REFLEXÕES
SOBRE O MÉTODO
João
Alexandre Barbosa
Creio que,
implícita ou explicitamente, a questão do método
(no sentido mais amplo de caminho para chegar a um fim, conforme
a etimologia grega) é central nos estudos literários
e não apenas aqueles de teoria literária, mas
os das literaturas nacionais que compõem o quadro geral
daqueles estudos.
Embora a
sua plena configuração e reconhecimento se torne
mais clara nos estudos pós-graduados, quando a escolha
de um tópico, a ser desenvolvido como dissertação
ou tese, implica de imediato um caminho a ser percorrido para
o seu desenvolvimento, a questão do método já
se põe nos estudos graduados, seja como maneira de
ler os textos, seja como modo específico de realizar
o seu ensino/aprendizado.
Um método
de ler e um método de ensinar a ler: operações
simultâneas e rotineiras que ocorrem na prática
do ensino/aprendizado da literatura.
Mas não
se chega a um método, aquele que pode ser definido
pela prática da leitura, sem a experiência plural
de métodos, mais ou menos adequados a um objeto -o
texto, a obra, o autor, o momento ou movimento literário-
que se tem em mira.
Por isso,
quando se fala de método adotado para caracterizar
um trabalho é algo que ocorre sempre a posteriori -resultado
único de uma pluralidade de caminhos trilhados por
entre textos, obras, autores, momentos ou movimentos literários.
O método, entretanto, não se confunde com as
técnicas utilizadas para a sua efetivação,
embora exista uma relação metonímica,
em que as últimas funcionam como partes operacionais
de uma totalidade que é o método.
O método
é antes uma maneira, uma escolha, uma maneira de escolha
por entre possíveis técnicas do que sua utilização
pura e simples.
Neste sentido,
ao se falar em método de um autor o que se quer significar
é, sobretudo, aquilo que resultou de escolhas por entre
possíveis maneiras de ler, analisar e interpretar dados
advindos da própria leitura.
É
claro que, para essa leitura, que se completa pela interpretação,
concorrem fatores ou circunstâncias, dentre os quais
avultam, sem dúvida, as técnicas de leitura
utilizadas, que combinam elementos individuais e de contexto.
Os métodos
críticos, pois é em torno deles que se está
refletindo, jamais são, por assim dizer, quimicamente
puros, sobretudo aqueles que são referidos às
misturadas expressões de arte, em que são tão
decisivos os elementos de impureza da realidade circunstancial
e histórica quanto as aspirações por
uma especificação de linguagem que sonhe em
anular as ambivalências e ambigüidades que existem
naquelas expressões.
A escolha
de um método, portanto, é traço indicial
das tensões entre circunstâncias individuais
e históricas, ambas sempre presentes no próprio
objeto de leitura e conseqüente interpretação,
que resultam numa espécie de estilo crítico
do leitor.
Mas uma coisa
é dizer, por exemplo, introdução ao método
crítico de Sílvio Romero, como ocorre no famoso
ensaio de Antonio Candido, com que inaugurou a sua trajetória
de estudioso universitário de literatura, em 1945,
e outra, muito diversa, é falar em introdução
ao método de Leonardo Da Vinci, como está no
ensaio de Paul Valéry, de 1895, também inaugural
no pensamento do poeta.
No primeiro
caso, mais próximo daquilo que vem sendo dito aqui,
trata-se de ler a obra de um crítico, Sílvio
Romero.
Por um lado,
refazendo os caminhos de suas leituras, buscando apreender
o seu aprendizado de posições críticas,
a sua formação de leitor e o modo pelo qual
deu expressão, na leitura, às suas escolhas
e, por outro, articulando as suas idiossincrasias críticas
resultantes, o seu estilo crítico, a um contexto mais
amplo de época, marcado por circunstâncias históricas
e sociais específicas.
Neste sentido,
não basta apenas fixar a dependência do crítico
com relação aos modelos de naturalismo crítico,
sobretudo o evolucionista, de que, sem dúvida, ele
era caudatário, mas se inclui também a leitura
por ele realizada do momento brasileiro de meados do século
XIX, envolvendo desde os problemas mais eminentemente políticos
do republicanismo de inspiração positivista,
que começa a se fortalecer a partir dos anos 70, até
os problemas sociais da escravidão que é legalmente
abolida no ano de publicação da sua obra fundamental
de síntese que é a História da literatura
brasileira, de 1888.
É
da fusão entre os modelos críticos naturalistas
e aquela leitura contextual e histórica que se constitui
uma maneira de ler a literatura que é a de Sílvio
Romero.
O seu método
crítico, de que Antonio Candido, ao mesmo tempo que
traça um roteiro introdutório, extrai elementos
preciosos para o estudo de um momento crítico fundamental
na história da crítica brasileira, estabelece
uma espécie de rica e fértil simbiose em que
o crítico de hoje encontra no crítico de ontem
os argumentos de defesa e de condenação para
a constituição de seu próprio método
de leitura crítica.
Um método
que vai, posteriormente, fertilizado por tudo o que aconteceu
entre o naturalismo do século XIX e meados do século
XX, insistir na reversibilidade estrutural e enriquecedora
entre o interno, a leitura, por assim dizer, imanente da literatura,
e o externo, os seus condicionamentos sociais e históricos.
No segundo
caso, o da leitura de Da Vinci por Valéry, embora se
trate também de apreender um método, como está
no título do ensaio, há uma diferença
básica e que se refere, antes de mais nada, à
própria concepção de método.
