Não esquecemos que exaltaste outrora todas as nossas idades. Temos
fé no veneno. Sabemos da nossa vida inteira todos os dias.
Eis o tempo dos ASSASSINOS.
Rimbaud
até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza
Herberto Helder
Tanto mais és Deus
Quanto homem te reconheces.
Plutarco
I
Num dos seus últimos poemas antes do suicídio com estricnina num quarto de Hotel em Paris, decorria o ano de 1916, Mário de Sá-Carneiro escreveu os seguintes versos como que fazendo um balanço final da sua vida:
«O sem nervos nem Ânsia – o papa-açorda,
(Seu coração talvez movido a corda…)
Apesar de seus berros ao Ideal.»
(Aquele Outro)
Entrevemos nestes versos a assunção de uma derrota, o reconhecimento de que uma vida, que se queria destinada à prossecução de um Ideal que subsumisse todos os logros mundanos, se gorou – ainda que se tivesse debatido – ao reconhecer-se, afinal, uma vida falsa, impossível de se fixar e de se dominar. No fim voluntário da sua vida encontramos um poeta vencido pela sorte, sem força de vontade, aceitando resignado a morte que prepara, duvidando sequer que alguma vez tenha estado na plena posse do seu espírito (o coração talvez tenha sido sempre movido a corda). Este sentimento de logro é transversal a toda a produção poética do autor que nos ocupa: “só de ouro falso os meus olhos se douram”, “não me pude vencer, mas posso-me esmagar, “Há Ideal, mas sinistro em sons de bronze”, “fingidas afinal todas as portas”, etc. Não obstante, o poeta procurou o combate. Dele não se pode dizer que não tivesse atirado “berros ao Ideal”. E mesmo que este não tivesse respondido ou tivesse sequer dado sinais de que lá estivesse, os ecos são prova de que gritou. Esta derrota, que é em verdade uma derrota antes da verdadeira luta, e por isso ainda mais derrota – sabemos desde Nietzsche que devemos orgulhar-nos dos nossos inimigos, de cuja glória participamos –, resulta, como vimos, da impossibilidade de encarnar um Ideal que legitimasse a refrega. Assim, mesmo se derrotado, teria vencido: a sua vida estaria justificada pelo grande Absoluto que o transcendesse e no seio do qual se perpetuaria. Ao invés, Sá-Carneiro vê-se despojado de inimigo e, sem combate, resta-lhe lamentar-se do ostracismo a que foi condenado. Reconhecendo que a refrega era uma refrega sem causa, Sá-Carneiro não podia participar da guerra, e, logo, do convívio dos homens: sem vínculo que o segurasse, como não cair no abismo que dentro dele se abria? E na Queda, de que valia gritar, estrebuchar, lançar braços aos escolhos que consigo caiam, na tentativa, não de parar de cair, mas de saber porque e por que se cai? Na Queda para dentro de si, como não cair irremediavelmente?
Em nenhum passo da sua obra Sá-Carneiro nos dá uma pista sólida para a conceptualização desse termo vago. Luta-se pelo Ideal a haver, não por um ideal. Ascende-se para se chegar “além”, mas é o “aquém” que se agarra, e o “além” acena de novo, mas mais longe, miragem inalcançável. O termo foi esvaziado de conteúdo, nenhuma noção o fecunda. Afirma-se o valor aglutinador de um Valor sem que se possa definir os trâmites em que se apresente, sem que se lhe possa determinar a ordem simbólica em que se inscreve. Dieter Wöll, no seu estudo pioneiro sobre a obra de Sá-Carneiro, apontava já para esta incapacidade de nomear o Ideal. Este Ideal, em vez de actuar segundo a sua realidade concreta, “actua antes pela intensidade da emoção (…), um estado de vivência intensificada de forma hiperbólica.” O afã do Ideal, que muitas vezes se cola à ideia de Beleza, desprovida a priori de referente, é da ordem do sensível, mais do que do inteligível. Já numa carta a Fernando Pessoa, datada de 7 de Janeiro de 1913, Sá-Carneiro identificava a fatalidade que coube a ambos: “É uma coisa horrível! Um abatimento enorme nos esmaga, o pensamento foge-nos e nós sentimos que nos faltam as forças para o acorrentar. Pior ainda: sentimos que se nos dessem essas forças, mesmo assim, não o acorrentaríamos.” Significa isto que a possibilidade de realizar uma ideia está comprometida desde o seu investimento: não pode o poeta agarrar a sua ideia porque a ideia não se pode ela própria fixar. A Verdade em relação à qual todas as outras verdades da vida se podem cotejar, e em consonância com a qual se podem legitimar, deixou de existir.
