POESIA: LINHAS DE FUGA E TRANSMIGRAÇÃO
Hibridismo, Livro, E-book, Vídeo, Performamce, Internet
Joćo Rasteiro
I
Quando partires para Ítaca, desejo que o caminho seja longo, rico
em peripécias e experiências.(...)Guarda sem cessar Ítaca presente
no teu espírito. O teu escopo final é aí chegares, mas não encurtes a
viagem: mais vale que ela dure longos anos e alcances enfim a tua
ilha nos dias da velhice, rico de tudo o que ganhaste no caminho.
C.Cavafy - Ítaca
É através dos múltiplos fragmentos descontínuos dos mais consistentes axiomas, inseridos nos manifestos dos movimentos de vanguarda do início do século XX e das orlas acesas do crescente hibridismo sígnico, semântico, imagético, formal e filosófico, que se exterioriza na contemporaneidade, de forma divinamente-orbicular a experiência poética, hóspede e peregrina de prantos e labaredas que se transferem e transmutam, se fundem ou se estranham, em esferas pontiagudas de convergência ou pontos cintilantes de uma íntegra dissonância.
A imaginação ou até a hiper-imaginação ergue aos píncaros celestiais o movimento que proporciona o diálogo transdisciplinar, nomeadamente entre filosofia e poesia e converte-se o principal vector de fogo, associado à actividade mental do artista e nomeadamente o poeta, em busca de uma poiésis reflexiva por meio da qual o real e as relações do sujeito se transformam, cada vez mais, em consciência de vero, da realidade, de uma realidade outra.
O desdobramento do sujeito, em eu-sujeito, em eu-objecto, é reinventado exponencialmente pela lírica moderna. Esta segmentação do sujeito através da mescla de linguagens e géneros, introduz a fragmentação como característica fundamental da modernidade, buscando um sentido que seja espelho de um não sentido ou vice-versa. A estonteante e contínua presença do desregramento dos sentidos como força vital de linguagem entre as várias literaturas e poéticas de vanguarda. O brotar de um novo díspar, eco das entranhas da terra em sua linha imparável.
E é precisamente esta ideia de fragmentação, segundo Schlegel, que defende “o dilaceramento da consciência”, que marcará bastante o século XX. Para Schlegel, esta fragmentação constitui-se como uma condição ou um tendência que a consciência inevitavelmente possui, daí ter procurado sofregamente dar forma à fragmentação constitutiva do ser humano, incessantemente na procura da reorganização dos seus híbridos desejos. Tentando encontrar o fio condutor que se apresenta como sendo o mesmo da poesia – diga-se, a exteriorização e revelação de algo que não se configura como um princípio sistematizador: apenas, a palavra outra.
Como verbaliza o poeta Herberto Helder em sua poesia, alicerçada em vastas intersecções de múltiplas, complexas, infinitas e olímpicas relações:
“Murmurar num sítio a frase difícil,
atrás de que língua e vagar escondendo
a pressa e a aspereza,
e o arrepio de cada palavra das unhas aos furos cardíacos –
não ouvir o rouco,
ouvir algum do pouco do júbilo do mundo,
e saber de uma arte repentina de passar para um espaço
estilístico terrível
através de uma porta que a frase encontra em si própria –
e a cada gesto os membros amarrados em estrela, (…)”
POESIA TODA – (Do Mundo)
II
Um artista de hoje não tem mais que dizer "eu sou um pintor"ou "um
poeta" ou "um performer" ou "um dançarino". Ele é simplesmente "um
artista". Assim, todas as instâncias da vida se abrirão a ele.
Allan Kaprow
É este conceito biológico que poderemos cognominar de hibridismo, que hoje é profunda e visceralmente utilizado para a compreensão dos processos artísticos em geral, na busca de uma linguagem outra, em permanentes processos fragmentários e reordenados sob múltiplas formas de expressão, celebrando infinitas poéticas que transcendem modalidades e categorias canónicas, que quase atingem o sagrado e o maravilhoso do lugar outro ou a deslumbrante luz do não-lugar.
Tal como diz o poeta Fernando Aguiar, através de uma poesia que se traduz continuamente em signos que não são apenas e forçosamente verbais, numa dialéctica que suporta o binómio verbal/visual, no seu poema: “Problemática da dificuldade:”
“para quem julga que estou a e
xagerar, não digo apenas que
não há dúvida que está realme
nte mesmo cada vez ainda mu
ito mais difícil. Nem que está d
ificílimo. está dificílimo !”