Aqui não
se está falando de uma maneira crítica de ler,
ou mesmo de pintar, como se poderia de imediato inferir, sendo
Da Vinci quem foi, ou das duas coisas, dada a existência
de seus admiráveis Quaderni, mas de buscar a centralidade
de um pensamento, ou atitude central, como a denomina o próprio
Valéry, a partir da qual, segundo ele, as realizações
do conhecimento e as operações da arte são
igualmente possíveis.
O objetivo
do ensaio de Valéry era, portanto, a revelação
de um método que se traduz por aquela atitude central:
a perspectiva a partir da qual os domínios dos meios
artísticos, das técnicas e das ciências
se respondem mutuamente pela instauração daquilo
que Valéry chama de lógica imaginativa, ou analógica,
e que se funda, de acordo com o poeta francês, no encontro
de relações, para usar suas próprias
palavras, entre coisas cuja lei de continuidade nos escapa.
Ultrapassa-se
aqui a significação etimológica referida
no início e de que o Discurso sobre o método,de
Descartes, foi a grande cristalização moderna:
o método não como um caminho para chegar a um
fim, como está na etimologia, mas o próprio
fim como um caminho cujo começo se busca apreender.
Na verdade,
uma espécie precursora de todas aquelas teorias anti-método
de que o exemplo do filósofo das ciências Paul
Feyerabend, autor de Contra o método, talvez seja o
mais famoso.
Contra o
caminho da metódica vita simplicissima cartesiana,
a que o próprio Valéry alude na epígrafe
de Monsieur Teste, as vertigens da analogia, ou de uma lógica
desconhecida, a que ele mesmo se refere na Introdução.
Não
obstante a distinção entre as duas maneiras
de falar, ou dizer sobre método -a que está
em Antonio Candido e a que se pode extrair de Paul Valéry-,
ambas apontam para um traço em comum.
Assim como
o estudo sobre Sílvio Romero foi inaugural no que se
refere à perspectiva acadêmica do crítico
brasileiro e, ao mesmo tempo, também originária
de seu próprio estilo crítico, como já
se assinalou, assim a Introdução de Valéry,
ao ler o método de Leonardo, encontrava os elementos
que serão, posteriormente, fundamentais, sobretudo
no que se refere aos efeitos de reciprocidade entre artes,
ciências e técnicas, para aquela busca de consistência
que ele descobrira no Edgar Poe de Eureka, como ele revela
na Introdução que escreve, em 1921, para a tradução
da obra por Baudelaire, e que Italo Calvino insinuou na última
de suas Conferências para o próximo milênio
-marca não só do poeta de La jeune parque, mas
do autor de Variété ou dos Cahiers.
Não
é de surpreender: são numerosos os exemplos,
na história da literatura, daqueles autores que tomaram
o seu impulso decisivo a partir da discussão do método
de ler e de pensar de outros e o caso de Marcel Proust, lendo
e fazendo a crítica do método de Sainte-Beuve,
em Contre Sainte-Beuve, partindo daí para a elaboração
de À la recherche du temps perdu, é exemplar
mas não certamente o único. Mesmo porque as
obras literárias, como é bem sabido, não
se fazem apenas de reações a estímulos
internos ou externos, mas incluem, em suas elaborações,
a leitura de outras obras.
Por tudo
isso, a reflexão sobre a questão do método,
no âmbito dos estudos literários, pode ter uma
abrangência e um significado que vai muito além
de sua identificação com a história das
teorias críticas, tal como ela é usualmente
pensada, envolvendo aspectos de criação e leitura
literárias essenciais para aqueles estudos.
Antes de
mais nada porque a questão do método crítico
não se afasta da experiência concreta da obra
literária, sendo marcada, seja qual for a ordem de
prioridades (e elas são sempre inevitáveis,
dada a individualidade do crítico), pelos mesmos elementos
de tensão que constituem aquela experiência e
que decorrem de uma historicidade complexa: a imbricação
de história circunstancial, o solo histórico
e social, e de história da própria linguagem
literária com todas as ambivalências em pertencer
a um sistema de comunicação, fincado naquele
solo, e, ao mesmo tempo, refazer e, com freqüência,
contrariar aquele sistema.
A historicidade
da literatura é de natureza complexa também
porque quer a categoria de tempo, quer a de espaço
são, por assim dizer, resolvidas (no sentido de que
as antinomias são traduzidas em termos de ambigüidade)
pelo próprio processo de construção em
que o tempo e o espaço circunstanciais são lidos
nos intervalos entre, para usar os termos famosos de T.S.Eliot,
a tradição e o talento individual.
Mas, atenção!,
resolvidas não quer dizer pacificadas por uma leitura
de acomodação. Ao contrário disso, exatamente
porque as antinomias são traduzidas literariamente
em termos de ambigüidade (o que é uma das singularizações
da linguagem literária), tempo e espaço literários
são categorias que mais incisivamente configuram as
relações de tensão que sobressaem na
qualidade histórica da obra literária e, por
conseqüência, na questão de método
por ela suscitada.
Por outro
lado, tais categorias -as de tempo e espaço-, exatamente
em decorrência do uso particular que da linguagem fazem
as obras literárias, não se deixam apreender
nem pelas marcas uniformes da diacronia, isto é, o
tempo como uma seqüência de eventos, nem pelas
descrições ainda que pormenorizadas de circunstâncias
concretas, quer dizer o espaço como um sistema da aglutinações
de características geográficas e sociais.