«Nem ópio nem morfina. O que me ardeu
foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.»
(‘Álcool’, sublinhado nosso)
É só de si próprio que o poeta delira porque é nele que se funda a crise. A crise que anuncia é a crise do sujeito, ou melhor, a crise da representação do sujeito: diante de quem, diante de que espelho, de que Outro se pode agora apresentar? A entrada da Modernidade marca o declínio das grandes fórmulas aglutinadoras que explicam todo o mundo a partir das suas premissas. Deus e Razão, as duas grandes referências, estavam em falência. À entrada da modernidade o último grande fôlego da sociedade ocidental alicerçava-se na filosofia hegeliana e na noção de progresso a ela adjacente, que de etapa em etapa levaria a humanidade a uma perfeição auto-consciente num processo dialéctico que se apregoava incorruptível, e portanto, apontado a uma forma de fé. Contudo, à medida que os progressos científicos e tecnológicos da fé positivista, que aparentemente colocavam o homem na posse e usufruto de todos os elementos, iam-se mostrando cada vez mais catastróficos, começaram a manifestar-se alguns sinais de descrença. Entrávamos então na era do relativismo. As fórmulas aglutinadoras foram substituídas pelos sinais da dispersão. Os autores modernistas surgem já no crepúsculo desta época, quando o logro é inevitável, quando se percebe que a sociedade caminha não para um mundo melhor, mas para a auto-destruição. O progresso é afinal destrutivo, alienante, e nenhuma verdade é irredutível, senão flutuante. As cidades tornavam-se enormes labirintos asfixiantes, a poluição e a guerra eram uma ameaça constante e as energias vitais eram sugadas pelo ambiente altamente industrializado e governado por uma lógica de produção capitalista que encapsulava o indivíduo numa rede sem sentido de produção e consumo da qual não se pode evadir, sob a pena da exclusão dentro da própria rede, sentimento a que Sá-Carneiro deu expressão laminar nos seguintes versos:
«O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.»
(Dispersão)
O pobre moço das ânsias, o que pelas ânsias se aparta do mundo, esse sim era alguém, porque livre, mas a impossibilidade de verdadeiramente se evadir não o permite libertar-se verdadeiramente, acabando por se abismar nas ânsias, numa queda para dentro, nunca para o fora das forças aprisionadoras.
O Progresso libertador revelou-se afinal um progresso castrador, um movimento autónomo no qual o indivíduo participa como um elo da máquina, não podendo por isso participar da visão mais lata e dos benefícios. Agora que Deus tinha perecido e que o homem ia tomar o seu lugar como senhor da criação, logo se descobre que o homem não é divino (“Vêm-me saudades de ter sido Deus”). A autonomia da razão que iria levar o homem ao altar do qual havia deposto Deus, logo se mostrou incapaz de funcionar sem um Valor que a transcendesse: em nome de quê, agora, afirmar uma verdade? A razão e a vida não convivem pacificamente. A capacidade de abstracção da razão, a sua capacidade de criar conceitos, afasta-a irremediavelmente da vida, que é da ordem do concreto. Caeiro soube-o muito bem: assim, não existem renques, mas árvores: “Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas. / Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes.” Esta impossibilidade de o Real se deixar aprisionar pelos conceitos da razão enforma uma aporia a que a modernidade não soube dar resposta, embora tivesse sido ela a formulá-la. É assim que Eduardo Lourenço apelida Fernando Pessoa de “«espião do Nada», hugoliana «boca de sombra» a que ele emprestou os seus próprios lábios”. Se a Pessoa coube, pois, sondar esse abismo devorador dos seus próprios filhos e dele dar-nos conta para nosso assombro, já Sá-Carneiro não poderia aceitar ser porta-voz de tão graves notícias, e, embora deixando-se engolir por essa mesma «boca de sombra» que a tudo devorava, não se deixou ir sem antes riscar contra o palato o sinal da sua discórdia: “Já sei, positivamente sei, que há só ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída (…). Eu sou daqueles que vão até ao fim. Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente”, ideia que mais lapidarmente se expressa nos versos: “As grandes Horas! – vivê-las / A preço mesmo dum crime!” Sá-Carneiro não aceita que as grandes Horas já não possam ser vividas, ele sabe de um “elo” que talvez nunca tenha existido, mas cuja ausência é representa uma lacuna:
“Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi… Mas recordo // (…)”
(Dispersão)
A esta saudade do que nunca existiu chamaremos nostalgia do Absoluto. Ao vazio que essa ausência deixou, chamamos-lhe, como temos vindo a fazer até agora, Ideal.
