GALÁXIAS: UMA ESCRITA BABELBARROCA
José Antônio Cavalcanti
1.
Introdução
João Alexandre Barbosa, ao discorrer sobre o poema moderno,
observou que este apresenta dois níveis de leitura: "aquele
que aponta para uma nomeação da realidade em seus limites de
intangibilidade, operando por refrações múltiplas de
significado, e aquele que, ultrapassando tais limites, refaz o
périplo da própria nomeação, obrigando a linguagem a exibir as
marcas de sua trajetória". [1]
Evidentemente, a segunda hipótese ajusta-se à estrutura de
Galáxias, de Haroldo de Campos, objeto de nossa
investigação, cuja construção/desconstrução revela o tempo
como o único traçado visível, fio condutor da viagem cuja
existência, deve-se, no entanto, à fala que o diz. A linguagem
molda um balé de saltos e rupturas, orquestrando as mil vozes
do discurso numa polifonia de estilhaçamento de vida e
linguagem, mergulho radicaos instaurado por uma poiésis
lábil em incessante irrupção de significantes. A prosa
haroldiana, pulverizada por múltipla explosão fonética,
expurga-se das impurezas, expelindo os significados como
matéria residual, desnecessária, portanto, a um dizer que é o
que é, não aquilo que explica, prova, confirma ou traduz.
Galáxias, então, comprova que o valor reside na viagem, na
sua substancialidade, e não em qualidades que adjetivam sua
natureza substantiva.
Um texto com a pretensão de abolir as fronteiras entre a
poesia e a prosa trabalha na tensão estabelecida pelos limites
e corre o risco de criar novos marcos. Daí optarmos pelo
trabalho sobre o veio barroco, a pré-história poética do
autor, o outro lado de quem arquitetou a experiência do
concretismo, em cuja paideuma o barroco ocupou posição
secundária.
Da experiência de vanguarda, Haroldo de Campos recolhe a
maioria dos processos fundamentais à constituição de
Galáxias: a) o emprego da palavra-montagem joyceana (de
que já fizera uso em Ciropédia ou a educação do príncipe);
b) a utilização de blocos sincopados de frases no marco da
página; c) suturas semânticas; d) exfoliação de vocábulos; e)
"conglutinação" fônica; f) uso intenso de técnicas
reiterativas; g) a sintaxe de rupturas e dissonâncias. Tais
procedimentos possibilitam o engendramento de uma obra capaz
de incorporar desde a proposta de modernidade poética às
anotações biográficas, construindo aquilo que Benedito Nunes
denominou mundigrafia: "texto plural (mistura de
matéria vivida à 'matéria delida deslida treslida'), nascido
duma espécie de action writing (continuum verbal
que o silêncio descontinua, a realizar a idéia de poema-vida
que tanto seduziu Mário Faustino, companheiro de geração de
Haroldo de Campos), pertence à categoria das produções "escriptíveis"
(scriptibles) de que nos fala Barthes de S/Z." [2] A
viagem é tomada como percurso da escrita, a ação que movimenta
o mundo. As anotações pessoais misturam-se aos registros
culturais, pois a biografia entrevista também é uma viagem ao
redor do mundo e, simultaneamente, um mergulho na tradição,
círculo onde o autor se move em múltiplas direções, tanto
quanto a linguagem, transformando-se a obra num universo
polilíngüe - babel discursiva a provar, também na fala, o
fragmento e a impossibilidade de êxito a textos que surjam do
campo esfacelado do absoluto, do inteiriço, da certeza, da
visão global e totalizadora. Mesmo os dados de uma possível
biografia surgem parcelares, atomizados, num plano de ruptura
histórico-sintática capaz de inviabilizar uma leitura
cronológica. O tempo, em Galáxias sempre sob a hegemonia do
presente, rompe o mero registro seqüencial, linear, o
encadeamento sereno e tranqüilo dos fatos. A acumulação do
tempo é rompida pelo privilégio concedido à brusca mudança dos
planos e à valorização implícita das lacunas e silêncios
temporais. Característica observada por Severo Sarduy: "Figura
[a parábola] que abarca e define toda essa produção, em seu
progresso rumo à concretude, como um 'mundo total de objetiva
atualidade', apreendida num instante − como se capta um
ideograma −, e não numa série de leituras analíticas, próprias
do tempo discursivo e de sua equivalência na sintaxe
tradicional". [3]
Na teia do discurso, a tradição mantém um vivo diálogo com o
narrador: Homero, Joyce, a Bíblia, Dante, Bashô, Hölderlin,
Gauguin, Volpi, Sófocles, Schiller etc. Os referenciais
artísticos, culturais, juntamente com as passagens em diversas
línguas, dão à obra, por vezes, um sabor enciclopédico,
assemelhando-a a uma excursão requintada à suma do saber,
fixada numa antiprosa de formação na qual o autor retraça
sobre escritas-fontes uma escritautologia impressa
em palimpsestos. Não
há como negar certo maneirismo poliglota e perigosa
proximidade ao erudito, quase passagem à dicção de scholar,
nessa exploração barroca da árdua construção, da gongórica
opacidade de um texto saturado de si mesmo.