E esta impossibilidade
de apreensão decorre, sobretudo, de que, no que se
refere à obra literária, o tempo, assim como
o espaço, têm uma existência múltipla
e de simultaneidade, resultante do próprio processo
de construção da obra que joga com as possibilidades
também múltiplas e simultâneas de significação
da linguagem.
Por isso,
mesmo considerando uma única obra, o seu é um
tempo plural que envolve desde aquele do autor, uma espécie
de tempo biográfico, até aquele do público,
não só ao que se dirige, mas o que, com freqüência,
é elemento implícito na própria composição
-aquele leitor implícito, complemento essencial do
autor implícito de algumas correntes críticas
contemporâneas-, passando por aquilo que é tempo
literário específico como o que se representa
por gêneros e movimentos literários.
Da mesma
maneira, o espaço de uma única obra não
se traduz apenas por aquele território delimitado seja
pela figura do autor enquanto indivíduo pertencente
a uma ou outra comunidade geográfica e social, no caso
sobretudo da lírica, seja pela invenção
narrativa que, através de personagens, o reconstrói
e interpreta, mas implica também um espaço literário
e imaginário que funciona como convergência de
experiências concretas ou inventadas que trazem para
a obra a tradição dos topoi (e aqui penso na
obra admirável de Ernst Robert Curtius) ou a antecipação
das ideologias.
Quem hoje
confinaria o Dom Quixote quer ao século XVII espanhol,
quando em 1605 e 1615 foram publicadas as duas partes da obra,
quer àquela região áspera da Mancha,
por onde o suave e louco cavaleiro e seu pajem passeavam as
suas aventuras, como modo de caracterizar a obra? Creio que
ninguém, pois o tempo da obra, sendo legitimamente
aquele do século XVII, é também o da
leitura das novelas de cavalaria de toda a tradição
ibérica e, por isso mesmo, o seu espaço é
dilatado para além das fronteiras manchegas ou mesmo
espanholas.
Ou o Ulisses
a um certo dia dos primeiros anos do século XX e a
uma cidade -Dublin-, por onde o judeu Leopold Bloom passeia
as sua contradições e tormentos? Creio também
que ninguém, pois logo se percebe que o tempo da obra
de Joyce inclui o de toda a tradição da literatura
ocidental, a partir de Homero, e o seu espaço, sendo
legitimamente o irlandês, é também uma
leitura dos espaços homéricos traduzidos da
grande épica para o estilo rebaixado dos estilhaços
do British Empire.
Ou, enfim,
o Madame Bovary a alguns anos de meados do século XIX
francês e ao espaço asfixiante da vida provinciana,
quando a jovem Bovary se debate entre a realidade pequena
de uma classe média sem imaginação e
o fértil imaginário dos romances românticos
com que procura compensar os seus devaneios e os seus mais
íntimos desejos que não encontravam no pobre
e medíocre Charles um interlocutor à altura?
Creio, finalmente, que ninguém, pois vida provinciana,
desejos reprimidos e leituras românticas, ao mesmo tempo
que embaralham o tempo da narrativa, chegando mesmo, como
o viu Joseph Frank, em Spatial form in modern novel, à
sua espacialização, fecundam o espaço
limitado do romance com aquilo que é próprio
da literatura ou, melhor dizendo, do imaginário literário,
operando a convergência dos espaços da tradição
e da realidade.
Em nenhum
dos casos citados, acentue-se, é desprezível
o conhecimento quer do tempo histórico e circunstancial
das obras, quer a localização detalhada de seus
espaços geográficos e sociais.
O que se
afirma é a sua insuficiência para dar conta da
leitura das obras, uma vez que a própria realização
delas, quando lidas, já modificou os conceitos de tempo
e espaço exteriores a elas.
Mesmo porque,
quando ocorre o caso de leituras confinadas, a apreensão
de sua historicidade essencial deixa de ser elemento implícito
no discurso crítico de análise para se transformar
em notas explicativas apensas ao texto que, embora de grande
utilidade para o esclarecimento de detalhes, são conservadas
nos umbrais da leitura propriamente crítica, isto é,
aquela que procura articular as transformações
daquelas notas em matérias concretas da experiência
literária.
E esta, como
se sabe, envolve muito mais do que o conhecimento do tempo
histórico ou do espaço geográfico: envolve,
sobretudo, por parte daquele que experimenta, a imersão
num tempo e num espaço ficcionais, de onde a crítica,
ou o leitor possuído pelo desejo crítico, retorna
em busca de uma coerência que melhor se ajuste aos sobressaltos
de sensibilidade, de emoção ou de desassossego
conceitual ocasionados pela leitura.
Como tudo
isso está intimamente articulado por certos usos da
linguagem, aqueles usos que deslocam incessantemente o leitor
por entre significações, chegando, às
vezes, ao limiar da incompreensão, aquele retorno,
com freqüência, se traduz no estabelecimento de
um ponto de vista a partir do qual a coerência pretendida
pode ser alcançada. É o momento das escolhas
e das avaliações por onde se instauram os métodos
críticos.
Volta-se,
portanto, ao que se disse inicialmente: o método como
uma escolha, uma maneira de escolha por entre possíveis
técnicas de efetivação da leitura. Mas
agora, depois de já percorrido um largo caminho de
reflexão, pode-se acrescentar: uma escolha marcada
por complexas historicidades que são as do leitor e
da obra e que jamais se separam da experiência concreta
e, por isso, também histórica, da leitura.