Em Fernando Rei da Nossa Baviera, Eduardo Lourenço sublinha, a propósito de Fernando Pessoa, a “solidão ontológica” do Ser, consequência da impossibilidade de o homem moderno dialogar com o mundo na medida em que não dispõe dos alicerces com os quais poderia fundar essa relação: “Não havia centro, não havia Fernando Pessoa, não há pessoas, mesmo sem ser fernandos: há apenas uma ausência radical do eu a si mesmo, um vazio original, informe e sem nome, apto a revelar-se (inutilmente, aliás) sob mil nomes”. A “única pulsão e único objecto da sua poesia” – continua – “são a ausência de toda a realidade, excepto a da actividade anuladora, «néantisante», da consciência”. Perspectiva-se aqui a grande aporia da modernidade: a impossibilidade de conhecer, dado que o Ser, lugar de unificação das diversas actividades da consciência, se revelou mais uma das ficções da razão, um dos seus conceitos abstractos pelos quais opera. Esta aporia está presente da mesma forma em Sá-Carneiro: “Quero reunir-me, e tão todo me dissipo – / Luto, estrebucho… Em vão! Silvo pra além.”, “– Onde existo eu não existo em mim?” O “Ser é Ausência”, diz-nos ainda Eduardo Lourenço numa das suas fórmulas sintetizadoras. O ser é o vazio no qual se reflecte a realidade para produzir uma refracção. Essa refracção, luz falsa, é que é o Ser. Sigmund Freud, em finais do século XIX e inícios do século XX, veio chamar a atenção para os fenómenos inconscientes da nossa actividade mental e para a falta de unidade da nossa consciência: “there can be several mental groupings, which can remain more or less independent to one another, which can alternate with one another in their hold upon consciousness”. Se podemos dividir-nos em vários estados de consciência, em que centro podemos instalar a irredutibilidade do nosso ser? A qual das nossas múltiplas consciências pertencemos e a partir de qual podemos estabelecer uma relação com o mundo suficientemente sólida para dizermos que efectivamente o conhecemos? O Eu, filho do racionalismo, encontra-se, à entrada da modernidade, disperso, fragmentado. Entre nós e mundo abre-se um abismo, um “Intervalo” que Pessoa e Sá-Carneiro souberam intransponível. Mas enquanto um, por espírito de ironia e sadomasoquismo, nos pintou esse abismo até ao paroxismo da impossibilidade da sua representação, o outro sentiu a grande ausência que se abria e não parou de evocar o elo que a tudo subsumiria (“Que me faltou afinal? / Um elo?... Um rastro?...). E assim pereceu em nome desse grande Ausente, desse Ideal que não conheceu, mas que afirmou com o seu sacrifício de uma vez por todas. “Sofro ainda”, dizia numa das suas cartas pungentes a Fernando Pessoa, “e também, meu querido amigo, por coisas mais estranhas e requintadas – pelas coisas que não foram”, isto é, pelo Ideal que não há. Sabe-se há muito que não é a fé que faz o mártir, mas o mártir a fé. Por esse Ideal-que-não-há-mas-devia-haver, pereceu Mário de Sá-Carneiro, emprestando-lhe com o seu sacrifício o valor que não tinha. A forma expurgada de conteúdo recebe a carga simbólica, ainda que não ache onde se fixar. A nostalgia do Absoluto tornou-se para Sá-Carneiro no próprio Absoluto.