Como contraponto a esse exercício de sinalização cultural,
surgem anotações pessoais, flashes, olhares acesos em
relâmpagos sobre a pequena margem residual de uma possível
trama, uma suspeita de ordenação de rumo, jamais permitida,
contudo, graças à intervenção de uma visão parcelar, evitando
a irrupção da história no centro do relato, relegando-a ao
mínimo. Eludido qualquer eixo que confira à linguagem valor
instrumental, expulso da narrativa o privilégio concedido ao
significado, despida de veleidades documentais, Galáxias,
avançando além do fictício, alcança o ficcional, produzido
pelo peso atribuído a cada palavra e pela transformação das
certezas do dito em não-certezas do escrito, perspectivando
qualquer tentação de Verdade. A escrita amazônica de
Galáxias não tem por objetivo o estabelecimento de um
valor capaz de formular um sentido para um real
extralingüístico, é, antes de tudo, o produto de uma
racionalidade capaz de prescindir de qualquer outro valor para
que possa ser entendida ou justificada.
Composto por cinqüenta fragmentos, o livro não apresenta
qualquer preocupação em delimitar uma ordem que estabeleça
qualquer continuidade: os fragmentos não possuem título, não
há qualquer divisão em partes ou capítulos, internamente, os
textos não apontam para uma "direção" prevista de sua própria
leitura. Escrito ao longo de treze anos, fica patente a
homegeneidade de sua estrutura e a natureza aberta de sua
concepção, cuidadosa em ocultar um caminho para sua decifração
e obrigando o leitor a transformar a leitura na invenção
daquilo que lê.
A proposta do presente trabalho não é analisar a obra in
totun, porém deter-se sobre alguns fragmentos que possam
contribuir, significativamente, para revelar com maior nitidez
a extraordinária caligrafia dessa escrita babelbarroca
(expressão tomada ao Fragmento 13, onde aparece aplicada à
cidade de Paris). Evidentemente, relembrando a imagem da
serpente mordendo a própria cauda, usada por Valèry e
reaproveitada por Haroldo de Campos, uma escrita autocentrada,
disposta a explorar ao máximo a mobilidade de seu corpo
sonoro, a ponto de transformar a palavra em voluta distendida
ao infinito, assume uma dimensão labiríntica, convertendo-se,
mediante um incessante jogo de dobraedesdobra, num
"dédalodiário" no qual a corporeidade do texto alimenta o
desejo de si mesmo.
Tomamos, assim, para análise três fragmentos: o 31 ("o que
mais vejo aqui"); o 44 ("cadavrescrito"); e o 46 ("esta
mulher-livro"). Tal escolha não significa, no entanto, melhor
construção ou a primazia deles sobre os demais. São tomados
apenas por auxiliarem na fixação de alguns traços gerais de
Galáxias, principalmente por seres os três fragmentos,
acentuadamente, metapoéticos.
2. Do fragmento 31 ("o que mais vejo aqui")
A escrita não ocupa um lugar no papel, desponta do próprio
vazio, transforma o nada, o branco, o silêncio no seu topos,
ponto seminal de onde se evadem em hieróglifos galáticos a
constelar na página um escrever sobre escrever capaz de
sobreviver ao veneno autocorrosivo do escorpião, tradução
simbólica da mão dobrando e desdobrando signos na tela vazia
do livro. Isso afasta uma possível distinção das palavras como
externalidade trazida ao universo da ficção, ao visualizá-las
como partes constitutivas do silêncio e dele geradas.