Assim, perante os diferentes e divisíveis sentidos ou não sentidos (alguns chamar-lhe-ão a ordem do caos) permitidos, poderemos atestar que o hibridismo nas artes e especificamente na poesia, é a total impossibilidade de classificar ou até conceituar a criação artística como pertencente a uma única vertente, ordem, categoria ou urbe, decorrente do incomensurável experimentalismo da arte e concretamente de grande parte da poesia contemporânea em sua permanente luta de reinvenção por novas visões do mundo, diga-se, novas alucinações da linguagem em seu silencioso corpo.
Como diria Roland Barthes, em seu elogio da fragmentação – que cada fragmento de texto, cada braço de sílaba, cada verso, cada espaço, cada forma, cada eco, se constitua sempre como a origem e o princípio de um novo texto e não deixem de ser o interstício de suas vizinhanças ou margens. Que não deixem de ser a fresta catalisadora entre as orlas da linguagem em suas afinidades de respiração, palavra, vídeo, livro, eco, e-book, urbe, luz, silêncio, etc. Serão eles de forma absoluta em sua fusão de enxurrada divina que poderão trazer explicita ou implicitamente os sinais do real, ou pelos menos de um outro real.
Por isso, tendo em conta o que comummente se determina, ou pelo menos se deveria determinar como poesia, não poderá haver mais limites entre sílaba e verbo, silêncio e eco, escrita e performance, livro e e-book, vídeo e internet, declamação e canto, etc.
A criação poética desse segmento é invadida ou invade (a luta é feroz) a biblioteca, a música, o teatro, o cinema, o espaço urbano, o ciberespaço, as letras das canções, os meios de comunicação social, as ciências humanas e sociais ou duras e moles, as empíricas e formais, as relações sociais ou a biotecnologia, as novas doutrinas ou crenças e até os novos espaços que já invadem ou são invadidos, mesmo se ainda os não vemos ou reconhecemos como espaços outros.
Em constante ruptura, como se estivéssemos perante um processo próximo da transmigração da linguagem e da palavra poética, onde esta procura todos os homens, todos os animais, todas as feições e sentidos, de forma a que a alma da linguagem, talvez a memória homérica do primeiro verbo, transcorra pelo absurdo do tempo purificando-se e retornando a um novo real, a uma nova forma de real como fonte de vida brotando pelas ramagens do fogo.
A palavra poética movendo-se imponderável por uma tribuna de enigmas, alimentando o futuro das urdiduras, das tribos, dos desejos, desmascarando sob as fracções da memória todos os fragmentos de uma porta secreta, de um aterrador porque mágico não lugar, que se desdobra e fracciona em torrente sobre esta polpa-autoridade de oferta de um presente-real opaco e fechado no bocejo canónico dos deuses.
O poeta Luís Serguilha em seu interminável magma de lava e mar de palavras e onde todo o texto é um obsessivo traçar de labirínticos caminhos procurando a finitude do infinito, porque não há principio nem fim, proclama:
“O animal da visão poética, da transmigração imaginária inaugura a metamorfose, as emboscadas da inexistência, os paroxismos heterogêneos, a plenitude das desobediências, a densidade hieroglífica e indetermina a visceralidade das suas lunações porque absorve os estremecimentos da afectividade, o sol-aberto-na-pedra, as transposições do clandestino, os engenhos estranhos, as impetuosidades selvagens, o desvairamento informulável das palavras: _________ as desocultações e o renascimento do ser recuperam o magnetismo e a transcendência do mundo:”
Tais expansões tornam cada vez mais difícil erigir potenciais diferenças entre processos de criação poética que caracterizem um género ou uma linguagem específica.
Concorde-se ou não, talvez se perceba agora melhor a perspectiva do poeta norte-americano Charles Bernstein quando afirma que “a linguagem poética tem de ter acção, tem de intervir de múltiplas feições, sendo que se paga o preço por se estar mais disposto a representar do que actuar”, daí, a sua perspectiva por vezes discutível, de que “é mais importante o que a poesia trabalha do que o que a poesia diz”. Bernstein defende claramente que a poesia terá de caminhar ao encontro do que a ideologia coloca fora da linguagem, exercitando a procura de formas novas, como discurso epistemológico, que nos liberta ou arremete para um bafo imaginário.
Há cada vez mais defensores de que o poeta actual deveria habitar todas as formas de poiésis. Independentemente de produzir novas formas, deverá talvez procurar inventar dispositivos de “habitat”. Deverá cogitar ser um inventor de trajectórias entre signos de forma a poder aproximar-se o mais possível do coração taciturno da linguagem.