Neste sentido,
quando se escolhe um método, sempre posterior à
leitura da obra (e é preciso não esquecer: entenda-se
obra com todos aqueles elementos que a configuram, desde o
autor até à sua recepção de leitura),
buscando estabelecer uma coerência de descrição,
de explicação e de interpretação,
a seleção de um aspecto, sejam o autor, a obra
como objeto construído, o leitor, o momento em que
se insere ou o movimento literário a que pertence,
termina por ser o aglutinador de juízos de valor não
só da obra (em seu sentido plural, insista-se) mas
do próprio método escolhido e, por conseqüência
daquele que o utiliza.
Por isso
mesmo, não se pode pensar numa escolha de método
sem duas condições prévias de base: a
leitura da obra e de todos os seus suportes e condicionamentos
e uma concepção de valores que assumem a função
de ponto de vista.
A primeira,
aparentemente óbvia e corriqueira, requer, no entanto,
uma espécie de entrega total do leitor, trazendo para
o espaço de uma leitura específica tudo aquilo
que é, ou foi, experiências anteriores de outros
espaços de leitura, não apenas de outras obras
mas de leituras da obra agora lida, apontando para desdobramentos
bibliográficos cada vez mais complexos à medida
que a leitura evolui.
A segunda
condição, buscando justificativas para o ponto
de vista assumido na escolha de um método, significa
essencialmente o conhecimento da pluralidade possível
de métodos, dentre os quais a seleção
e os ajustamentos podem ser realizados e que têm a sua
origem numa larga tradição de conceitos sobre
a própria invenção literária.
É
esta segunda condição que se confunde com o
estudo dos métodos críticos e, pode-se dizer,
com a própria história da crítica literária,
pois se trata de conhecer as diversas e numerosas maneiras
que foram sendo elaboradas como métodos de apreensão,
compreensão e interpretação das obras.
Desde as
primeiras poéticas e retóricas do mundo grego
e romano até os mais recentes movimentos críticos
de desconstrução ou pós-estruturalistas
e pós-modernos de crítica pós-colonialista
e feminista.
É
assim de tal modo largo o seu arco temporal que um estudo
e um conhecimento diacrônicos terminam por se transformar
numa quase impossível enciclopédia histórica
da crítica literária.
Por isso
mesmo, alguns esforços têm sido feitos no sentido
de construir esquemas que, partindo da existência da
obra e envolvendo as linhas de força essenciais de
sua configuração, possam facilitar o conhecimento
dos métodos críticos, de acordo com as ênfases
de acentuação naquelas mesmas linhas.
É
o caso, por exemplo, daquilo que está, como introdução,
no influente livro de M.H.Abrams, The mirror and the lamp,
de 1953, teoria romântica e tradição crítica
acerca do fato literário, como diz o subtítulo
da obra. Trata-se do ensaio Orientations of critical theories,
depois refundido como verbete para The Princeton handbook
of poetic terms,com o título de Types and orientations
of critical theories, editado por Alex Preminger, em 1986,
e, finalmente publicado, como primeiro capítulo, na
reunião de ensaios do autor, intitulada Doing things
with texts. Essays in criticism and critical theory, de 1991.
Na primeira
versão do ensaio, a de 1953, está dito:
Quatro elementos
são identificados e postos em relevo no conjunto de
uma obra de arte, sob um ou outro sinônimo, em quase
todas as teorias que se propõem ser abrangentes.
Primeiro,
está a "obra", o produto artístico
em si. E desde que é um produto humano, um artifício,
o segundo elemento comum é o artífice, o "artista".
Terceiro, se supõe que a obra tem um tema ou assunto,
o qual direta ou indiretamente deriva de coisas existentes;
versa sobre ou significa ou reflete algo que existe ou tem
alguma relação com um estado de coisas objetivo.
Este terceiro elemento, quer se sustente por si mesmo, ou
que consista em pessoas e ações, idéias
e sentimentos, coisas materiais e acontecimentos, ou em essências
supra-sensíveis, foi freqüentemente designado
por essa palavra equívoca usada para todas as coisas
-a "natureza"-; que nos seja permitido empregar,
em seu lugar, o termo mais neutro e mais abrangente , o "universo".
Como elemento final, temos o "público" ou
"auditório": os ouvintes, espectadores ou
leitores a quem se dirige a obra ou para cuja atenção,
de algum modo, chega a fazer-se disponível.
Ou como se
diz, de maneira mais sintética e ainda mais clara,
nas versões mais recentes do ensaio, substituindo-se
a palavra obra por poema:
Um poema
é produzido por um poeta, é relacionado por
seu assunto ao universo de seres humanos, coisas e acontecimentos
e está endereçado a, ou tornado acessível
a, uma audiência de ouvintes ou leitores.
É
a partir desses fatores constituintes da obra, ou poema, que
Abrams relaciona, segundo suas próprias palavras, quatro
amplos tipos de teoria poética, que podem ser intitulados
mimético, pragmático, expressivo e objetivo.
É
claro que, dado o escopo do livro de M.H.Abrams, isto é,
uma leitura da teoria romântica da poesia, sobretudo
ou quase somente, a inglesa, o esquema adotado por ele apenas
acena, mas não aprofunda, o modo pelo qual essas orientações
críticas foram sendo moduladas pelas diversas épocas
da história da crítica literária.
Mas isto
não seria impossível de fazer e a obra de René
Wellek, História da crítica moderna,que vai
de 1750 a 1950, é uma prova disso.
De qualquer
maneira, pode servir como uma espécie de aide-mémoire
para uma reflexão sobre a pluralidade dos métodos
críticos e o seu conhecimento pode ser um bom antídoto
para que o estudioso da literatura, tomando consciência
da pluralidade, escape dos reducionismos perigosos, sabendo
escolher a orientação que melhor convém
à satisfação daquela primeira condição
estabelecida para a escolha metodológica, isto é,
a imersão total na leitura da obra.