"o que mais vejo aqui neste papel é o vazio se redobrando
escorpião
de palavras que se reprega sobre si mesmo..."
Porém esse vazamento não libera a sua secreção a partir de um
jorro descontrolado, fluxo livre a inundar o espaço desabitado
com um texto revolvido livremente de suas entranhas, à
semelhança da escrita automática surrealista. É resultante da
ação de escrever enquanto inscrição feita por ferrão, ou seja,
traçado venenoso impresso num gesto de violência, de trabalho
de ourivesaria semântico-sonoro responsável por sua limpidez,
desanuviando-a de efeitos anestésico sob o qual o comércio
verbal termina por embalsamar os vocábulos, transformando a
língua num gigantesco depósito de sentidos. Somente uma "unha
aguda", "seu pontaço", para "ferrar", ferir, o silêncio e
escancariá-lo, ampliar ao máximo a ferida, a cicatriz textual
que é a palavra na pele de papel, os arabescos retalhando a
carne do nada.
Labiríntico esse dizer-se o tempo inteiro um escrever
reescrever escrever. A estrutura de Galáxias assume as
dimensões de uma linguagem em espiral, constituindo-se cada
fragmento numa volta ascendente, cujo começo na realidade não
é nunca o princípio, mas um recomeço, por deixar implícita a
idéia de um continuum verbal, da sua permanente
"suspensão", de um texto movendo-se num território aquém de si
mesmo, e cujo final, analogamente, é uma parada, um corte, não
um fim dador da idéia de completude, uma vez que mergulha num
além-texto. Tal conceito não é modificado pelo fato de o
primeiro e o último fragmentos funcionarem como entrada e
saída, inclusive sendo visualmente marcados por grifo. A fuga
à fixidez, à compreensão do real como uno e estático, ao
aprisionamento do existir a moldes que representam a aderência
do ser a um absoluto, traduz-se mediante as letras de um
discurso veloz e fugaz, mobilizadas na articulação de um jogo
onde circulam múltiplos acontecimentos, vislumbres de seres
impressos como nesgas de personagens, esboços de
lugares/paisagens, bordando um rendilhado onde a língua se
tece, ata e desata, qual indústria de aranha urdindo no canto
da página uma teia de avesso:
"onde o eu se
mesma e mesmirando ensimesma emmimmesmando"
A contaminação de uma palavra por outra funciona como
produtora de uma reação em cadeia fonético-semântica a operar
uma irradiação constante de significantes cujas relações entre
si constroem a totalidade do relato, tornando-se cada termo
uma espécie de palavra-móbile, circulando e repercutindo entre
outras.
"...cravo no vazio os grifos desse texto em garfos
as garras e da fábula só fica o finar da fábula..."
Emerge do fragmento a concepção da escrita enquanto inscrição.
Unha, garfo, garra, pontaço, aguilhão (através do qual o
escorpião fere) surgem como instrumentos que riscam o papel,
abrindo no liso de sua textura a mínima cavidade onde flui o
negro veneno dos signos. Idéia reforçada pelo emprego dos
verbos ferrar, cravar e transvasar, todos nomeando o ato de
insculpir, incrustar, cavar veios numa superfície plana de
sentidos, escalpelando-a, roendo a polpa das palavras. Num
livro que é o exercício de ensaiar-se, a mutabilidade
experimental de si próprio, verdadeira "anarcopédia de formas
volúveis", como ser lido no fragmento 45, brota da
"...mais mínima margem
da mais nuga nica margem de nadanunca orilha ourela orla da
palavra"
Inscrição iniciática, exige o difícil, o imprevisto, a
opacidade semântica, o acesso a um patamar lingüístico mais
denso e elaborado, já que o "nigrolivro um pesteseller um
horrídeodigesto de leitura apfelstúrdia" destina-se a
"vagamundos e gatopingados e sesquipedantes e
sestralunáticos", expressivas afirmações do fragmento 45,
corroborando as linhas do fragmento em análise que expõem com
clareza a escolha do autor:
"e se você quer o fácil eu requeiro o difícil..."
