar Paraguaio, Bueno nos informa sobre o seu sintoma, que se caracteriza pela errância de palavra em palavra, onde cada uma escreve o erro da outra: Una el error dela otra. No hay idiomas aí. Solo la vertigen de la linguagem. Deja-me que exista.

Observamos que os dois artistas escolhem modos diferentes e mesmo avessos, quanto às invenções, em suas línguas, sejam elas o anglogaélico ou o portunhol guarani. Esta aceitação ou não, da língua, é algo particular de cada um. E, o que nos interessa - psicanaliticamente falando - é a invenção do sintoma. Queremos isolá-lo aqui neste estudo como: o rumor da língua, para Joyce, e a errância da língua, para Bueno. E, o seu sinthome, apesar de produto da redução de suas alínguas à linguagem para a escritura possui para cada um formações completamente diferentes. O rumor da língua em Joyce passa pelo uso de equívocos compostos de homofonias translinguísticas que se aparentam ao trocadilho e que pode ser caracterizado por uma metáfora invertida onde o não-sentido produz o sentido. Consideramos que a metáfora produz o sentido no não-sentido. Quanto ao trocadilho, este teria uma função contrária a fuga de sentido. Neste aspecto, para Miller, o Witz, o trocadilho, é a forma princeps do Nome do Pai. E no plural, Nomes do Pai, é um modo de falar da fuga de sentido.[10]

A errância em Bueno passa pela aparente apropriação da metonímia translinguística, a escorrer infinitamente da vocalidade para uma oralidade cuja ortografia é sempre variável. Mas, a sua escritura institui a fuga de sentido de uma verdade que quase se revela. Por isso, quase se assemelha à função lingüística da metonímia que, por sua vez, se aparentará com o que será para Lacan nomeado como fuga de sentido e/ou infinito semântico. Esta operação é um como se à função metonímica, cujo campo comportaria a verdade em sua condição de oprimida. Talvez devêssemos seguir Lacan, a respeito do que o teria levado a introduzir a lógica dos nós borromeanos. Observa que há uma consistência entre eles e esta só se adere porque eles estão realmente entrelaçados. Esta é uma metáfora do dizer lacaniano a tentar nos despertar para um erro relativo a seu ensino. Este erro se refere ao uso da metáfora, onde comportaria a errância. Por isso ele se pergunta sobre o que afinal limitaria a substituição de um significante por outro? Esta operação que encontramos na metáfora, o que a limitaria? De um certo modo, os nós demonstram que a mesma errância poderia ser também encontrada na metáfora, na forma da fuga de sentido, por isso a pluralização do Nome do Pai. Falamos aqui de um real da metáfora, o qual coloca Lacan na via do real da experiência analítica, que é a via do sinthome.

A errância translingüística em Mar Paraguayo não pára de se escrever na variabilidade do sintoma que passa da singular experiência do autor com sua alíngua para o extraordinário acontecimento da invenção de uma língua: o portunhol. A quarta língua (portunhol) funciona como o nó do sinthome entre as três línguas faladas (português, espanhol e guarani), que estão representadas pelos três anodamentos dos nós borromeanos e de seus campos: Real, Simbólico, e Imaginário.

Em suas obras primas, tanto Bueno como Joyce fazem de seu sintoma um sinthome, isto é: identificam-se com o que lhes é mais próprio, o núcleo real do sintoma. Isso dá lugar ao falasser (inconsciente) que se une ao sinthome. E esta operação é designada por Lacan como Nome do Pai.

É a função do pai que humaniza o desejo, sendo mais explícito em Bueno através de sua ars literária, o que lhe resulta na filiação do portunhol.

Ambos artistas destroem a linguagem da qual precedem, porém Joyce dissipa-a na língua, ao ponto dela mesma perder a sua identidade e fundir-se em outras línguas. Bueno, aparentemente, procura dar ao guarani uma identidade mas, ao longo da sua escritura, ele vai construindo e desconstruindo o guarani na sua raiz molecular. Como se a língua guarani fosse um iôiô - um ir e vir de palavras jogadas do seu "elucidário" (dicionário, dentro do livro, que verte o guarani para o português) - e inseridas num movimento de fort-da sem fim, para fora e para dentro, da tessitura variável e contínua do portunhol. Ou em palavras inventadas e retiradas de outras línguas como brinks. Neste parágrafo, o autor descreve a sua experiência na própria escritura, como un juego-de jugar: pimpirrota, piribela floral, loculho sierva, cincinatti, abrolhos, carmencinda, ...Como un juego de jugar: el viejo comtemplativo... esto relato solo quer y desea sê-lo uno juego-de jugar: como los dioses en el princípio, en el tupã-karai, antes del des-princípio de todo, los dioses y su lance de dados, su macabro inventar, oguera-jera, esto mundo achy: como un juego-de jugar: ñe'ê.