A poesia, como a arte em geral, sustida num conceito híbrido, mas mágico ou divino, quer seja ao nível estético, científico ou sociológico.
Como refere ainda Bernstein, “a poesia terá cada vez mais de ser uma “voz” que actue fortemente como se fosse sempre uma oportunidade única” e para isso terá que beber as suas múltiplas possibilidades de “voz” ou “canto”, de “grito” ou “linguagem”.
Concluindo, o que importa hoje realçar e assinalar, é a possibilidade de uma forma outra em sua unicidade múltipla de poiésis, uma vez que do desmembramento e das desarmonias, se forjará inevitavelmente um horizonte de confluências e intersecções que possibilitará uma nova prática de poesia. Uma poética brotando sísmica em sua natureza de poiésis. Como refere Beatriz Amaral, “a irreversível tendência polifônica e inventiva que caracteriza o nosso tempo: múltiplo, polissémico, paradoxal, aberto”. Uma poesia-processo nas múltiplas e complexas cores da linguagem. A boca da poesia em linhas de fuga e transmigração”.
Como profere E. Melo e Castro no poema “Testemunho Inconfessado”:
Camões, mas que Camões? / Que mundo em transição se fixa nesta língua? / Que margem se afirma / na língua que se inventa? / Que poeta transita / no mundo que se fixa? / Que poema se afixa / na mente que se alarga / à escala do Globo Universal / e amarga? / Que contrários se afrontam / nos ossos que nos tentam? / Camões, mas que Camões é este / que nos marca?
III
Se a boca virar faca cortará os lábios
I
Há poucos anjos que chorem
muitos poucos lobos que uivem cegos como a flecha.
Acenderam-se as sombras. É o Inverno fervendo o poema
ao desconcerto geográfico das pétalas do gelo.
E enquanto a terra molda um cordeiro
para alimentar as ervas
a língua com suas cabeças prodigiosas - pulcras e cruéis
despertam os fantasmas brancos - os inocentes animais da melancolia
os que sucumbem iludidos pelo cheiro
das sílabas incendiárias
harmoniosas como as virgens flores da Primavera.
- Húmidas, dobradas na nuca.
II
Eis um tempo absolutamente bárbaro
porque os embriagados demónios ou deuses das palavras
trabalham ferozmente treinando os prisioneiros como arquipélagos
pois os figos maduros apodrecem nos gonzos
que suportam a escrita dos labirintos. Saúdo-te detrás do sol e da lua
onde apenas refulgem as horríveis cores das metástases
linguísticas – as raízes carnívoras dos lugares
que se espalham aos corpos nativos de luz – sob aquela frágil
e descomunal oração de Pavese: virá a morte e terá os teus olhos.
E virá a sílaba alucinada e serás aniquilado
sob a aurora. As novas idades com o fogo dentro da boca dos lírios.
- Adolescentes, perversas no beijo.
III
Onde guardar a benévola catacrese do espigão
o coração surgido como um ímpeto agachado na poética
do jogo acerbo e fundo
na boca que vira faca e corta os lábios no silêncio nu
ó insane quimioterapia de bem querer
colocar todos os sonhos no intrínseco sexo de oiro – a vida e a morte
em seu rizoma sagrado – num poema inapreensível e único.
*
João Rasteiro (Coimbra, 1965). Poeta e ensaísta português. Traduziu poemas de Harold Alvarado Tenorio, Miro Villar e Juan Carlos Garcia Hoyuelos. É sócio da Associação Portuguesa deEscritores, membro do Conselho de Editorial da Revista Oficina de Poesia e do Conselho Editorial da revista brasileira Confraria do Vento. Tem poemas publicados em várias revistas e antologias em Portugal, Brasil, Colômbia, Itália e Espanha e possui vários poemas traduzidos para o Espanhol, Italiano, Inglês, Francês e Finlandês. Publicou os livros de poesia, A Respiração das Vértebras (Sagesse, 2001), No Centro do Arco (Palimage, 2003), Os Cílios Maternos (Palimage, 2005), O Búzio de Istambul (Palimage, 2008) e Pedro e Inês ou As madrugadas esculpidas (Apenas Editora, 2009). Obteve vários prémios, nomeadamente a Segnalazione di Merito no Concurso Internacionale de Poesia: Publio Virgilio Marone(Itália-2003) e o 1º prémio no Concurso de Poesia e Conto: Cinco Povos Cinco Nações, 2004. Mantém em permanente irrupção o sísmico fulgor do blogue: http://www.nocentrodoarco.blogspot.com/
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