CIDADE
ILUMINISTA, MODERNIDADE E MODERNISMO
José
Antônio Cavalcanti
Há
uma tendência a se pensar numa relação homológica entre
projeto urbano e concepção
do mundo. No traçado das cidades estariam desenhadas
as idéias
que sustentaram determinadas épocas. O espaço reservado à
catedral na Idade Média, o centro ocupado pelo palácio do
soberano no plano radiocêntrico da cidade barroca, moldado
por projetistas do absolutismo político, o núcleo no qual se
erige a sede do governo ou a fortaleza, poderiam justificar
essa idéia. Contudo, a observação atenta à evolução
urbana compromete tal condicionamento automático, revelando a
fragilidade de seus pressupostos.
O
nexo entre cidade e concepção de mundo deve ser buscado,
segundo a ótica de Sérgio Paulo Rouanet, "numa instância
intermediária que guarde com a concepção de mundo uma relação
de correspondência, mas não se confunda
com ela"[i],
com isso a complexidade do planejamento urbano fica protegida
da rigidez e do dogmatismo com os quais as visões de mundo
normalmente constroem um conceito de verdade.
Essa instância intermediária é explicitada pelo
autor:
Penso
num elenco de princípios diretores, que constituam, por assim
dizer,
uma
"tradução" para o universo do urbanismo da
idéia iluminista.
Se eles
existissem, o
urbanista poderia
conciliar sua
fidelidade a certos
valores
com uma considerável liberdade de criação.
Reconhecendo a validade
de
tais princípios,
cujo caráter é basicamente formal, não se sentiria
obrigado
a
transformar os
conteúdos de
sua concepção
do mundo em
estruturas
urbanas. Sob
a condição única de que os princípios fossem respeitados,
ele
estaria livre
para criar
de acordo
com seu
próprio estilo
e
com
as linguagens estéticas
do seu tempo. Essas
linguagens mudam,
e, desse
modo, os mesmos
princípios
poderiam atualizar-se em realizações
urbanísticas
que variassem de época para época.[ii]
Desse
modo, o urbanista pode fugir a qualquer tentativa de dirigismo
e sustentar um mínimo de autonomia em sua prática. Aliás, a
noção de autonomia, em todas
as suas articulações, é nuclear à leitura que
Rouanet faz
do Iluminismo, vendo nele a persistência de vigor crítico. A
Ilustração, configuração empírica do Iluminismo
(entendido como a filosofia propriamente dita), foi
fundamental para a construção da modernidade, alimentando o
liberalismo, com os conceitos de liberdade e democracia, o
socialismo, ao aguçar as tendências igualitárias e libertárias,
e os movimentos ecológicos, originados do culto à natureza.
Na
segunda parte do ensaio, Rouanet faz uma análise do verbete
"cidade", contido no texto fundamental da Ilustração,
a Encyclopédie, de
Diderot e d'Alembert. A partir dele, levanta os fundamentos da
reflexão urbanística da Ilustração, constituídos, na
verdade, por quatro relações polares. A primeira antinomia
abrange a relação abertura/clausura, isto é, entre os
limites da cidade e aqueles territórios além deles, oposição
ainda constitutiva dos projetos contemporâneos, mesmo
naqueles em que se transformou em tensão entre
centro e periferia urbanos graças não apenas à
expansão territorial, mas ao processo de compressão do
tempo-espaço[iii].
A segunda polaridade é a da relação entre o plano
individual e o coletivo, responsável pelos direitos à
individualidade e à ação coletiva,
sempre assumindo
novas formas
frente às tentativas de
manipulação e controle de ambos. A terceira contrapõe
o estético ao utilitário, tocando nas questões pertinentes
à função e à finalidade do ambiente urbano. Finalmente, a
quarta relação envolve a tensão entre o novo e o antigo,
polaridade praticamente presente em todos os momentos históricos.
São essas polaridades que, de acordo com a versão de
Rouanet, se transformam em normas de ação urbanística.
