CANTAR
AS MÁQUINAS E DILACERAR O CORPO:
A PROPÓSITO DAS ODES DE ÁLVARO DE CAMPOS
Izabela Leal
"O
dilaceramento é a expressão da riqueza. O
homem insípido e fraco é incapaz disso."
(Georges Bataille)
Ao pensar sobre as possibilidades
que a arte nos oferece, penso que há uma que é, para mim,
das mais fundamentais, não digo nem a mais importante, mas
uma das que mais me fascina e me impele a pensar: poderia
dizer que esta possibilidade é a que se descortina toda vez
que observamos a arte como o lugar de uma experiência que
aponta para um além das relações ordinárias que estabelecemos
nos nossos atos cotidianos com os objetos que nos rodeiam;
ela aponta, se quisermos, para um "além do princípio
do prazer", para um extremo que inscreve a morte no horizonte
da própria vida, fazendo com que, no mesmo movimento, ela
se torne a afirmação mais radical da vida.
Nietzsche,
em A origem da tragédia, já se perguntava o que poderia
ser um "anseio do feio", por oposição ao "anseio
de beleza", isto é, uma disposição para tudo aquilo que
é "terrível, maligno, enigmático, aniquilador e fatídico
no mundo da existência". (NIETZSCHE, 2003, p.17)
Para o filósofo, essa disposição,
que em alguns momentos se apossa do homem, não é um signo
de fracasso e doença, mas ao contrário, de superabundância
e saúde. E é esta propensão que lhe permite "ver a arte
com a óptica da vida", com toda a sua riqueza e complexidade,
já que da vida fazem parte tanto os movimentos de construção
quanto os de destruição.
Nesse sentido, a arte representa a abertura de brechas num
mundo dominado pelos hábitos e pelas obrigações da vida social,
ela é aquilo que pode nos arrancar da banalidade em que vivemos
para lançar-nos numa dimensão de estranhamento e de intensidades,
ou seja, para colocar-nos diante
daquilo que é o mais longínquo e o mais desconhecido.
A poesia é um dos modos de empreender esse movimento.
Não só porque destrói o caráter
instrumental e referencial das palavras, libertando-as
da necessidade da representação a partir da qual as palavras
funcionam apenas como uma moeda de troca entre os homens,
mas também porque é a transformação do ato de escrever num
ato de contato com o que nos aterroriza, com a nossa própria
angústia diante do desconhecido. Muitos foram os poetas que
experimentaram a insuficiência da existência e manifestaram-na
como um desejo de querer ser tudo, de tudo conhecer e abarcar.
É claro que esta ambição só se realiza através de seu próprio
fracasso, pois o desconhecido permanece sempre como a parte
mais instigante de nós, como aquela que desperta e mobiliza
o nosso pensamento. É como se existisse a necessidade de uma
expansão ilimitada da existência, uma sede de infinito que
nos religaria ao absoluto, à totalidade, embora saibamos que
essa ambição é irrealizável e que o extremo de toda e qualquer
experiência será sempre o enfrentamento de um não-saber.
Essa
necessidade de expansão da existência está diretamente relacionada
ao surgimento da sociedade burguesa, regida pelas ordenações
do trabalho e dos meios de produção. O mundo do trabalho e
da razão opõe-se ao mundo irracional, ao mundo da violência,
e é justamente a partir dessa separação que o trabalho adquire
a sua consistência e torna-se um valor. O trabalho é, portanto,
o princípio que organiza a vida humana, que constrói os alicerces
da coletividade e de uma eficácia produtiva. Mas por trás
dessas formas domadas pelo trabalho subsistem as forças da
violência, que não foram totalmente absorvidas pela razão.
Em épocas passadas, essas forças violentas inerentes à existência poderiam ser vivenciadas
através de uma relação com o sagrado, sendo o sagrado a representação
do inacessível, do desconhecido, mas também a própria vida
tomada em seu caráter ardente. As práticas sacrificiais, tão
comuns na antiguidade, assinalavam uma maneira de romper com
o mundo do trabalho, da conservação e da preocupação com o
futuro. Daí que o sacrifício fosse a forma a mais completa
de relação com o sagrado, pois ele representava a conjugação
entre o sentimento de êxtase e o do horror, entre a vida e
a morte, tornando a morte uma afirmação
da vida em sua plenitude.