Sendo assim, entre as duas condições de base
para a escolha, cria-se uma intensa solidariedade em que a
leitura da obra, por assim dizer, solicita o conhecimento
da tradição crítica e este, por sua vez,
só ganha sentido na medida em que, não sendo
apenas um exercício de erudição, acrescenta
novas possibilidades de leitura.
Isto porque,
mesmo considerando um esquema como o adotado por Abrams, cada
uma das orientações críticas é
atravessada por conteúdos filosóficos (caso
das miméticas) ou psicológicos, históricos,
sociais e antropológicos (caso das pragmáticas
e das expressivas) que são, para mais uma vez usar
a mesma expressão e com o mesmo sentido, resolvidos
no objeto construído que é a obra (caso das
orientações objetivas).
Resolvidos,
agora acrescente-se, pelo trabalho de análise da construção
realizado pelo leitor que não os lê separados
da obra mas como integrantes de um mesmo sistema de significado.
O que significa
dizer que aquilo que é filosófico, psicológico,
histórico, social ou antropológico na obra e
que, sem dúvida, aponta para o que Abrams chama de
universo em seu esquema, deixa de ser apenas conteúdos
para, por força mesmo da construção,
serem elementos do sistema de significado, isto é,
daquilo que resultou das articulações entre
as significações e o modo de suas representações.
O que, por
outro lado, aponta seja para as limitações de
cada uma das orientações tomadas em si mesmas,
sobrando apenas a coerência de adequação
a uma determinada obra e sua leitura, seja para as do leitor
que, por isso mesmo, seleciona um ponto de vista, que será
o seu método, mais ou menos adequado em decorrência
de uma maior ou menor integração dos elementos
estruturadores daquele sistema de articulações.
Como, por outro lado, o leitor traz consigo, para a experiência
de leitura de uma única obra, experiências anteriores
de leitura e o conhecimento de métodos utilizados para
a sua apreensão, a leitura atual se faz sempre por
entre os estímulos imediatos advindos da obra que lê
e a consciência, por assim dizer, cultural, ou histórica,
de outras leituras e de outras maneiras criadas para a sua
efetivação.
E a não
ser que, apriorísticamente, o leitor se decida pela
aplicação de uma espécie de camisa de
força metodológica ( caso, infelizmente, muito
freqüente em que se confunde leitura da obra com demonstração
de uso de uma técnica), a experiência de leitura
é sempre muito mais intensa do que a sua sujeição
a um único método, uma vez que, pela obra, passam
e se articulam elementos os mais díspares da própria
experiência histórica, social ou mesmo psicológica.
E se, por
outro lado, não se perde de vista o fato de que é
a obra como realização concreta o objeto da
leitura, o seu point de repère, embora não estático,
nem passivo, mas, ao contrário, instigador de uma pluralidade
de respostas, tem-se, como corolário, que a sua leitura
mais abrangente é aquela que se realiza entre a tensão
dos elementos que constituem aquele universo mencionado por
Abrams, isto é, tudo o que na obra é experiência
humana, e as formalizações pelas quais ela se
identifica como obra de arte.
O que significa
dizer que não basta o conhecimento de aspectos daquele
universo constituintes da obra nem o da retórica ou
poética que cristalizaram aquelas formalizações,
quer dizer, o da história dos métodos críticos,
para que se possa falar em leitura abrangente.
É decisivo que a tensão referida seja, quer
implícita, quer explicitamente, mantida como mecanismo
essencial da leitura.
E esta tensão,
a meu ver, só se mantém (até mesmo nos
limites de uma mise en abîme) uma vez que a leitura
não seja a de um dos aspectos da complexidade de leitura
( que se traduziria por ou ler o universo da obra ou as suas
formalizações) mas que se instaure como articuladora
entre eles, sabendo se conservar arriscadamente nos intervalos
de tempo e de espaço (tal a leitura de uma partitura
musical) de concretização da obra.
Arriscadamente:
sabe-se que a tendência para uma escolha apriorística
é inevitável e mesmo mais de acordo com a inclinação
de algumas orientações críticas para
a acomodação que tudo busca resolver e pacificar,
visando sempre uma totalidade que, certamente, está
para além da obra como realização parcial
e única.
A escolha
dominadora de um daqueles tipos aventados por Abrams, por
exemplo, desprezando-se a coexistência dos demais, é
muito mais corriqueira do que se possa imaginar e, neste caso,
o que termina por ser totalizador ou, no extremo, totalitário,
é o método e não a leitura de seu objeto.
Entretanto,
exatamente por não temer o risco da inconclusão
e da abertura, buscando manter as tensões formadoras
da obra, e fugindo, como o diabo da cruz, das pacificações
conseguidas a fórceps, uma leitura intervalar é,
a meu ver, capaz de melhor se aproximar da obra, deixando-a
melhor revelar os seus elementos estruturadores e, ao mesmo
tempo, obrigando o leitor a considerar, sem preconceitos,
todos aqueles elementos -os históricos, os sociais,
os antropológicos, os psicológicos- que convergem
para a sua manifestação e que são articulados
num espaço/tempo específico de invenção
pessoal que é a obra que se lê que, por isso
mesmo, não pode desprezar, ou deixar de lado como sabida,
a tradição de outras obras e outras leituras.
II
Aos poucos
estas reflexões vão tomando, inevitavelmente,
um curso muito pessoal. Deixo que assim ocorra e explicito
alguma coisa de minha mais íntima experiência
de leitor, de professor e de crítico.
