Construí
a minha força com aplicação,
metodicamente.
Vergílio Ferreira
É a
beleza do que é estranho, desarmónico – penso –
para
se recuperar a harmonia que se perdeu.
Vergílio Ferreira
Saiu recentemente nesse Brasil que por
tradição se mostra tão relutante em receber os poetas portugueses um estudo de
um investigador brasileiro, Daniel de Oliveira Gome, dedicado à poesia de Jorge
Melícias, seguido de selecção de poemas. Não direi que uma edição deste género
se impunha em Portugal; não quero a polícia à perna. O livro leva o título de A poesia do excesso – Rumo às Vísceras de
Jorge Melícias, e chancela da TodaPalavra Editora. É muito significativo
que alguém que não tenha acompanhado a evolução da poética de Melícias e,
portanto, alguém que acabou de tomar contacto com esta poesia (conforme explica
na Introdução), tenha encontrado imediatamente matéria e estímulo para um
ensaio tão longo. E é tanto mais significativo quanto a leitura desta poesia é
tarefa exigente, particularidade que tenderá à rejeição espontânea do leitor
mais distraído ou menos preparado. Assim se explica que alguns leitores,
desconcertados por uma linguagem tão pessoal e inesperada, a enjeitem como
corpo morto – porque assim arrumam a questão, ao colocarem esta poesia na
linhagem de outra que repelem, e evitam o confronto e o desconforto que provoca
esta voz singularíssima no contexto da poesia portuguesa contemporânea.
A poesia do horror que Jorge Melícias pratica
impressiona, diz o autor do estudo que apresentei, pela sua «desafetação»,
termo dificilmente usado no português europeu. Esta «desafetação», esta
ausência de afectos tem, segundo me parece, duas possibilidades de leitura. Se
por um lado podemos reconhecer que a ausência dos afectos remete para um estado
primordial, pré-civilizacional, no qual as pulsões violentas do homem emergiam
da união com a natureza caótica (Bataille), por outro, o início do período
histórico, com a interdição dos impulsos naturais instaurada pela ordem do
trabalho que veio impor o modo de vida civilizacional (outra vez Bataille),
veio metamorfosear esta violência do estado selvagem em crueldade,
característica especificamente humana. De facto, só o homem poderá transformar
num fim em si aquilo que nos outros animais se apresenta como instrumento ao
serviço dos instintos básicos de sobrevivência. Oliveira Gomes destaca a
primeira destas leituras, ao mesmo tempo que só muito ligeiramente aponta para
a segunda quando reconhece que a poesia de Jorge Melícias se inscreve na
"discursividade pós-utópica do mundo em estamos".
Com efeito, afirmamos que a crueldade em Jorge Melícias
não deve ser entendida no quadro da sua inscrição no tempo histórico, se o
enunciarmos, na sequência de Bataille, como a progressiva separação do homem em
relação à natureza pelo investimento de interditos que canalizem a sua energia
deletéria em energia produtiva. Neste sentido, só poderemos entender esta
poesia como eco de um tempo pós-histórico. Poderíamos facilmente ser conduzidos
para um equívoco se pressupusemos que a crueldade em Jorge Melícias
radica na falência dos valores na Modernidade, momento histórico que na poesia
configurou a figura do poeta maldito. A progressiva afirmação do Mal como
contra-valor decorre da progressiva neutralização do Bem (e, no caso, do Belo)
como valor. A falência dos Valores Aglutinadores que autenticavam a presença do
ser humano no mundo e em referência aos quais se instituía a gradação dos
valores (Deus, a Razão, o Comunismo, etc.) deixou a arte sem referente externo
a si própria, pelo que não lhe restou alternativa senão virar-se para dentro e
ver o que era. A luz que reflectia não era dela, e o que ficou foi um abismo
imperscrutável. Então pôde ver-se que o poema não era mais que uma construção
linguística capaz de exprimir o homem. Poesia como conhecimento.
Ora, se, como diz o autor, "o que temos são
(…) poemas como fetos mortos expelidos de um corpo funcional", ou se "em Melícias não
temos nenhum segredo do corpo [isto é, a alma], mas o corpo ele mesmo como um
enigma maior, corpo oculto [isto é, cadáver] ", se então o que temos em Jorge Melícias
são representações de um horror com «esquadria», sem excesso para onde
extravase nem segredo que oculte, se a alma não qualifica as percepções do
corpo, a crueldade de Jorge Melícias não se pode opor a nenhum valor do qual
desesperássemos, como os românticos malditos, não se afirma como contra-valor
que certifique o valor que nega (como Diabo certifica Deus). Esta crueldade é
ímpia não por obstinação, mas por vocação, não por subversão, mas devido à naturalização que sofreu após o que
será, na narrativa de Melícias, o final da história, coincidindo com a inibição
ou ineficácia do interdito que separava e fazia a ponte entre o mundo profano e
o mundo sagrado, o cá e o lá onde nos reflectíamos, a terra e o céu. Não há
nenhuma espécie de duplicidade moral, ou ambiguidade ética, não há um espelho
invertido no qual se reflicta por oposição ao que a nega. Perdoem-me portanto a
desfeita os detractores desta poesia como devedora de uma concepção moribunda
do fazer poético, segundo a qual o poema acreditaria no seu poder re-ligioso.
