ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

DO ÊXTASE OBSCENO

Resenha do livro: Llama de amor viva: sextynas (em medida velha e medida nova)

 

Henrique Marques Samyn

 

O título da obra, extraído de um poema de San Juan de la Cruz, sugere que os versos nela encerrados remetem à experiência mística, como os compostos pelo doutor da Igreja: "¡Oh llama de amor viva / que tiernamente hieres / de mi alma en el más profundo centro!". Contudo, basta uma leitura superficial para que percebamos que o teor das sextinas de Joaquim Estevez da Guarda é radicalmente outro: o mestre espanhol, como descobrimos através do prefácio de Xosé Lois García, é na verdade uma referência para um autor de feição bastante diversa. Joaquim Estevez da Guarda, poeta português radicado no Rio de Janeiro, tange com seu estro um temário que, se busca algum êxtase, é aquele que emerge da carne em suas vivências mais lascivas. Trata-se de uma poesia francamente pornográfica - tom, aliás, que se explicita já na primeira estrofe do livro:

A crueldade da sede
muitas vezes esquecida
atiça, amiga, cobiça.
Gemidos brotam gozosos
pois vemos do cu à garganta
nuas deusas mortíferas.

A obra é composta por dez sextinas construídas em formas diversas. Algumas permanecem mais próximas do modelo inventado por Arnaut Daniel, um dos nomes maiores do trovadorismo occitânico; outras têm forma mais livre; em todo caso, a estrutura mínima da sextina, com a utilização de seis palavras finais em posições únicas em seis sextilhas, demanda um grande domínio formal. Joaquim Estevez da Guarda utiliza, nos poemas, não apenas decassílabos, mas também redondilhas - essas, em verdade, mais afeitas à sua dicção, que no verso de sete sílabas desenvolve-se com maior fluidez. Demonstra-o, por exemplo, a segunda estrofe do quarto poema, "Sextynajoelhada":

Eis a canina beleza!
Oferecer-se de quatro
é manha antiga, oferta
à qual não resiste a porra.
Até feias viram musas
p'ro que tem taras que bastam.

Note-se que, nos dois primeiros versos, a tônica recai na quarta sílaba; no terceiro e no quarto versos, a tônica é a quinta sílaba; no quinto, a tônica permanece sendo a quinta sílaba, mas o acento secundário é deslocado da segunda para a terceira; já o sexto e último verso retoma o ritmo dos versos iniciais. Essa variação não apenas confere maior riqueza rítmica à estrofe, mas também se coaduna com o teor dos versos em questão: a acentuação enfatiza, no penúltimo verso, as palavras 'feias' e 'musas'; e, no verso seguinte, oscila para ressaltar a palavra 'taras' - demonstração, por conseguinte, de um hábil uso das possibilidades métricas.

Em "Llama de amor viva", a poesia de Joaquim Estevez da Guarda dialoga formalmente com Camões e Sá de Miranda; inspira-se, quanto ao tema, na obra de Sade e nas picantes estórias de Procópio sobre Teodora, a imperatriz romana; e realiza, ao fim e ao cabo, um lúbrico catálogo dos prazeres carnais em que nenhuma possibilidade permanece inexplorada. Não apenas o apetite fálico persiste insaciável, mas também a sede das fêmeas, sejam "domnas", moças ou ninfas, jamais encontra um termo. Aliás, vale ressaltar que estamos aqui em uma tradição priápica e masculina - que não se procure, portanto, nesses versos, mulheres que não se reduzam a objetos para o prazer masculino: aqui, só estão aquelas que "Nuas, só de sandálias, qual cadelas / treinadas, curvam-se exibindo as coxas / grossas que emolduram as suas bundas. / Submissas, não gozarão; darão gozo".

Diversas serão as acusações que alguns farão às sextinas de Joaquim Estevez da Guarda: machistas, obscenas, falocêntricas... pornográficas. Não se deve, entretanto, pedir à poesia o moralmente correto: trata-se, sempre, de dar voz ao desejo - mesmo que para mantê-lo enquanto tal, alheio ao ato. Ademais, quanto à sexualidade, poucas coisas podem ser mais prejudiciais do que a privação do lúdico - que envolve, quase sempre, algum tipo de jogo de poder. E, ao menos nesse campo, o jogo sempre pode ser invertido.

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Henrique Marques Samyn é escritor e ensaísta, autor de Poemário do desterro. Doutorando em Literatura Comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 

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Nota: O livro Llama de amor viva: Sextynas é de feitura artesanal, sendo distribuído no Brasil pela Editora e Livraria Crisálida de Belo Horizonte: tel.: (31) 3222-4956, e-mail: livraria@crisalida.com.br. A obra também pode ser adquirida junto ao próprio autor, que responde no joaquimestevez@hotmail.com

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