Nas
sociedades regidas pela necessidade capitalista de produção, o sacrifício
foi perdendo o seu lugar, e o mundo da violência afastou-se
da ordem sagrada. O homem, ao identificar-se cada vez mais
com a ordenação imposta pelo trabalho, procurou distanciar-se
de tudo aquilo que representaria uma negação do utilitarismo
e da racionalidade. Entretanto, essa outra dimensão da existência
não foi de todo aniquilada, subsistindo, por exemplo, na arte.
Álvaro de Campos, o poeta de que trataremos nesse ensaio,
procurará introduzir, no seio da própria sociedade moderna
e industrial, esse caráter de dispêndio, de negação dos valores
burgueses, fundindo-se e confundindo-se com a máquina, deixando-se
dilacerar como numa prática sacrificial que une
o ardor e a despossessão ao ato do fazer poético. Por isso,
no poema "Passagem das horas", Campos ilustra perfeitamente
bem a doutrina sensacionista de seu mestre Caeiro, desejando
Sentir
tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos
possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade
de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso,
completo e longínquo.
(PESSOA, 1986, p. 344)
Mas como é possível realizar esse desejo e, mais do que isso,
torná-lo comunicável através da poesia? Em seus "Apontamentos
para uma estética não aristotélica", Álvaro de Campos
afirma: "creio poder formular uma estética baseada, não
na idéia de beleza, mas na de força [...]" (PESSOA,
1974, p. 240). Para o poeta, a arte é um indício de força,
ou de energia, que se manifesta na vida, englobando tanto
os mecanismos de integração como os de desintegração. Por
outro lado, o poeta afirma também que a arte é uma atividade
social e que,
como todas as atividades sociais, apresenta um espírito gregário
e um separativo. Ora, o espírito separativo manifesta-se sob
a forma de um domínio em relação aos outros indivíduos. Esse
domínio, por sua vez, pode assumir a forma de uma captação
ou de uma subjugação, e o autor nos explica:
"Há
uma arte que domina captando, outra que domina subjugando.
A primeira é a arte segundo Aristóteles, a segunda a arte
como eu a entendo e defendo. A primeira baseia-se naturalmente
na idéia de beleza, porque se baseia no que agrada; baseia-se
na inteligência, porque se baseia no que, por ser geral, é
compreensível e por isso agradável [...]. A segunda baseia-se
naturalmente na idéia de força, porque se baseia no que subjuga;
baseia-se na sensibilidade [...]. (PESSOA, 1974, p. 244)
E continua:
O
artista não-aristotélico subordina tudo à sua sensibilidade,
converte tudo em substância de sensibilidade, para assim,
tornando a sua sensibilidade abstrata como a inteligência
(sem deixar de ser sensibilidade), emissora como a vontade
(sem que seja por isso vontade), se tornar um foco emissor
abstrato sensível que force os outros, queiram eles ou não,
a sentir o que ele sentiu [...] (p. 244)
O que essas linhas sublinham, em última instância, é a possibilidade
de comunicação inerente à poesia. No caso de Álvaro de Campos,
é nas suas duas Odes - "Ode
triunfal" e "Ode marítima" - que o poeta localiza a aplicação
perfeita da sua estética não-aristotélica. Ora, o que essas
Odes têm em comum, em
primeiro lugar, é que ambas põem
em relevo uma experiência capaz de unir três pólos distintos:
escrita, corpo e sensibilidade. A "Ode triunfal" abre-se
com uma estrofe, mais do que conhecida, em que essas três dimensões
já estão presentes:
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes,
fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente
desconhecida dos antigos. (PESSOA, 1986, p. 306)
O louvor da civilização moderna não é, em Álvaro de Campos,
uma simples aprovação do progresso ou dos ideais futuristas,
mas sim uma espécie de comunhão com o que há de mais potente
na sociedade industrial. É na idéia de potência, muito mais
do que na de modernização, que o autor irá lançar as âncoras
de sua poética. Entretanto, devemos observar que, para que
esta potência seja alcançada, será preciso livrar-se das amarras
impostas pelas convenções sociais,
pelo trabalho e pela moral, pela preocupação com a construção
do futuro. Para Álvaro de Campos,
a existência não pode se confundir com o mundo do trabalho,
pois é dessa confusão que resulta o seu empobrecimento.