Evidencia-se que, em seu último ensino, Lacan apóia-se mais sobre a alíngua do que sobre a linguagem. A alíngua seria concebida como uma secreção de um certo corpo e que se ocuparia menos dos efeitos de sentido, além do que existem efeitos que são os afetos, diria Miller. Lemos esta questão em forma poética no Mar Paraguayo: Queriendo-me talvez acabe aspirando, en neste zôo de signos, a la urdidura essencial do afecto que se vá en la cola del escorpión.

Observa ainda Miller que "A cisão entre a língua e a linguagem, entre a comunicação e a nominação, entre o efeito de sentido e o afeto, invalida a hipótese anterior de Lacan, onde o afeto seria redutível a um efeito de sentido. Por isso, Lacan criou o sinthome, porque o que Lacan nele nomeia é o quanto o afeto é irredutível ao efeito de sentido. Isto é o que encontramos em James Joyce: o sinthome é rebelde ao efeito de sentido, por isso é inanalisável".[11]

A leitura de Finnegans Wake nos propõe um enigma, na medida em que desconhecemos o que Joyce quis nos dizer. Este uso enigmático, em sua escritura, foi o que levou Lacan a considerar a própria experiência psicanalítica como uma resposta a um enigma. Isto fará com que ele avance em seu ensino, quando responde ao enigma com a topologia, como fruto da conjunção do simbólico com o real. Porém, esta resposta deverá ainda passar pela via do sentido que a remeterá para uma nova conjunção: o campo do simbólico e o do imaginário. Lembremo-nos que os três registros lacanianos: R.S.I. (Real, Simbólico e Imaginário), serão pensados como uma metáfora dos Nomes do pai.

O inglês de Finnegans Wake

Finnegans Wake, em Joyce bem mais do que uma obra de arte, foi o produto de seu gozo (mais-de-gozar) da escritura. Lacan considera este sinthome, um fim a ser alcançado numa análise E acrescenta-lhe Miller: é a identificação de Joyce ao seu sintoma, é isso o que se espera de uma análise.

Esta identificação faz com que Joyce leve a literatura a uma zona fronteiriça. Desde então, a psicanálise trabalha com a operação resultante da letter-litter, trocadilho extraído de Joyce por Lacan. O núcleo real do sintoma é um resto de inanalisável. Isso indicará um novo modo de sintoma, que não é da mesma ordem daquele que foi até então constituído como formação do inconsciente. Este sintoma (symptôme), ao receber uma nova escritura, a de sinthome, "faz um agrafo à fuga de sentido".[12]

A homofonia translinguística teve como precursor Lewis Caroll e é reeditada por Joyce em Finnegans. Esta se aplica magistralmente ao inglês, como observa Lacan na conferência de junho de 75, na Sorbonne, e mais tarde em Yale. A língua inglesa, apesar de pouco estudada neste aspecto, é composta por dois vocábulos, um de raiz latina e outro de raiz germânica, o indo-europeu e o anglo-saxão, respectivamente. A genialidade de Joyce foi apropriar-se desta particularidade e enxertar no inglês outros vocábulos de outras línguas. Contudo, Lacan escava em Ulysses o conceito joyceano sobre o trocadilho: a mordida do inconsciente.[13] Este que recebeu de Jacques Aubert a tradução para o francês de re-mords de l'inextimité que pode ser traduzido ao português como: re-mordidos da inextimidade.[14]

O mais impressionante na homofonia translinguística, além do uso do trocadilho, é encontrar na leitura a possibilidade da extração da letra. Lacan agradece este achado em Finnegans por Aubert: Who ails tongue coddeau, aspace of dumbillsilly? Onde se lê em francês: Où es ton cadeau, espèce de imbécile? Esta homofonia translinguística se suporta de uma só letra o ù (o WHO na frase interrogativa do inglês soa como OÙ em francês). Isto ocorre conforme a ortografia da língua inglesa, nos comenta Lacan, onde suspeita do uso ambíguo de Joyce ao inventar letras porque faz delas um uso individual da fonética. Alerta Lacan: esta letra foi traçada pelos acidentes da história, é uma letra que não é essencial à língua e é com ela que Joyce escreve.