O
núcleo normativo, constituído pelos princípios diretores do
planejamento urbano, funciona como intermediação entre a idéia
do Iluminismo e a materialidade urbana. O autor de O
mal estar da modernidade denomina-o civitas,
ao passo que a cidade real projetada pelo urbanista ou na
qual ele intervém é designada como urbs. A observância à estrutura triangular dessa concepção
permite ao autor propor um modelo de equilíbrio e
racionalidade, capaz de neutralizar as tensões advindas das
polaridades urbanas, no qual não se legisla a partir de uma
ideologia, pois a
civitas é expressão
de autonomia e liberdade.
Dentro
desse espaço, os urbanistas
são soberanos.
Podem ser
modernos
ou pós-modernos, funcionalistas ou historicistas, podem
construir cidades
em
forma de
tabuleiro, como Nova York; ou de leque, como Karlsruhe.
Podem
realizar cidades
da Renascença,
em forma
de caracol,
como
Giorgio Marini;
ou de
espiral, como Filatere. Podem usar os
materiais
que bem
entenderem: barro, vidro, alumínio. Mas
não podem
ignorar a
civitas,
pois é
a observância
das normas
imanentes às
diversas
polaridades que
define a cidade iluminista.[iv]
Como
se vê, obtém-se um modelo praticamente universal e transhistórico
a presidir a proliferação e a expansão das cidades. Por
isso, o autor
termina o ensaio fundando uma cidade volitiva, irreconhecível
fora do modelo idealizante no qual foi criada. De acordo com
tal visão, a cidade iluminista é aberta, porosa,
hospitaleira ao Outro, capaz
de absorver
a diferença,
mantenedora do
contraste entre a vida urbana e a natureza, inconciliável
com as cidades-jardins, inimiga da ideologia antiurbana,
intolerante com a miséria, com a exploração social, com a
violência, com a poluição, além de ser bela e funcional. A
questão não é que tais características não existam ou
sejam falsas, porém não dão conta da cidade, sequer como
representação abstrata das urbes.
Se o Iluminismo pode ser concebido
como a infância da modernidade, seguramente legou-lhe modelos
de planejamento, mais ainda: um modelo de olhar. O
Renascimento operou uma gigantesca modificação das visões
do tempo e do espaço, uma ampliação dos horizontes humanos
que reduziu o planeta a sua dimensão finita, desabilitando
antigas concepções mitológicas e teológicas. Todos os
territórios, mesmo aqueles ainda não incorporados,
tornaram-se vulneráveis. Além das modificações trazidas ao
olhar por essa remodelação da paisagem, a fixação das
regras fundamentais da perspectiva permitiu moldar as formas
de ver. A reprodução fria, geométrica, sistemática,
racionalista e a percepção em ótica infinita da dimensão
finita constroem um sistema de representações (artísticas,
econômicas, legais, políticas, psicológicas etc.) cujas
linhas atravessam o percurso da modernidade e não desaparecem
totalmente na pós-modernidade.
É
a esse movimento de construção e representação sob
controle, a esse processo de manipulação de elementos
diversos para a obtenção de uma finalidade emancipadora que
as vanguardas modernistas se ligaram, seja mediante a reconcepção
das idéias iluministas, seja através de um movimento de
profunda negação.
A
observação de David Harvey sobre os limites da atuação
iluminista ajuda a corroborar tal raciocínio.
Os
pensadores iluministas
também queriam dominar o futuro
por meio
de
poderes de previsão científica, da engenharia social
e do planejamento
racional e
da institucionalização
de sistemas
racionais de
regulação e
controle social.
Eles na
verdade
se apropriaram
das concepções
renascentistas de
espaço e de tempo,
levando-as ao seu limite,
na busca
da
construção de uma sociedade
nova, mais democrática, mais saudável
e mais
afluente. Na visão
iluminista de
como o
mundo deveria
ser
organizado, mapas
e cronômetros
precisos constituíram
instrumentos
essenciais.[v]
Levando
em consideração a linha de continuidade entre Iluminismo e
vanguardas, os projetos de Le Corbusier podem ser
compreendidos como constituídos
por uma
radicalização da perspectiva de uma razão
ordenadora, que instrumentaliza tempo e espaço,
subordinando-os à lógica da acumulação capitalista.