Mas
como sair deste aprisionamento, deste achatamento da existência?
Como escapar de uma moral que condena o indivíduo a aniquilar
uma parte de si, a que talvez seja
a sua parte mais soberana? Na "Ode marítima",
ao fazer um apelo aos piratas para que o levem consigo em
busca de aventuras pelos mares, o poeta manifesta abertamente
o desejo de romper com a moral, com a civilização:
Fugir
convosco à civilização!
Perder convosco a noção
da moral!
Sentir mudar-se no longe
a minha humanidade!
Beber convosco em mares
do Sul
Novas selvajarias, novas
balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no
meu vulcânio espírito!
Ir convosco, despir de
mim - ah! põe-te daqui pra fora! -
O meu traje de civilizado,
a minha brandura de ações,
Meu medo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada,
estática, regrada e revista! (PESSOA, 1986, p. 322)
Assim é que as duas Odes
estão cobertas por um tom exaltado, febril, delirante até.
Se estas três dimensões - corpo, escrita e sensibilidade -
se unem de alguma forma nestes poemas, devemos notar que esta
união não se dá através de uma atividade pacífica, e sim de
um movimento extremamente violento. O que ocorre nos poemas
é a exibição de um excesso de forças,
de impulsos inebriantes. E
é a violência desses movimentos, o desejo de "selvajaria",
o que permite sair do "traje de civilizado", da
vida "estática, regrada e revista". Assim, o fazer
poético, nos textos em questão,
aponta para a necessidade de experimentar um longo e imenso
desregramento dos sentidos, como já havia anunciado Rimbaud
na sua Lettre du voyant.
Do
mesmo modo, na "Ode marítima", observamos também
as três dimensões presentes na "Ode triunfal": a
dimensão do corpo, a da sensibilidade e da escrita, sendo
que é o ato de inscrição da sensibilidade no corpo o que torna
o poeta capaz de escrever:
Todos
os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,
Queria apertá-los ao peito,
senti-los bem e morrer!
[...]
E vós, ó coisas navais,
meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a
minha vida interior!
[...]
Sede vós o tesouro da
minha avareza febril,
Sede vós os frutos da
árvore da minha imaginação.
Tema de cantos meus, sangue
nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que
me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas,
imagens, literatura
[...] (PESSOA, 1986, p.
318)
Também é interessante notarmos que a produção da poesia aparece
ligada aqui a uma passagem do interior para o exterior; é
como se o corpo, ao expandir-se para o exterior, se transformasse
numa espécie de laboratório químico capaz de converter as
sensações em matéria poética, em "metáforas, imagens,
literatura". Mas a partir dessa operação, é como se não subsistissem dois planos
distintos: um interior e outro exterior. Como observa José
Gil, "a partir de agora, escrever é sentir e agir - no
plano de imanência." (GIL, 1999, p. 128), isto é, escrever
significa produzir intensidades que não estão localizadas,
que representam justamente a abolição da separação entre fora
e dentro, entre corpo e espírito.
O
desregramento dos sentidos é o que permite com que essa separação
seja rompida, com que o eu se encontre desmesuradamente aberto,
exposto a todos os perigos, dilacerado e desprotegido. Nessa
experiência de dilaceramento, a morte se inscreve como horizonte
impenetrável, próximo e ao mesmo tempo distante, aquilo que
fascina e ao mesmo tempo repele.
Assim, Campos, tomado pelo inebriamento que representa a permeabilidade
do dentro pelo fora e vice-versa, canta na "Ode triunfal":
Ah,
poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma
máquina!
Poder ir na vida triunfante
como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me
fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me
completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de
óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda,
negra, artificial e insaciável! (PESSOA, 1986, p. 306)
A fascinação cantada nos versos - e que conduzirá o poeta
ao dilaceramento -, não é sinal de uma fraqueza, ela não pode
ser traduzida como um desejo de salvação e muito menos de
pacificação. É bem verdade que a angústia diante da pobreza
da existência é o motor que desencadeia a experiência, mas
ela não deve ser vista como uma ascese, e sim como o impulso
para levar a angústia à sua última potência, de afirmar o
sofrimento como a parte mais radical da própria vida. A superação
da angústia, como sublinha Bataille, não está ligada a uma
idéia de salvação: "a idéia de salvação, creio, vem àquele
que o sofrimento desagrega. Aquele que o domina, ao contrário,
tem necessidade de ser quebrado, de embrenhar-se na dilaceração."