Logo identificado com o risco de pensar o silêncio de onde a
fábula se desprega, cisco solto no vácuo, no espaço sem
palavras do livro, dessa viagem que se faz ranhura entre nada
e nada. Dificuldade que induz à indagação sobre o sentido do
claro-escuro, dos turnos de negro e branco, esse diurnoturno
que caracteriza a tensão das dactiloletras num dualismo
barroco, pleno de "cala" e "fala", mas onde o texto é a falha
que, logrando avesso e anverso, indo contra o silêncio, o
sujeito e o nada, insiste, resiste e existe como texto.
Escorpião que se reproduz ao contrair seu próprio veneno, o
texto de Galáxias faz de cada fragmento uma composição
onde "a linha é revogada para que a frase se constele" (4) e a
anulação das fronteiras torna "a página uma pulsação, não um
registro, da múltipla vida; microcosmo do próprio livro". (5)
Pulsação que neste fragmento é transmitida por um ritmo
oriundo da junção de palavras e processos aliterativos a
partir de um leit motif que vertebra seu corpo - a
expressão "o que mais vejo aqui". Ela estabelece, também, o
primado da visão, do mover-se da córnea sobre um campo branco,
centrando no claro-escuro desse olhar a relação entre a página
inerme e o verme da fábula, reduzida a um balbuciar, a
nomeação de toda uma galáxia de categorias de avesso: nada,
nunca, branco, vazio, silêncio, calado, cal, estagnado, não
tocado, dactilonegam, negram, sonegam, avesso, cárie etc.
Ainda que em preto-e-branco, a hegemonia da visão situa-se no
mesmo plano dos outros fragmentos, onde a percepção pictórica
intensifica ao máximo os pormenores e dá, ao conjunto, grande
densidade plástica.
Voltando à pulsação e ao ritmo dessa prosa inovadora, é a
palavra o instrumento trabalhado para a sua obtenção, embora
haja passagens como:
"e se você quer o fácil eu requeiro o difícil e se o fácil te
é grácil
o difícil é arisco e se você quer o visto eu prefiro o
imprevisto e
onde o fácil é teu álibi o difícil é meu risco..."
verdadeiras seqüências de um jogo antitético instaurando um
bloco frásico à maneira de uma ilha no mar de linhas onde as
palavras buscam autonomia (compare-se com a passagem do
fragmento 3: "se eu lhe disser que o mar começa você dirá que
ele cessa seu / lhe disser que ele avança você dirá que ele
cansa se eu lhe disser / que ele fala você dirá que ele
cala..."). Procedimento de natureza barroca.
Quanto à explicitação da autonomia vocabular recorremos a
Severo Sarduy:
"a palavra, a matéria mesma do verso teria que abandonar (...)
seu lastro conteudista, seu nexo ou ligadura estreita e como
que inevitável com o referente, seu binarismo platônico
aferrado à idéia; romper, ou fazer vacilar em direção ao
fônico - e logo em direção ao gráfico - o equilíbrio estável
do signo, abandonar, obliterar, ou pelo menos deslocar,
transformar, 'sacudir' a base do significado, o persistente
'sentido' sem o qual parece como que se abalar todo o sistema
da significação." (6)
3 - Fragmento 44 (cadavrescrito)
Inesgotável fluxo narrativo, diuturna produção de signos, o
trabalho de criação pode ser comparado às histórias das Mil
e uma noites, a uma Scherazíada moderna, desfiando ad
infinitum o novelo da própria voz num território habitado
por ninguém, graças à conversão da página numa "nihilíada"
prenhe de "nenhúrias", vítima da incursão e investida selvagem
dos sons no menos da história - "poalha de fábula". Subtração
da escória que faz do branco da página espelho do mundo,
superfície refletora de outro real, literatura especular,
amarrada a uma mimese de reconstituição, o texto é proposto,
segundo Andrés Sánchez Robayna: "como imantação ou
aderência infinita de objetos e motivos, como absorção
de paisagens e figuras, 'condena a prosa a descarregar-se de
todo objeto exterior a ela mesma." (7)
Afirmação a que se pode acrescentar a emitida por Benedito
Nunes a respeito de Xadrez de estrelas, qualificando-o
como portador de um: "realismo absoluto (o poema existindo
espacialmente como objeto, em sua materialidade de signo, e
equivalendo ao processo de sua estruturação)". (8)
Só que esse realismo já não é tão absoluto assim em
Galáxias, bem como o anti-historicismo também é filtrado
por intermédio não só do plano formal cuja inovação é ela
própria uma estrutura histórica, como também pelos diversos
registros biográficos que espalham em seus rastros uma
possibilidade de montagem/desmontagem/remontagem temporal.