Só assim entendemos que o poeta afirme que trabalha «a crueldade / pelo lado da
exuberância»,
ou que, sendo «A chacina (é) uma indução / à espera do seu tempo», a instância
enunciadora se estabeleça «unívoca» «sobre esse propósito». Não há duplicidade,
é univocamente que se estabelece no propósito que persegue: nenhum temor,
nenhuma hesitação. Transcrevo em baixo na íntegra o poema que ilustra
perfeitamente a ideia que pretendo veicular:
«As pás do remorso não porfiam
quando todo o gesto
rasura a compaixão.
É essa a minha arte: fixar sobre a paisagem
o despojamento
que o horror persegue.
E que nenhum indulto ofusque o meu triunfo:
eu a encimar o luto
ponho grinaldas.»
O campo de batalha está deserto, regado de
sangue e povoado de cadáveres e corpos desmembrados. Um homem novo, ou não será
já homem?, deambula pelo lugar. Aquela é a paisagem da sua formação, ali
escreverá, se escrever, o seu bildungsroman.
Estamos no tempo depois de Depois de Cristo, no qual se dissolveu a dissociação
entre o bem e o mal. Não são novos valores que se criam – estamos longe da
transmutação de valores nietzscheana (embora estejamos mais longe ainda de tudo
o resto) –, nem valores antigos que se rebatem: é, como vimos, a ausência de
todos os valores, mesmo do primeiro de todos, que é a própria ideia de valor.
Axiologia exangue. É aqui que tenho de me separar do autor do estudo sobre
Jorge Melícias. Oliveira Gomes parece remeter a crueldade de Melícias para o
plano da transgressão, movimento que, ainda segundo Bataille, resgataria a
distância entre o terreno e o interditado e o inscreveria na ordem do sagrado. Diz
ele: "É assim, neste pacto quase de colecionador de imagens reiteradas, onde a
probabilidade de compaixão está previamente rasurada, como um homem possuído
(…) [por] «um amor profundo pela impiedade», que Melícias cunha uma dimensão
sagrada para aquilo que, usualmente, é posto no reino do profano". Mas se assim fosse
Melícias teria de mostrar temer o interdito, isto é,
senti-lo como resistência a ser ultrapassada. Parece-me contudo que o que temos
essencialmente é um horror despojado e desinteressado (o verso «uma amor
profundo pela impiedade» deve pois ser interpretado não como a assunção de uma
adesão, como o amor por uma pessoa ou por uma ideologia, mas como a mera
rendição a uma tendência natural, e por isso, sem valoração implícita. Como se
ama uma mãe. Outro dos poemas mais recentes, do conjunto agma que abre disrupção,
postula o desespero como «forma de beatitude»:
«Vi os campos inçados pela improbidade.
Os justos como plainas alucinadas
sobre a incontrição
das esquírolas.
E o desespero
era uma forma de beatitude.»
Esta beatitude
não se projecta como o estado de graça cristão. Não é a beatitude dos
absolvidos, mas a dos inocentes, dos que nunca chegaram a pecar: noção que
Melícias parece não contemplar nos seus poemas, pelo menos nos mais recentes,
que são os que mais agudamente reflectem a maturação quer oficinal, quer
conceptual de Jorge Melícias. Não obstante, já a reunião de poemas anterior a agma apontava, logo pelo título, para
este paradigma: a longa blasfémia pode
ser lido como a implantação permanente da blasfémia, expediente que acaba por
atenuar e eliminar a sua compleição transgressora.
Uma poesia
assim não se expõe para usufruto. Não celebra nem representa: apresenta-se.
Esta é a carne nua apodrecendo; o sangue que corre dentro é mera mecânica, e
quando verte uma gota, nenhum alimento desce para a terra estéril. Diz muito
acertadamente Oliveira Gomes: "Não podemos mais celebrar o fruto, apenas o
limite, a própria interdição do belo, como conceito tradicional, bem como de
qualquer forma de superioridade, qualquer elemento que, sentimentalmente, se
ponha como soberba, elevação ou acesso". Procedeu-se à rasura dos
afectos e o que agora se ergue é um nervo que se expande e contrai em múltiplas
disrupções. Nada mais. Desta forma, a poesia que se apresenta não será
mais um poesia lírica, no sentido da captação da subjectividade de um eu
autoral, dado que o sujeito poético, na sua concepção tradicional, está
praticamente ausente da enunciação, e acaba por ser sempre o leitor que ao ler
se reflecte num caco aguçado de espelho, mesmo que a imagem refractada não seja
a de si próprio mas a de um seu monstro, ainda que seja monstro apenas aos seus
olhos, nunca dentro da dinâmica do poema.
Resta
perguntar-nos de que forma é que esta poesia nos pode ainda comover. Inscrita
num tempo que considerei pós-histórico, ela afecta-nos na medida em que esse
tempo, o tempo da nossa morte, é ainda o nosso tempo, isto é, o tempo dos
homens, único que existe. Assim ele assusta-nos pelo que nos dá a ver e comove-nos
por nos dar a ver o que, enquanto homens, nos assusta:
«Ergo-me da refrega
e tomo posse sobre o excídio.
Eu vi a minha mão em tudo o
que se demarca da piedade. E comovi-me.»
Se não
gostamos do que vemos, não podemos deixar de gostar da oportunidade que nos é
dada de ver. Será esta, ou não?, a nossa última dignidade?
Referências Bibliográficas:
Bataille, George, O erotismo (3ª ed.), Lisboa, Antígona, 1988.
Gomes, Daniel de Oliveira, A
poesia do excesso: Rumo às vísceras de Jorge Melícias, Ponta Grossa, PR,
TODAPALAVRA, 2011.