E
passo a
passo, depois de
se ter produzido nas fábricas tantos canhões,
aviões, caminhões, vagões, dizemo-nos: Não se poderia
fabricar casa? Eis
aí um estado de espírito
completamente atual. Nada
está pronto,
porém
tudo pode ser feito. Nos próximos vinte anos a
indústria terá agrupado os
materiais fixos, semelhantes àqueles da
metalurgia; a técnica terá
levado
bem além daquilo
que conhecemos a calefação, a iluminação e os modos
de estrutura racional. As
construções não
serão eclosões
esporádicas em
que todos
os problemas
se complicam
ao se acumular;
a organização
financeira e
social resolverá,
com poderosos e
acertados métodos,
o
problema da
habitação, e
as construções
serão imensas,
geridas e
exploradas como
administrações. Os loteamentos
urbanos e
suburbanos
serão vastos
e ortogonais e não
mais desesperadamente
disformes;
permitirão o
emprego do
elemento de
série e
a industrialização
da
construção. Cessaremos talvez enfim de construir
'sob medidas'.
A fatal
evolução social
terá transformado as relações
entre locatários
e
e proprietários, terá modificado as concepções da
habitação e
as cidades
serão ordenadas em lugar de serem caóticas. A
casa não
será mais
essa
coisa espessa que pretende desafiar os séculos e que é
o objeto
opulento
através do
qual se
manifesta a
riqueza. Ela será um
instrumento, da
mesma forma
que o
é o automóvel.
A casa não será mais uma entidade
arcaica, pesadamente
enraizada no
solo pelas
profundas fundações,
construída em
'duro', e
à devoção
da qual
se instaurou
desde muito
tempo o culto da família, da raça etc.[vi]
A
longa citação serve para demonstrar a crença depositada na
produção de novas tecnologias e na organização do capital
como fatores decisivos para a eliminação do caos urbano, ao
qual, numa concepção evolutiva, sucederá o princípio da
ordem representado por um planejamento científico e estético.
A
poética de
Cacaso surge
na contramão de um projeto iluminista esvaziado de suas formulações originais, apropriado e
deformado por um processo cuja razão cedeu a primazia à lógica
brutal da acumulação e cuja autonomia passou a ser vista
como possibilidade de fuga ao planejamento central.
Tanto
Cacaso quanto
Oswald de
Andrade se
aproximam em
relação à
construção de uma obra cuja legibilidade é assegurada por
estarem inscritas nos limites dos sulcos que delimitam o
território urbano.
Marshal
Berman, em seu estudo sobre a modernidade baseado numa
reinterpretação de Marx, aponta para um senso de totalidade
entre vida e experiência, englobando polaridades diferentes
das apontadas por Rouanet, mas fundamentais à legibilidade do
mundo, como política e psicologia,
indústria e espiritualidade,
classes dominantes e classes operárias, A partir de
uma concepção da vida moderna como um processo dotado de
coerência, o autor critica o entendimento de uma visão dual
sobre a modernidade: "O pensamento atual sobre a
modernidade se divide em dois compartimentos distintos,
hermeticamente lacrados um em relação ao outro: 'modernização'
em economia e política, 'modernismo' em arte, cultura,
sensibilidade." [vii]
Mais
à frente, o autor volta a estabelecer uma distinção entre
modernismo e modernização:
Nossa
visão da
vida moderna
tende a
se bifurcar
em dois
níveis, o
material
e o espiritual:
algumas pessoas
se dedicam
ao 'modernismo',
encarado como
uma espécie
de puro
espírito, que se
desenvolve em
função de
imperativos artísticos
e intelectuais
autônomos; outras
se
situam na
órbita da
'modernização', um complexo
de estruturas
e
processos materiais −
políticos,
econômicos, sociais
− que,
em
princípio,
uma vez
encetados, se desenvolvem
por conta
própria, com
pouca ou
nenhuma interferência dos espíritos
e da alma humana. Esse
dualismo, generalizado
na cultura
contemporânea,
dificulta
nossa
apreensão de
um dos fatos mais marcantes
da vida
moderna: a
fusão
de suas
forças materiais
e espirituais,
a interdependência entre o
indivíduo e o ambiente moderno.[viii]
O
modernismo sempre reivindicou sua filiação a um processo de
modernização da cultura brasileira, uma "atualização"
cuja referência era toda eurocêntrica. Tal ação
correspondia, destarte, à valorização de um dos princípios
da quarta polaridade apontada por Rouanet: o novo. Quebrar
velhas estruturas, romper
os códigos literários vigentes, superar o declamatório,
o discursivo, o
retórico e as formas evanescentes herdadas do século XIX
significava operar uma verdadeira revolução similar ao
empreendimento remodelador das cidades, ao processo de
atualização de nossos centros urbanos, modernizados
de acordo com modelos fornecidos pelos países mais avançados.