Cadavrescrito, o vocábulo detonador do fragmento, é uma
palavra-fusão assinaladora dos limites da mobilidade irruptiva
do novo, a categoria fundamental dessa dicção: a fixação
inerente da escrita que se escreve matando-se, escorpião
aprisionando palavras num papel ao preenchê-lo, cristalizando
e imobilizando o relâmpago de seu veneno, diluído numa
linguamarga/morta/torta, inutensílio que labora a magia de sua
química, mistura capaz de corroer o tempo -
"noutubro/nãovembro/deslembro".
Nesse babelório impresso, incrustado num veio de silêncio, o
recurso a um instrumental específico, apropriado à abordagem
interpretativa das milumapáginas desmorona face ao
deslizamento contínuo do sentido, nunca tributário das costas
dos significantes. Daí ser inútil o apelo a:
"...mitemas fabulemas ou novelemas ou se
perder no encalço da melhor tradução para récit ou do distingo
entre
novel e novela nem é útil saber se fábula ou conto-de-fadas é
o
termo que equivale ao russo skaz..."
ofício de bichos-da-seda, a produção do umbilifio que escorre
da obsessão ampliada até à morte, retomando no meio do
fragmento a idéia inicial (é na cova que se aloja o
cadavrescrito), guarda, porém, a imagem da morte como um corpo
que se encaixa, incrusta, inscreve, numa superfície que se
despoja (de terra, a cova; do branco, a página). Não é outra a
razão da passagem abaixo:
"...uma delenda esquiva escava e só
encontrarás a mão que escreve que escava a simplitude do
simples"
Ela revolve as entranha galáticas, segredando-se um escrita
intestina, autófaga, reinscrevendo-se como sucessão de cortes
na sua própria pele.
A presença da rosa comparada à prosa, coloca esta como uma
construção cuja materialidade não é parte necessária do
domínio do sujeito, revolvendo as pacíficas colocações de
"autor", "narrador", instâncias embutidas na linguagem,
atuantes, contudo, num espaço acima, ordenador, dominante, mas
deslocadas agora, pois: "em Galáxias não é o relato que
importa; não o que diz com a ajuda da linguagem, mas o que
nela se diz." (9)
Alcançando a sua legibilidade pela repetição entendida como
uma eficaz forma de afirmação, daí o eco de Gertrud Stein
nessa passagem, e o fio da linguagem concebido como menos,
margem, mínimo, migalha. Justamente sobre a idéia do menos o
fragmento estrutura o espaço concedido à fábula, o resto, a
sobra do silêncio, garrafa ao mar, navegando à mercê de vento
e maré, inclui-se o lance de dados, ação do acaso escavando
uma leitura indiferente ao sujeito. As palavras lançam-se a
esmo, às tontas, às cegas, mesmirando-se, cosmonaves em
constelações nucleadas sobre si mesmas, interminável jogo
apofônico dirigindo seus raios sonoros sobre os termos
vizinhos, todos, mallarmaicamente, aparentados entre si,
jogando o jogo do seu sonho:
"...se no dois não acerto jogo no três
e ainda tenho uma vez..."
Desse modo a estética de fraturas de Galáxias revela-se
dimensão lúdica, grafada nas cores de um experimentalismo que
evita o velho, nega-o, renega-o, sempre à procura não de um
sentido redutor do mundo, mas do devir da linguagem, babélico,
múltiplo, bordelizando o papel. Daí o fragmento terminar
descrevendo-se: "...meu canto não conta um conto só canta
como cantar".
A condensação de palavras atinge o clímax no "cantomenos"
contido neste fragmento. Concreção irruptiva do tensionamento
do vazio, Galáxias busca a infinitude do universo na
infinitude da linguagem, justificando o título como homologia
do texto, espaço onde se dialetiza o micro e o macro, na
pulsação inquieta e ziguezagueante de suas páginas.