 

O Portuñol-Guarani de Mar Paraguayo

Wilson Bueno presta uma justa homenagem aos guaranis que são os signatários da resistência de uma nação cuja excepcionalidade continental lhes são atribuídas pela perpetuação dos seus falares na língua guarani. A astúcia deste povo surge quando cria ardis de linguagem para confundir os seus opressores. Nomeiam este fenômeno da língua como apocopar[15] que em síntese é um jogo presente na fala guarani, a cortar e acoplar palavras, até frases, desencadeando um sentido errante, obscuro e enigmático. A língua é levada a tal extremo que nos perguntaríamos acerca de um translinguismo. Ocorreria ele dentro da própria língua guarani? Vemos aqui como os guaranis reduzem as palavras RESÁ RARI para SAHARI a significar olhos ariscos, com as duas palavras originárias perdendo radicalmente o significado inicial. Nesta perda absoluta do significado se faz um furo que permite uma nova combinatória de significantes. Poderíamos considerar que numa análise gramatical e lógica essas palavras passam para a condição de significantes vocabulares, holofrasísticos (S1/S2)? Ou seja, quando cortados e colados formam uma nova palavra e inventam um novo sentido? Ora, classicamente, desta perda algo se recupera e que é o mais-de-gozar com a língua, por isso o jogo se perpetua em um puro gozo do dizer.

A linguagem, esta que seria o estabelecimento da função de articulação dos significantes no sentido do aprés-coup, não está em operação. A linguagem não existe aí e, em contrapartida, temos a afirmação na forma sintomática que algo passa à ex-sistir: a língua guarani insiste em existir no real. Esta é uma questão lógica e não literária. Miller nos remete a Lacan de maio de 68, pois o Seminário recém lançado neste 1 de março de 2006 se intitula De um Outro ao outro, nele já se esboçava a elaboração de Lacan como similar ao portunhol-guarani de Mar Paraguayo: tudo que faz sentido joga a partida do Nome do Pai. Poderíamos supor que o apocopar estabelece, como diz Bueno, un juego-de-jogar com a língua e esta jogada seria semelhante àquela do Nome do Pai.

É a essa particularidade da língua guarani que Bueno recorre e insere em sua escritura, com o fim único de enaltecê-la: Y mucho más: una lengua capaz de lewiscarrollianamente dobrar-se, desdobrar-se, en tantos insumissos papeles del decir como solo los índios, los amantes y los chicos san capaces. Ah! Y também, por supuesto, los combatentes de la causa literária. Cito mais um trecho da apresentação de Bueno escrito em portunhol para o lançamento de seu livro Mar Paraguayo, na cidade do México: Porã, en guarani, quiere decir "bello", "muy bello", y el guarani aún que salpicante e sarapintado a lo largo deste Mar ahora también mexicano, no podría faltar acá, porã, porãité, porãitereí, puesto que sería traicionar en nestas olas el puro alelí, el rubro carmesín de una lengua de resistência prê-colombina.

Por outro lado, lemos no drama ficcional de Mar Paraguayo que ele é ainda mais errante; vemos que o desejo e o escárnio se debatem antagônicos, entre El Niño e El Viejo. A narrativa em abismo conta e reconta o exílio político de um ditador. Isso se contrapõe às múltiplas cenas de limiares do desabrochar da sexualidade do corpo e da idéia fixa da morte, o desejo e a obsessionalização mórbida da vida. A palavra "ossessiva" é um neologismo translinguístico: osso + obsessiva, a carne ossessiva do sexo, onde podemos ler, o falo órgão (presa e caçador), e o gozo fálico referente ao sujeito obsessivo (caça e caçador), onde o eu se constitui como falo, nesta dobradura entre o desejo do outro e o desejo do próprio órgão, entre o menino e o homem. Cito aqui a frase, "...Y depués há el niño con sus duros muslos cavalo- la fuerza inventada del hombre en sus ombros y en la carne ossessiva del sexo con que ossessivo me busca y caça: yo, su presa y caçador."

Os fragmentos poéticos entoam no portunhol a sinfonia guarani inventada no aleatório nome próprio do cãozinho da Marafona: Brinks. Neste nome são enxertado os sufixos diminutivos da língua guarani: Brinksmichîmíra'ymi.

Assim, como o cãozinho não existe, a Marafona olha a sua volta e se dá conta de que igualmente nada existe mesmo. E, abruptamente, apreende a solidão em que se encontra e diz a si mesma: Estoy tan sola: Brinksmichîmíra'ytotekemi. A mais longa palavra de Mar Paraguayo traz o significado daquilo que não existe e é esta frase-palavra que finaliza o parágrafo da página 73 da edição(Iluminuras) brasileira.

De um certo modo, a Marafona é a caricatura de uma mulher, do deboche que a faz se travestir de um gozo inconfessável. Marafona c'est moi! Desse modo, Bueno faz uma paródia de si mesmo, assim como confessou Flaubert quanto ao seu personagem ficcional Mme Bovary.

Quanto ao enunciado não existe, consideramos que ele possa estar aqui sugerido por Bueno. Psicanaliticamente falando ele nos diz de um dos mais importantes conceitos de Lacan: "não existe a relação sexual". Esta negatividade inserida aí requer uma positividade: a de que existe o sintoma.