(BATAILLE, 1992, p. 49) Portanto, quanto mais fortes forem
os homens, mais eles desejarão expor-se às perdas e aos perigos,
mais eles efetuarão um movimento de dispêndio das suas energias.
Por
isso mesmo, o desregramento dos sentidos nas Odes
de Campos dará origem a torturas inimagináveis, a apelos para
um dilaceramento extremo, em que se desenha uma prática de
auto-sacrifício, como o que desencadeia o delírio do poeta
na "Ode marítima":
Façam
enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Arranquem-me a pele, preguem-me
às quilhas.
E possa eu sentir a dor
dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma
flâmula de almirante
Na hora de guerra dos
velhos navios!
Calquem
aos pés nos conveses meus olhos arrancados!
Quebrem-me
os ossos de encontro às amuradas!
Fustiguem-me atado aos
mastros, fustiguem-me!
A todos os ventos de todas
as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sobre
as águas arremessadas
Que atravessam o navio,
o tombadilho, de lado a lado.
Nas vacas bravas das tormentas!
(PESSOA, 1986, p. 232)
Assim, a experiência do dilaceramento na poética de Álvaro
de Campos não deve ser simplesmente associada a um masoquismo.
O sentido do despedaçamento do corpo e dos suplícios desejados
pelo poeta reportam-se muito mais a uma experiência sacrificial
do horror sagrado - uma experiência insustentável, da qual
resulta a confrontação com o vazio, com o impossível. E a
poesia, na medida em que se constrói segundo o modelo da estética
da força pensada por Campos, na medida em que subjuga, que
força o outro a sentir o que o poeta sentiu, expondo diante
dos olhos do leitor o corpo mutilado e sacrificado do poeta,
oferece-o como objeto de uma contemplação, transformando-o
em oferenda, como um animal sacrificado.
Entretanto,
não devemos acreditar que essa experiência seja efetivamente
possível, que o lugar do despedaçamento completo seja
realmente um lugar atingível, isto é, um lugar em que se possa
permanecer, já que, ao fim da "Ode marítima", passado
o delírio do poeta, ele se volta novamente para o mundo ordenado
do cotidiano. Assim, no final do poema, ao observar o navio
que se afasta no horizonte, Campos afirma:
Nada
depois, e só eu e a minha tristeza
E a grande cidade agora
cheia de sol
E a hora real e nua como
um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste
que, como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de
não sei que emoção
No silêncio comovido da
minh'alma...
A possibilidade de destruição
desejada pelo poeta não é a transformação do desconhecido
em conhecido, tampouco a supressão da angústia. O que o poema
assinala é que essa experiência só pode ser vivida literariamente,
ou seja, sob a forma de uma ficção, uma vez que a experiência
real representaria de fato um total aniquilamento. A poesia
é da ordem do "fingimento", o que não quer dizer
que ela seja menos real, mas que ela é o modo de experimentar,
sem sair do mundo, uma espécie de descolamento deste. E se
a poesia pode assumir um lugar de comunicação, de fazer com
que o leitor sinta o que o poeta sentiu, como desejava Pessoa,
devemos lembrar que aquilo que o fazer poético comunica não
é nada além do silêncio, do não-saber que abrange toda e qualquer
existência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BATAILLE,
Georges. A experiência interior. São Paulo: Ática,
1992
-------.
"La notion de dépense". In: Oeuvres complétes
I (1922-1940). Paris: Gallimard, 1970
GIL,
José. Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa.
Lisboa: Relógio d'água, 1999
NIETZSCHE,
Friedrich. A origem da tragédia. São Paulo: Companhia
das letras, 2003
PESSOA,
Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1986
PESSOA,
Fernando.Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1974
*
Izabela
Leal é doutoranda em Literatura Portuguesa pela UFRJ
e bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian.
Leia também um ensaio
da autora sobre Herberto
Helder.
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