4 - Fragmento 46 (esta mulher-livro)
Tematizando o próprio processo de sua produção, Galáxias expõe
tal preocupação como o momento introdutório a diversos
fragmentos, alem deste: ao oitavo (isto não é um livro), ao
décimo-nono (como quem escreve), ao vigésimo-nono (o poeta sem
lira), ao trigésimo (pulverulenda), ao trigésimo-primeiro (eu
sei que este papel), ao trigésimo-quinto (principiava a
encadear-se um epos). A maioria dessas entradas
narrativas está intimamente relacionada a uma concepção
negadora do velho, do já-estabelecido, do convencional, e
opera a corrosão das estruturas que desenham e formam o corpo
da prova, ou provoca a erosão das convenções que alimentam a
arquitetura poética de determinada obra. Voltada para a
abolição das fronteiras entre gêneros, Galáxias tende a
construir os esboços de uma antiprosa, supressora dos filtros
por onde o mundo dos eventos se irradia e assume a hegemonia
do texto, capaz de evitar a contaminação pelo conceito
especular da escrita. A racionalidade, com isso, equivale ao
processo de produção da linguagem, não sendo concebida como
uma voz que vem de fora, como algo distinto e que não se funde
ao dizer que a diz.
Aqui o pocesso formal (nem verso, nem linha) serve à
contextualização de uma prática que constrói seu objeto
barrocamente, girando incessantemente nas voltas e revoltas
que dá em órbita de seu próprio centro. Na velocidade desse
registro o sentido se esboroa, desconstrói-se,
ininterruptamente, inscrustando o texto de múltiplas
projeções, sombras, esboços, imagens fugazes de um esquivo
significado. Essa profusão de dados, cores, imagens, figuras,
a fluir de cada linha, descoordena o todo, o inteiro, mediante
a babel de vozes buscando seu leito, o babelório enquanto
mescla, a múltiplia tentativa de apreensão do vazio onde
começa e cessa a fala.
Neste fragmento a criação textual exibe a sua faceta
prazerosa, dionisíaca:
"esta mulher-livro este quimono-borboleta que envelopa de
vermelho um
gesto de escritura..."
De um lado, colocados num mesmo plano, o corpo humano e o
papel; do outro, as vestes que o envelopam, quimono ou a
leveza e o eterno movimento da borboleta, vôo da linguagem que
se desnuda, envoltório pictórico e aéreo sobre a pele branca
da página, a dourar o papel do japão:
"...fólio-casulo deixa ver o corpo
escrito de vermelho e filetes de outo esta mulher pousada em
seu poema"
Todo o fragmento joga com a metáfora do papel visto como a
pele onde se acaricia ou arranha a linguagem e a do livro
comparado a um corpo de mulher. Daí advêm o sensualismo e a
sensorialidade, o desfazer-se da mulher no poema, enquanto
fusão do ser ao objeto nas dobras violentamente velozes do
tempo do gozo, e a tacteabilidade como gesto gerador do
discurso, onde as palavras são manuseadas, pesadas, pensadas,
tateadas, ao mesmo tempo em que exalam cores e perfumes em
profusão (no que tange à notação pictórica, vale registrar que
o terceiro fragmento traduz toda a idéia de mutação contida no
mar através de uma estonteante sucessão de cores, usando em
maior intensidade o recurso de explorar o uso da cor na
constituição das formas adotado em praticamente todos os
outros fragmentos). Leveza e graça são introduzidas pela
associação a todo um clima oriental: quimono, papel-japão,
seda, nanquim, ventarola, linha d'água, amarelo-mandarim etc.
Erótico jogo de palavras, adoçando em mel, borboleta, seda e
ventarola o ritmo dos seus movimentos, a obra assume as formas
da sedução, do relacionamento assinalado pelo fascínio
existente entre a cunha, o alfinete-estilete e a tábua
argilosa do corpo, o papel-japão. O aparecimento do
livro-mulher é viabilizado pelo lascivo tateio do risco
cuneiforme num ventre velino - pergaminho e epiderme de papel.
Além das percepções táteis e visuais, também as auditivas e as
gustativas espalham-se ao longo do fragmento:
"...uma borboleta sugando mel por trombas minúsculas..."
"ouço as yonis sussurrando como ocarinas e manando seiva
amorosa"
"...a saliva vista através das paredes da garganta..."