Como já observamos acima, a estrutura aglutinante do guarani é declinada sobre a palavra Brinks, desdobrada pelo uso do diminutivo, na mesma forma de aglutinação repetitiva dos sufixos que encontramos na língua guarani. Estes foram traduzidos para o português, como: Brinkssisinhinhozinhoziinhozinhozinho. Cria-se um efeito de ordem alusiva e paradoxal que poderia nos levar a perguntar de novo: afinal, o que não existe? Esta pergunta nos faz lembrar do sexto paradigma de Lacan - um recorte do sobrevôo panorâmico que fez Miller. Lá ele nos diz: a alíngua é o fio condutor do efeito traumático que se produz no humano, diante da não relação (proporção) sexual, diante da inexistência da relação sexual. A linguagem por sua vez seria por onde se inscreve e se sustenta a não-relação.

Está explícito, tanto em Joyce como em Bueno, que ambos passam a sintraumatizar a experiência com a sexualidade. Sendo que esta lhes foi a causa traumática, tendo como ponto de partida o encontro da ordem do inevitável na vida de qualquer um com o real dos sexos.

O objetivo de toda filosofia ou sabedoria é a de nos ensinar a não mais nos preocuparmos com as coisas da vida, diz Jacques-Alain Miller em seu curso de novembro de 2004, ao citar Wittgenstein, acrescentando: é a crença de que os problemas irão se evaporar. Esta crença tem como pano de fundo, a linguagem órgão, como uma parte do organismo humano, assim como pensa Chomsky.

Porém, a problemática da vida surge porque "não existe relação sexual" para a espécie humana. Esta é uma questão estrita à psicanálise.

Esta ausência de saber, no que concerne à sexualidade, é equivalente ao postulado da "não-relação": ressalta a falha no saber e nos indica um certo não está escrito. Por isso, o desejo (enquanto puro dizer), a sexualidade e o amor serão colocados para a psicanálise na categoria da contingência.


 

Obs.: As traduções das citações do francês para o português foram realizadas por Gleuza Salomon.

[1] Ornicar? Digital; número 290; José Antonio Naranjo: "O pai é um referente vazio ou o referente do pai está vazio. Isso significa dizer que se supõe ao pai responder no ponto do furo do Outro: o Outro tem um furo e o Nome-do-Pai é a invenção habilitada para tapar esse furo. Isso é o que ele tem de semblante, mas não quer dizer que o Nome-do-Pai possa responder por furo, tal como queria Lacan na primeira etapa de seu ensino. O Nome-do-Pai não é a garantia do Outro, mas, simplesmente, o que evita nos confrontarmos com o que o Outro tem de mais dilacerador: sua incompletude e inconsistência".

[2] Sabemos que Lacan tal como Joyce faz um trocadilho no próprio título deste seminário precocemente abortado que se intitulava Os não tolos erram (Les Noms dupes errent) sendo que homofônicamente também lemos Os Nomes do Pai (Les Noms du Père). Lacan faz aqui uma crítica aos psicanalistas que erram (utilizando o duplo sentido: êrro e errância) ao interpretarem o sintoma pela via do sentido e desconhecedores da pluralização do Nome do Pai.

[3] J.-Alain Miller; Interpretação; 20/12/96; inédito

[4] idem

[5] idem

[6] J.Lacan; Le Sinthome; Seuil; Paris; p. 236; Jacques-Alain Miller; Annexes

[7] Lacan, Jacques; De l'inconcient au réel; p.133; Le sinthome; Ed.Seuil; Paris; 2005

 

[8] Jacques-Alain Miller; Peças avulsas; Curso nº 8; p. 85; 26/01/2005; Paris; inédito

[9] idem

[10] Néstor Perlonguer; Mar Paraguayo; Prefácio

[11] J.-Alain Miller; Interpretação;20/12/96; inédito

[12] Salomon, Gleuza; O sujeito e seu sintoma; Barcelona; El Partenaire-Síntoma; 1998

[13] J.Lacan; Le Sinthome; Seuil;Paris; J.Alain Miller; Annexes

[14] La Morsure du mot d'esprit;Ulysses; nouvelle traduction de Jacques Aubert, p.27: remords de l'inestimé "p.200 Annexes. Le Sinthome; p.164. Podemos traduzir como remorsos do inestimável.

[15] Chama-se  "apocopar": este jogo lingüístico onde cortam as palavras e em seguida as reúnem, sempre em uma nova forma. Surgem assim sempre novas palavras durante a conversação. Parece que em cada frase surge uma nova língua que se inventa no próprio ato da fala. Um jogo secular, lingüístico e social que compõe a comunicação entre os guaranis.

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