II
George Steiner, em The Death of Tragedy, defende a tese de que há tragédia sempre que um indivíduo é subjugado por forças externas que não pode compreender nem combater: “Tragic drama must start from the fact of catastrophe. (…) The tragic personage is broken by forces which can neither be fully understood nor overcome by rational prudence.” Associada a essa catástrofe deve estar uma culpa de que os eventos trágicos são a punição. A transgressão que despoleta a culpa pressupõe que ordem previamente estabelecida que é quebrada pelo herói trágico. A punição resulta em expiação – e é aqui que assenta a dignidade trágica –, porque, ao ser castigado, “man is ennobled by the vengeful spite or injustice of the Gods. It does not make him innocent, but it allows him as if he had passed through flame”. Este enobrecimento do homem que é objecto da vingança dos deuses, e portanto, da sua atenção, é a Catarse que Aristóteles reservou apenas ao espectador da tragédia e que Steiner resolve assim em favor do herói trágico. Vemos deste modo que a tragédia está directamente relacionada na sua origem grega com a ordem subterrânea que governa todas as coisas e que os homens enunciam sob a forma de um sistema simbólico, único meio de se referirem ao que não pode ser nomeado porque incognoscível. Percebemos assim a tese da morte da tragédia que Steiner defende se compreendermos a passagem da subjugação do homem à ordem orgânica, para a subjugação do homem à ordem artificial que a Revolução Industrial e o sistema capitalista introduzem na época iluminista da crença na razão e sua faculdade de compreender o mundo e o recriar à sua maneira: “the decline of tragedy is inseparably related to the decline of the organic world view and of its attendant context of mitological, symbolic, and ritual reference”. Sem mitologia não há tragédia. Quer isto dizer que sem a assunção de um ou de um conjunto de valores, de uma referência extra-terrena ou, se quisermos, transcendente que atribua significado à realidade, não há tragédia. Socorremo-nos ainda de George Steiner: “Where a tragic conception of life is in force, moreover, there can be no recourse to secular or material remedies. (…) Tragedy tells us that the purposes of men sometimes run against the grain of inexplicable forces that lie ‘outside’ yet very close.”
A tragédia morre, pois, no momento em que o homem toma as rédeas do seu destino, decidido a não mais se deixar subjugar pela ordem cósmica do mundo. O dia da ascensão do homem é o dia da queda dos deuses e, com eles, da tragédia. Quando o homem é ilibado da culpa do pecado original, termina a tragédia. O arauto simbólico desse declínio é Jean Jacques Rousseau, ao veicular com as suas teses a inocência essencial do ser humano. Depois de Rousseau, um homem não é mais responsável pelos seus erros (e, por consequência, pelos seus actos, premissa cujas consequências Rousseau não soube calcular), dado que a sua posição social e a sua educação determinam a sua identidade. Uma sociedade boa não produziria homens maus: o homem é portanto intrinsecamente bom, a sociedade é que o corrompe a posteriori. Não cabe aqui o sentimento de culpa individual (donde segue que também não pode caber o sentimento de culpa colectiva…). “And because the individual is not wholly responsible, he cannot be wholly damn.”
O homem-vítima tentando reerguer-se para um futuro próspero cujas premissas ele próprio desenharia e controlaria, eis a profecia de Hegel e Rousseau à entrada do século XIX. Século e meio depois e víamos esse grande homem-esperança reduzido às cinzas da auto-destruição. O imperecível castelo, a nova e ainda mais imponente torre de Babel – tudo ruído, desfeito em pó. No entretanto, que foi feito da inocência ainda há tão pouco tempo conquistada? Serviu a inocência para legitimar as maiores atrocidades. A vítima, na posse da sua inocência – e por isso liberta da culpa, elemento de ligação a uma ordem superior –, permitiu-se todas as liberdades: não cabia mais obedecer a leis subterrâneas que nos oprimissem, havia sim que forjar e impor as nossas leis, isto é, as leis que nos impúnhamos uns aos outros do alto da nossa insolência. Porque se a nada externo podíamos referir os nossos valores, para os propagar teríamos de recorrer à força e à violência, ou à persuasão, que é uma violência mais subtil. Era agora uma inocência altiva que sem se aperceber, pois não cria, voltava a ceder à hubris e a pagar o preço que os deuses fadam para o crime de orgulho. Agora, como sempre, a cega inocência.
Perscrutamos pois a ascensão da burguesia auto-complacente, a mesma que se impôs a Sá-Carneiro, com suas leis e seus modos de vida, e que ele repudiou com estricnina. Mato-me, dizia Mário de Sá-Carneiro, porque não tenho dinheiro. O galope do capitalismo deixava para trás os inadaptados, o excedente da sua fúria, aqueles que não poderiam participar do seu triunfo porque guardavam ainda, por mais esvaecida, uma noção de Absoluto de que sentiam o apelo. Quero dizer: um Indício de Ouro, um vestígio de mistério apontado ao transcendente, a incerteza de uma imersão dionisíaca no Cosmos. As auto-proclamadas vítimas da contingência (o substrato social corruptivo) tornada necessidade (porque inelutável) faziam agora as suas próprias vítimas ao buscarem sem freio as compensações terrenas que julgavam merecer para a sua vida sem transcendência. Eliminado o Paraíso no céu, havia que o transpor para a terra. Steiner afirmava que onde há compensação (fosse o Céu cristão ou a Justiça Social marxista) não pode haver tragédia. Mas para o homo sacer, para nos socorrermos de um conceito de Agamben, para o homem-excedente, para o homem despojado da sua transcendência e agora também da sua imanência porque afastado do convívio dos homens, que compensação pode haver? Que compensação poderia haver para Sá-Carneiro, que entreviu o “Mistério que é o meu e me seduz” e cuja alma buscava o “além” que não havia? Que recompensa poderia servir a quem renuncia ao trono terreno por o saber falso e feio? Nenhuma: paga-se o preço, e é tudo.