"...abelhas minam o mel do sentido..."
Reproduz ao longo de sua extensão termos como: ogivas, ninfa,
coxiabertas, ventre, sexo-chaga, lábios de ferida,
crini-púbis, seiva amorosa, incesto, e outros que dão ao
conjunto da composição uma conotação claramente situada no
campo da elaboração textual vista como forma de realização
amorosa.
Branco sobre branco, a escrita exercida sobre palimpsestos,
além de dizer e redizer, transformando o risco em rabisco,
rasura que cria, descria e recria seus signos, volta-se
eroticamente sobre si mesma, incesto absoluto e radical do ser
que extrai seiva e prazer de suas próprias entranhas. Espaço
gerador dos signos, alvéolos destinados a errantes e famintas
abelhas, cuja ação canela e arruína esses alvéolos-signos em
diuturna floração.
Esse procedimento antecipa passagens posteriores da obra de
Haroldo de Campos, como essa estampada em A educação dos
cinco sentidos:
o táctil o dançável
o difícil
de se ler / legível
visibilia / invisibilia
o ouvível / o inaudito
a mão
o olho
a escuta
o pó
o nervo
o tendão (10)
Veja-se a passagem do fragmento onde a linguagem é traduzida
como ramagem onde enfolham nervuras, ou o roçagar de "páginas
pés-plumas", dualismo entre significante e imaginário na raiz
de sua constituição. Todos os elementos, no entanto, estão
voltados para apontar quem: "...fechada é um livro e aberta
mulher..."
Antitética construção entre o fechado e o aberto, da qual
surge a linguagem, a matriz e a criação dos significantes.
Luxúria da palavra sobre o caos dos instantes, tece seu corpo
alveolar com o mel do próprio ventre, moldando sua forma
fugidia e hipnótica, egressa do casulo de sonhos onde se
guarda, a dissolver-se no momento de sua gênese, semelhante ao
gozo que vibra e morre na mesma fração do tempo.
5 - Conclusão
A ourivesaria haroldiana guarda ressonâncias mallarmaicas,
principalmente na obediência ao verso:
"Donner un sens plus pur aux mots de la tribu" (11)
e ao centramento na polpa da linguagem, no desventramento
radical de sua textura como desvelamento da arte. Não deixa de
figurar, no palimpsesto do texto, o reaproveitamento da idéia
expressa por Mallarmé no prefácio ao Un coup de dés:
La fiction affleurera et se
dissipera, vite, d'après la mobilité de
l'écrit, autour des arrêts
fragmentaires d'une phrase capitale dès le
titres introduite et
continuée." (12)
Tal inscrição está submersa em Galáxias como rasura
presente no apagar e introduzir de novos traços, portanto
alimenta a construção da obra, na qual outras vias e desvios
dão à dissipação e à mobilidade outras referências
fundamentais. Ressonância notável na arquitetura galática é
Pound: não o dos manuais voltados para a caracterização de
questões levantadas pela poesia; mas o Pound que está de corpo
inteiro nos Cantares, gigantesco e enciclopédico
projeto-programa-levantamento poético abrangendo técnicas,
procedimentos, eras e dados, mobilizados na articulação
específica da síntese poundiana da Poesia (extração sobre os
veios que se estendem da aurora grega às margens da
modernidade, com inclusão, nesse percurso, de fecundas
expedições a universos ideogramáticos, fundamentais à sua
legibilidade), cuja erudição lança seus reflexos
em Galáxias. Outra
referência fundamental, cuja importância parece mais
relevante, é aquela que introduz a aproximação com o barroco,
na esteira da dicção própria a Gôngora. A presença intensa do
pictórico, dissolvendo a linha, tornando todas as coisas
confusas, misturadas, conduz ao descentramento, a um babélico
dizer o mundo. Esse desprezo pelos contornos definidos, pelas
linhas, pela apreensão do real como claridade e nitidez,
trabalha no sentido de verticalizar o olhar contra a luminosa
ótica de superfície, mobilidade horizontal da visão. A quebra
dos contornos é o esfacelamento da unidade, a irrupção da
multiplicidade; em Haroldo de Campos, não tensionada ao modo
barroco, mas trabalhada como encarnação lingüística do caos,
do caráter efêmero, fugaz, da linguagem enquanto homem, ou do
homem enquanto linguagem, alçados, em Galáxias, ao
mesmo plano de instabilidade, ao mesmo plano de existência e
legibilidade, abertos inteiramente a metamorfose, figura
predominante, principalmente sob a forma particular da
anamorfose, traço que torce e distorce, nos marcos ou arcos do
discurso, curvas, volutas, dobras, rugas, sinuosidades que
lançam o pólen da linguagem sempre adiante, lálonge,
láemfrente, prospectivamente voltado para um ponto além de si
mesmo, dotado da tensão que funda e instaura essa antiprosa -
a tensão entre o silêncio e a sua fala.