Esse gesto inovador no plano urbano ficou conhecido com a
designação de "melhoramento". Sua expressão maior
está representada nas alterações promovidas pela reforma
efetuada pelo prefeito Pereira Passos na fisionomia do Rio de
Janeiro, cujo novo traçado não apenas
atualiza, apresenta
nova conformação,
novos projetos,
como também
busca desvencilhar-se da memória, ao mesmo tempo em que
desloca os grupos indesejáveis de um centro transformado em
vitrina e palco do progresso, em conformidade com o figurino
estabelecido pela proposta criada pelo Barão Haussmann para
Paris na segunda metade do século XIX. Esse
"melhoramento" produz
tanto resultados positivos
quanto negativos,
desenhando-se, portanto,
como uma forma
híbrida: se
o racionalismo urbano
estetizado
dessa transformação traz o progresso, gera,
simultaneamente, a
favela.
A
razão iluminista não é a Razão, os imperativos categóricos
são tão flutuantes quanto qualquer formulação teórica.
Sua constituição e emprego corresponde a uma representação
dos interesses de determinada classe. A sobredeterminação do
novo é a ampliação da mercadoria, estendendo a sua natureza
aos atos e movimentos culturais. Esse novo passa a ser usufruído
por aqueles capazes de reconhecer o seu valor de mercadoria.
Nesse sentido, a modernização no Brasil, em quase todos os
seus atos, surge como resultado da ação de uma elite colonial num
processo de identificação que tenta criar instrumentos para
igualar-se aos centros mais avançados. Os movimentos literários,
a luta contra a insalubridade e pelo saneamento das cidades, o
planejamento urbano, o processo de industrialização,
portanto, apontam para espaços nos quais as classes populares
nunca tiveram poder decisório, embora sempre apareçam
como alvo, público, vítima ou como habitantes invisíveis.
Na
verdade, a modernização
com embelezamento proposto nas décadas iniciais do século
passado tem seus desdobramentos na política
desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek
e chega às décadas de atuação de Cacaso sob a forma
de um projeto de construção nacional megalomaníaco, fruto
da associação entre oclusão política, vontade imperial,
tecnocracia, radicalismo ideológico, financiamento externo e
racionalismo normativo. Ou seja, o modelo de cidade iluminista
proposto por Rouanet abriga a Reforma Pereira Passos, os
projetos de Le Corbusier[ix], cujo maior desdobramento
é Brasília, cidade-símbolo do planejamento como utopia
racionalista, e os planos engendrados pelos projetistas do
Brasil Grande: Transamazônica, Itaipu, usina nuclear e as
milhares de unidades financiadas pelo BNH país afora, dentre
outros projetos arquitetônicos.
*
NOTAS
[v]
HARVEY, op. cit.,
p. 227.
[ix]
As idéías de Le Corbusier influenciaram nossos
urbanistas. Conforme assinala LEME,Maria Cristina da Silva
Leme. "Urbanismo:
a formação
de um
conhecimento e
de uma
atuação profissional".
In: Palavras
da cidade. Org. Maria Stella Bresciani. Porto
Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001, p. 90. "A
passagem de Le Corbusier
por São
Paulo e
Rio de Janeiro em
1929 e o
retorno em
1936 são
responsáveis pela difusão deste movimento no Brasil. Ele
profere duas conferências no Rio: a primeira sobre
arquitetura -
Revolução Arquitetural
- e a
segunda sobre Urbanismo. Estes dois temas estão
estreitamente articulados em sua fala -
a cidade e a arquitetura moderna."
*
José Antônio Cavalcanti é poeta, contista e
professor de ensino médio na cidade do Rio de Janeiro.
Dutorando em Ciência da Literatura na UFRJ com pesquisa
sobre a narrativa de Hilda Hilst. Dissertação sobre
Cacaso ainda inédita. Mantenho um blog de poesia: zantonc.blog.uol.com.br.
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