«A vida, a natureza
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca de beleza.
(…)
Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro – é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois…»
(Partida)
III
Na sua tentativa de conceptualização da noção de trágico, Terry Eagleton chama a atenção para a insuficiência da proposta de Steiner ao parecer subtrair ao evento trágico a autonomia reivindicativa da vontade da vítima: “Tragedy must be more than mere victimage; it must involve a courageous resistance to one’s fate”; e, mais à frente, “Tragedy is held to be about the response to an event, not just the event itself.” Se em Steiner era a atenção que os deuses dispensavam aos humanos aquilo que constituía a dignidade trágica, para Eagleton a tónica está na liberdade individual, na recusa que sempre podemos impor ao que não podemos dominar, ainda que sob o preço da nossa própria prostração. Porque se podemos ser vencidos, e somos, não podemos ser convencidos, a menos que queiramos. É isto uma compensação? Não, é uma constatação. É nisso, segundo Miguel de Unamuno, autor espanhol contemporâneo de Sá-Carneiro e por isso duplamente próximo, que consiste a nossa tragédia: a nossa impossível, mas nem por isso menos real e constante, recusa de morrer, a nossa omnipresente hambre de inmortalidad. A angústia que nasce do confronto destas duas verdades inconciliáveis – a necessária morte e a necessária recusa da morte – é aquilo a que chama o sentimento trágico da vida: vamos morrer, mas não vamos morrer porque a morte é absurda e não cabe na vida. Tragédia e utopia afiguram-se-nos assim muito próximas, pelo menos tanto quando podem estar próximos dois conceitos opostos que por isso mesmo se toquem. Se a utopia veicula no domínio discursivo as carências do real, contrapondo-as às presenças fantasmáticas que se podem apenas entrever e desejar, já a tragédia “reminds us of what we cherish in the act of seeing it destroyed”, ou seja, a tragédia atinge-nos na medida em que o Valor que afirma não nos é indiferente: “without a sense of value, such sorrow would be meaningless. And as long as there is value, there can be tragedy.” Se a utopia coloca o bem num plano ilusório mas inteligível, a tragédia afirma o bem pela dor que a remoção desse bem despoleta. De um lado aspira-se ao bem, do outro suspira-se pelo bem. Em qualquer dos casos, o Bem está ausente.
É aqui que reencontramos o poeta Mário de Sá-Carneiro. A sua poesia lembra-nos a cada passo que há alguma coisa essencial que perdemos e que o poeta busca sem sucesso, condenando-se por isso: neste jogo de tudo ou nada, a vida por inteiro ou a morte, existe apenas um resultado possível – aquele que é dado pela súmula das orações que estavam separadas pela disjuntiva: a vida e a morte. A vida por inteiro conquista-se a um único preço, o da dissipação:
«Numa ânsia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh’alma perdida não repousa
(Escavação)
Não é impunemente que se abandona o abrigo do ninho, o aconchego fortificado da cidade dos homens, e, mesmo lá, tantas vezes o deserto do real nos vem bater à porta, conforme experimentámos no dia 11 de Setembro de 2001. Ir para o vazio reclamar pelo que de lá se ausentou é condenar-nos em nome do Ideal. E condenar-nos voluntariamente em nome de uma ordem superior é iniciar o lance trágico.