Mesmo porque
neste ano de 2001 fazem precisos quarenta anos em que, pela
primeira vez, busquei refletir sobre métodos críticos
ou, melhor ainda, sobre métodos de historiografia literária,
num texto intitulado História da literatura e literatura
brasileira, apresentado como tese ao II Congresso Brasileiro
de Crítica e História Literária, em 1961,
dezenove anos depois incluído no volume Opus 60, de
1980, depois de ter sido publicado nos Anais do referido Congresso.
Na verdade,
era uma leitura contextualizada da obra de Antonio Candido,
Formação da literatura brasileira. Momentos
decisivos, sobre a qual havia publicado uma pequena resenha
no ano seguinte ao de sua publicação em 1959.
E digo contextualizada porque depois de, muito ambiciosamente
e com a afoiteza própria de quem tinha 24 anos, passar
em revista os métodos da história literária,
buscava traçar um quadro da história literária
brasileira desde os seus inícios românticos e
as grandes reflexões historiográficas de meados
do século XIX, com os críticos Sílvio
Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo,
até as reflexões que inspiravam obras como as
de Alceu Amoroso Lima, Nelson Werneck Sodré, Afrânio
Coutinho, Otto Maria Carpeaux e o próprio Antonio Candido,
para o qual convergiam as leituras. E o que mais buscava acentuar
eram precisamente as tensões entre literatura e história
ou o modo pelo qual a história era lida nos interstícios
das obras literárias a partir de um esquema (muito
semelhante àquele estabelecido por M.H.Abrams) em que
autor, obra e público eram apreendidos como constituindo
um sistema solidário e gerador de valores críticos.
A minha experiência de leitura da obra fundamental de
Antonio Candido era, no entanto, precedida por uma verdadeira
mania de leitura de obras de nossa tradição
crítico-histórica e àquela altura posso
dizer que já havia lido e relido os principais textos
daquela tradição, sobretudo os dos três
grandes críticos brasileiros do século XIX e,
como não podia deixar de ser, de alguns autores, sobretudo
franceses, como Taine, Brunetière, Lemaître,
Anatole France ou Lanson, privilegiados pelos primeiros.
Ou mesmo
a leitura de historiadores, como Varnhagen, Oliveira Lima
ou João Francisco Lisboa nos quais encontrava motivos
para a reflexão sobre as tensas relações
entre literatura e história. E neste último,
particularmente, havia um excelente material para pensar aquelas
relações, sobretudo em seu Jornal de Timon,
a respeito do qual escrevi a minha segunda tese a um congresso,
o III Congresso Brasileiro de Crítica e História
Literária, de 1962, intitulada Jornal de Timon: singularidade
de uma resposta, hoje também incluída no mesmo
Opus 60, de 1980, em que, sobretudo operando com o conceito
de consciência possível que lia, por então,
em Lucien Goldmann, buscava explicar uso de esquemas da narrativa
literária para os eventos históricos, como ocorria,
por exemplo, nas extraordinárias análises que
o historiador maranhense fazia das eleições
e partidos políticos no Maranhão, criando personagens
ficcionais e enredos romanescos.
O resultado
de tais reflexões foi o pequeno volume intitulado João
Francisco Lisboa, publicado pela Agir em sua prestigiosa coleção
Nossos Clássicos, então dirigida por Alceu Amoroso
Lima e Roberto Alvim Corrêa.
E foi lendo
o historiador maranhense e a crítica que sobre ele
existia em nossa tradição (em que apenas um
historiador nosso contemporâneo, Octavio Tarquínio
de Souza, havia se interessado por reler a sua obra, editando-lhe
uma antologia) que resolvi estudar, de modo mais sistemático,
a obra de José Veríssimo. E isto porque o ensaio
que escrevera sobre João Francisco Lisboa não
era o de um crítico apenas beletrista, um nefelibata
de fim de século, como era costume catalogar o crítico
paraense, mas se abria generosamente para considerações
de ordem histórica e política que não
me pareciam caber naquela estreita catalogação.
A leitura
da obra de José Veríssimo (e tudo aquilo que
representou o seu tempo de atividade crítica, isto
é, dos anos 70 do século XIX à primeira
década do século XX, sejam obras propriamente
literárias, poesia e prosa, sejam obras de crítica,
de história, de história literária, de
sociologia ou mesmo de antropologia e etnologia) terminou
por exigir uma reflexão sobre a questão mais
ampla das tensões entre leitura histórica e
leitura estética das obras.
A época
em que me propus o trabalho era o fim dos anos 60, quer dizer,
de acentuado declínio de interesse pelas questões
de história literária e ascensão dos
métodos de imanência radicalizada tal como se
lia na divulgação, que então se fazia,
do formalismo russo, do estruturalismo checo ou do estruturalismo
francês.
As minhas
leituras se faziam, assim, na contracorrente dos mais vivos
métodos de moda, embora não pudessem deixar
de ser informadas pelas contribuições óbvias
que aquelas correntes mais recentes de crítica e de
estudo literário traziam para a questão central
de minhas preocupações.
Mais ainda:
alguns dos conceitos advindos destas correntes foram decisivos
para a formulação do argumento central do trabalho,
isto é, de que havia, no crítico paraense, uma
ruptura, ou um impasse, como depois vim a nomear, entre a
leitura histórica ampla e bem informada e a avaliação
propriamente crítica e estética das obras. E
a importância daqueles conceitos se revelava mesmo no
subtítulo do trabalho que resultou de minha leitura:
ali se fala de linguagem da crítica e de crítica
da linguagem, por onde se procura marcar, desde o título,
aquele impasse que, depois, se busca registrar nas diversas
leituras realizadas pelo crítico.