A modernidade (ou pós-modernidade) e a tradição gongórica
mantêm um diálogo na obra haroldiana, da qual se pode dizer:
Fábrica escrupulosa, y aunque
incierta,
siempre murada, pero simpre
abierta. (13)
Ainda é a Gôngora que se recorre para explicitar a tradição de
uma poesia "difícil", hermética, iniciática, leitura para
poucos iluminados:
"- aun a pesar de las tinieblas
bella,
aun a pesar de las estrellas
clara." (14)
Trevas e estrelas são termos que reconstroem o ambiente
noturno, o espaço onde os seres e as coisas exigem um esforço
do olhar à sua apreensão. Os versos gongóricos trabalham sobre
o contraste, a intensidade da luz nas trevas, a irrupção da
beleza entendida como um brilho que melhor se observa com a
ajuda da ausência de claridade. Galáxias traz já no início a
associação entre a escrita como um fio de luz que exerce seu
fascínio no escuro, estabelecendo identidade entre noite e
página. Essa face noturna desborda para o seu deciframento
como extensão de sua natureza, isto é, transforma a sua
leitura num trabalho de arte, de escrita ou reescrita, também,
destarte, não se destina a leitores ingênuos, não iniciados
nos mistérios da linguagem. Aqui, Haroldo de Campos, Gôngora e
Mallarmé conseguem aliar-se na formulação de uma estética que
encena um ritual, solenizando as palavras em sua sonoridade,
transformando-as em:
"pasos de um peregrino son,
errante," (15)
Só que não há mais o périplo que o poeta retraça mediante a
linguagem. Agora, a linguagem é o peregrino e a peregrinação.
*
José Antônio Cavalcanti,
poeta, contista e professor. Doutorando em Ciência da
Literatura, UFRJ. Blog de poesias:
http://poemargens.blogspot.com
*
NOTAS
[1] Barbosa, João Alexandre. Um cosmonauta do Significante:
Navegar é preciso. In: Signantia quase coelum, p. 11
[2] Nunes, Benedito. Xadrez de Estrelas - Percurso Textual,
1949-1974. In: Signantia quasis coelum, pp.
144-145.
[3] Sarduy, Severo. Rumo à Concretude. In: Signantia quase
coelum, p. 123.
[4] Lima, Luiz Costa. Aguarrás do tempo, p. 354.
[5] Ibidem, p. 354.
[6] Sarduy., op. cit., p. 119.
[7] Robayna, Andrés Sánchez. A Micrologia da Elusão. In:
Signantia quase coelum, p. 138.
[8] Nunes, B., op. cit., p. 144.
[9] Lima, L. C., op. cit., p. 337.
[10] Campos, Haroldo de. A educação dos cinco sentidos,
pp. 13-14.
[11] Mallarmé, p. 66.
[12] Ibidem, separata, p. 7.
[13] Gôngora, Luís de. Antología, p. 23.
[14} Ibidem, p. 27.
[15] Ibidem, p. 23.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo: Ex Libris,
1979.
_____. Xadrez de estrelas. São Paulo: Perspectiva,
1976.
_____. Signantia quasi coelum (Signância quase céu).
São Paulo: Perscpetiva, 1979.
_____. A educação dos cinco sentidos. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São
Paulo: Duas Cidades, 1978.
GÕNGORA, Luís de. Antología. 6ª. edición. Madrid:
Espasa-Calpe, 1960.
LIMA, Luiz Costa. Aguarrás do tempo. Rio de Janeiro:
Rocco, 1989.
MALLARMÉ. São Paulo: Perspectiva, 1974. |