Se por um lado temos que a tragédia não é já possível, como Steiner bem frisou, uma vez que a não podemos referir a uma ordem simbólica à qual estejamos submetidos, e assim Sá-Carneiro pode dizer, lamentando a impossibilidade de se alçar a herói trágico: “Doido de esfinges o horizonte arde / Mas fico ileso entre clarões e gumes” (a esfinge está tão distante – no horizonte em chamas – que não ameaça), ou
«(Que história d’Oiro tão bela
Na minha vida abortou:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou…)»
(Cinco Horas)
por outro lado, temos que a rejeição de uma vida acomodada, ignorante de Além, não é concebível para o nosso autor, e assim não hesita em atirar-se, mesmo que fique apenas esmagado sobre si (“Tombei… / E fiquei só esmagado sobre mim!...”; “Eu fui alguém que se enganou / E achou mais belo ter errado…”). Tudo é preferível à ilusão de saciedade de quando a hambre de inmortalidad é varrida para debaixo do tapete dos problemas que desistimos de colocar porque sem solução. Quando para não ter fome é preciso arrancar o estômago, é preferível morrer de carência a viver incompleto.
A tragédia de Sá-Carneiro é pois a impossibilidade de haver tragédia, de encontrar o elo que não há e com o qual o nosso autor podia jogar a vida por inteiro, defrontando o Absoluto que lhe escapa. Estamos agora muito perto da expressão sartreana que afirma que estamos condenados a ser livres. A tragédia de Sá-Carneiro anuncia já o existencialismo, corrente de pensamento consciente de que a assunção plena da nossa liberdade nos atira para um vazio ético do qual dificilmente nos saberemos levantar. Assim, como vimos, por mais que Mário de Sá-Carneiro se eleve, fica sempre “aquém”, a beleza que atinge desmorona-se ao ser atingida, o Valor a que aspira não se deixa agarrar, e o nosso autor fica tolhido no vazio da sua condição, sem esperança e sem suporte. Não estaremos então na presença de uma dupla tragédia, ou pelo menos de uma tragédia ainda mais agónica? Não será esta a tragédia do tempo que nos coube? Que significa a crise de representação e a crise de valores da pós-modernidade senão esta dupla ausência de esperança e suporte? A tragédia está viva, diz ainda Eagleton, porque onde quer que haja reacção à barbárie moderna há a afirmação de um valor que se lhe opõe: “If tragedy is dead, then as we have seen already it is because it posits a sense of value which history of terror has supposedly extinguished. And if it is of absolute value, whether alive or dead, it is because it represents a reaction to modern barbarism.” A poesia de Sá-Carneiro não patenteará também ela uma reacção à barbárie do seu tempo, opondo a necessidade de um Valor à ausência de Valores? A sua derrota não será a afirmação de uma vitória a haver? Porque só se perde se se pode, ou pôde, ganhar. Sá-Carneio pereceu tragicamente para que a possibilidade de triunfo pudesse ser afirmado. E é por isso que, quatro anos antes de se suicidar, ao dar conta ao seu amigo Fernando Pessoa da intenção futura de acabar com a vida, Sá-Carneiro se refere ao seu último minuto como “a hora do triunfo!...”. Não é só saber que o ouro que se acha é ouro falso, é saber que sem Ouro não há vida. E que o resto é muito pouco. Longe vão os tempos dos castigos dos deuses para quem ousasse descobrir mais do que lhe era permitido, expediente que usavam para nos impedir de descobrir a verdade que tão zelosamente guardavam: a de que não existem deuses, só abismo. E o abismo pune mais profunda e dolorosamente que os deuses, pois pune sem justificação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Agamben, Giorgio, Estado de Excepção, Lisboa, Edições 70, 2010.
Eagleton, Terry, Sweet Violence: the idea of the tragic, Oxford, Blackwell Publishing, 2003.
Freud, Sigmund, Five Lectures on Psycho-Analisys, La Vergne, BN Publishing, 2008.
Lourenço, Eduardo, Fernando Rei da Nossa Baviera, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993.
Mourão-Ferreira, David, Hospital das Letras (1ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 1966.
Nietzsche, Friedrich, A Origem da Tragédia (7ª ed.), Lisboa, Lisboa Editora, 2001.
Sá-Carneiro, Mário de, Poemas Completos (3ª ed.), Lisboa, Assírio & Alvim, 2005.
__________________, Correspondência com Fernando Pessoas (volume I), Lisboa, Relógio D’Água, 2003a.
__________________, Correspondência com Fernando Pessoas (volume II), Lisboa, Relógio D’Água, 2003b.
Steiner, George, The Death of Tragedy, London, Faber and Faber, 1961.
Unamuno, Miguel de, Del sentimiento trágico de la vida, Madrid, Alianza Editorial,
2008.
Wöll, Dieter, Realidade e Idealidade na Lírica de Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, Edições Delfos, 1968.
Zizek, Slavoj, Bem-vindo ao deserto do Real, Lisboa, Relógio D’Água, 2006.
NOTAS
|