Mas era um
impasse não apenas do crítico, objeto do estudo,
mas de uma larga faixa da própria história da
crítica brasileira e, por isso mesmo, se podia falar
de uma tradição do impasse. Uma tradição
que era anterior ao crítico e que continuava depois
dele, desde que dizia respeito a uma questão central
da própria crítica, qual seja, a de ler a historicidade
nas obras e não apenas usar a história como
frame para a sua leitura.
A tradição
do impasse.Linguagem da crítica e crítica da
linguagem em José Veríssimo terminou por ser
o título do trabalho, apresentado como tese de doutoramento
em 1970 e publicado, como livro, em 1974.
Na mesma
época em que o trabalho era lido, discutido e aprovado
pela Universidade, eu já começara a pensar em
como dar continuidade ao estudo daquelas tensões entre
criação literária e história,
ou invenção literária e crítica
da realidade, como vim a chamar o primeiro curso de pós-graduação
que ofereci em Teoria Literária e Literatura Comparada.
E agora
se tratava de pegar o boi pelo chifre: a leitura, não
de um crítico, mas de um poeta em que fosse possível
refletir sobre aquelas tensões. E o poeta era João
Cabral de Melo Neto que, pouco antes, em 1968, havia publicado
um volume de suas Poesias completas que iam desde Pedra do
sono, de 1942, à A Educação pela pedra,
de 1967, e onde o extremo trabalho com a linguagem da poesia,
chegando mesmo a uma obsessiva metalinguagem, não desprezava
a leitura, pela poesia, da realidade circunstancial e histórica
do poeta.
Não
apenas uma poesia engajada ou comprometida, por seus conteúdos
sociais e históricos, como se costumava dizer ainda
nos anos 60-70, mas uma poesia que fazia de sua própria
realização um modo de compromisso entre o estético
e o ético.
Neste sentido,
era necessário não apenas ler a obra do poeta
(e tudo aquilo que sobre ele se escrevera numa bibliografia
que é das mais copiosas sobre poetas modernos no país.
Basta ver a bibliografia crítica organizada sobre ele
por Zila Mamede), mas a sua tradição, isto é,
o contexto da poesia moderna brasileira, assim como os grandes
e universais poetas europeus e norte-americanos com quem a
sua poesia manteve, de uma ou outra maneira, diálogos.
Mais ainda:
ler e refletir sobre aquilo que, de mais importante, se havia
escrito sobre a própria questão das tensões
entre o que há de transitivo e intransitivo na linguagem
da poesia, chegando-se, finalmente, à enorme questão
da mimese poética.
No entanto,
foi somente pela total imersão no texto poético
de João Cabral, isto é, pelas leituras e releituras
de suas Poesias completas, tomadas como um único texto
para a análise, que pude refletir de que modo se dava,
pelo menos para mim e naquele momento, a representação
da realidade pela poesia. O fundamental é que pude
perceber que a crítica da realidade que, de fato, se
dava naquela poesia não se fazia apenas pelos conteúdos
(em que sobressaiam as leituras feitas pelo poeta das carências
de uma realidade miserável como a nordestina) mas pelos
modos de construção com que eram nomeados aspectos
do real.
Dizendo de
outra maneira: tratava-se de que a crítica da realidade
operada pela invenção literária passava
por uma crítica da linguagem com que esta invenção
buscava apreendê-la.
Deste modo,
era possível dizer que entre o quase silêncio
e a desistência da poesia que está na obra de
1947, Psicologia da composição com a Fábula
de Anfion e a Antiode, e o encontro de uma matéria
poética que se inaugura com O cão sem plumas,
de 1950, o que ocorrera fora o encontro e a descoberta de
uma maneira peculiar de mimese.
Não
mais uma representação de conteúdos da
realidade, mas uma imitação da forma daqueles
conteúdos que, por ser assim, por intensificar os próprios
valores da invenção poética, mais e melhor
operavam aquela representação. Era, portanto,
preciso ler, simultaneamente, num ato de apreensão
vertiginosa, a articulação entre conteúdos
e formalização ou, para voltar ao que por último
se dizia, ao momento da leitura em que é possível,
pela releitura, vislumbrar o intervalo entre o dizer e o fazer
que é a obra que se lê.
A imitação da forma. Uma leitura de João
Cabral de Melo Neto ficou sendo o título do trabalho
resultante de todas as reflexões e análises
que foi possível realizar, apresentado como tese de
Livre-Docência e, em 1975, publicado como livro.
Aquilo, portanto,
que somente em livro publicado em 1990, A leitura do intervalo,
viria a ser explicitado já estava antecipado, como
análise textual e pressuposto teórico, desde
os meus inícios de leitor e professor nos anos 60-70:
uma maneira de ler que insistia na tensão dos elementos
estruturadores da invenção literária
e que, como método, nada oferecia de tranqüilizador
porque a sua existência dependia, sobretudo, de um ato
pessoal de entrega ao próprio movimento indisciplinado
da leitura para, somente depois, retornar criticamente em
busca de coerências capazes de elucidar o conhecimento
adquirido pela leitura.
Conhecimentos
histórico, social, psicológico ou antropológico
que não estão antes nem depois da leitura da
obra em que são representados pela invenção,
mas que constituem elementos indispensáveis de sua
interação com o leitor.
III
Para encerrar,
vou dar apenas um exemplo de leitura realizada dentro dessa
orientação, extraído daquele livro de
1990, em que a validade do conhecimento veiculado pela obra
literária está antes no modo pelo qual foi possível
articular os possíveis elementos de representação
(sejam históricos, sociais, antropológicos ou
psicológicos) do que na pura e simples presença
ou ausência desses mesmos elementos.
Trata-se
de leitura de uma página muito conhecida de Machado
de Assis: o capítulo 123, de Dom Casmurro, intitulado
"Olhos de ressaca". Ei-la:
Enfim, chegou
a hora da encomendação e da partida. Sancha
quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou
a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres
todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia
vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la
dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou
alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão
apaixonadamente fixa, que não admira que lhe saltassem
algumas lágrimas poucas e caladas..
As minhas
cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa,
olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou
de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas
o cadáver parece que a retinha também. Momento
houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os
da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes
e abertos, como a vaga do mar lá for a, como se quisesse
tragar também o nadador da manhã.
Quando lemos
este capítulo, de um livro que termina no capítulo
148 já estamos quase fechando o volume. São
as páginas do desenlace que se iniciam com a morte
por afogamento de Escobar, as desconfianças do narrador
Bentinho que, com a separação de Capitu e do
filho, com o isolamento e as reflexões solitárias,
vai se transformando no Casmurro que assume a autoria do livro.
No entanto,
a imagem mais forte do capítulo, aquela que lhe dá
o título, olhos de ressaca, embora não explicitada
no texto e fonte de toda a desconfiança do narrador
é uma tradução, e tradução
estrutural porque contextualizada, daquilo que está
num dos capítulos iniciais do romance, o 32, também
intitulado "Olhos de ressaca". Trata-se do encontro
entre o narrador e Capitu, ainda crianças, em que Bentinho
vai encontrar a menina na sala dos pais, penteando os cabelos,
e pede-lhe para ver os olhos. Eis o trecho:
Tinha-me
lembrado a definição que José Dias dera
deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada".
Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada
sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se
fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca
os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura
eram minhas conhecidas. A demora da contemplação
creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou
que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com
os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto
atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios,
com tal expressão que
Retórica
dos namorados, dá-me uma comparação exata
e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu.
Não
me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do
estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá,
de ressaca. É o que me dá idéia daquela
feição nova. Traziam não sei que fluido
misterioso e enérgico, uma força que arrastava
para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias
de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às
outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços,
aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa
buscava as pupilas, a onda que saía delas crescendo,
cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.
Deste modo, toda a magistral intensidade narrativa do capítulo
123, em que a psicologia das emoções e dos afetos
encontra, para dizer com T.S.Eliot, o seu correlato objetivo
na imagem marinha, tradutora da morte de Escobar, interiorizada
na percepção dos olhos de Capitu, somente é
possibilitada pela leitura do intervalo entre os dois capítulos
lidos e relidos.
Aquilo que
o capítulo 123 oferece como conhecimento da psicologia
do narrador ao leitor é mais do que um conteúdo
psicológico. Os procedimentos literários adotados
pelo escritor, estabelecendo precisas relações
de imagem e sábias escolhas vocabulares, que operam
reverberações contínuas de significado,
criam o espaço para a intensificação
daquela função poética da linguagem,
tal como definida por Roman Jakobson, quando então
o que é significado narrativo torna-se inteiramente
dependente da mais ampla articulação do texto.
Entre os
olhos de Capitu e o cadáver de Escobar, a imagem marinha
da ressaca é também força de atração
capaz de tragar, "como a vaga do mar lá fora",
a imaginação do leitor.
Dadas as
reverberações e as dependências instauradas
no espaço do texto, o conhecimento apreendido pelo
leitor é de ordem psicológica mas é mais
do que isso.
Como negar, por exemplo, o fato de que é por força
da presença dos elementos marinhos contidos na imagem
criada no capítulo 32, e depois traduzidos como metáfora
no capítulo posterior, que o leitor, por assim dizer,
conhece o ambiente, o meio carioca em que se passa o romance?
Mais ainda:
pela releitura, é possível perceber como o motivo
da morte por afogamento, entrelaçado ao do ciúme
que corrói o narrador, já estava insinuado na
caracterização "de ressaca" dos olhos
de Capitu, "oblíqua e dissimulada" nas artimanhas
para fazer Bentinho escapar do seminário, do capítulo
32.
Por tudo
isso, o que se quer dizer é que o conhecimento veiculado
pelo texto de Machado de Assis, assim como ocorre em todos
os textos que suportam a releitura, e mesmo a exigem como
condição fundamental de acréscimo, é
dependente da própria organização do
discurso ficcional, que deve ser percebida e procurada pelo
leitor para que ele possa absorver a especificidade daquele
conhecimento.
Não
é um conhecimento progressivo ou por acumulação:
a sua possibilidade está antes na leitura (que sempre
exige a releitura) de uma região de intervalo situada
entre os conteúdos de representação e
sua efetivação artística, vale dizer,
para citar Paul Valéry, sua instauração
como linguagem dentro da linguagem.
Como podem
ver, uma maneira de ler que tem muito mais de inconclusão
e de desvio do que de caminho para chegar a um fim e, portanto,
um método que não se pode oferecer como escolha
tranqüilizadora para outro leitor. É antes um
anti-método.
*
João
Alexandre Barbosa, crítico, ensaísta e professor
de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade
de São Paulo (USP), é autor do livro Alguma
Crítica (2002), entre outros títulos.
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