ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

PROSA DO GRANDE CINEASTA, DE FRANCISCO DOS SANTOS OU VIAGEM AO CENTRO DO CAOS

 

José Cardona-López

 

I

Prosa do grande cineasta é uma obra delirante, escrita com as tintas do absurdo e do surrealismo. É um texto em que o leitor cai em uma vertigem de imagens como que desconexas, disparatadas, deslocadas e de grande humor. O único guia possível para mover-se nesta leitura é seguir por trás do caos de algo que se constrói enquanto se desmorona, saber aceitar de entrada que “o centro desse libreto, por mais que o escoremos, continua na iminência de desmoronamento...............O leitor está avisado,        está por sua conta...................................... F. dos S.”  (lâmina 02).

Na sequência daquela advertência que é a frase final do ‘guia’, o leitor fica de mãos para cima na entrada desse bosque caudaloso de imagens que é o livro de dos Santos.               No entanto, antes de seguir, em alguma das mãos do leitor entrega-se uma sinopse na qual se diz:

 

O GRANDE CINEASTA COMEÇA UM MORRO CENOGRÁFICO PARA RODAR SEU NOVO FILME............ O FILME É SOBRE UMA GAROTA COM MEMÓRIA FOTOGRÁFICA […] NO ENTREMEIO DA FILMAGEM O MORRO CENOGRÁFICO VAI SE TRANSFORMANDO NUM MORRO DE VERDADE COM TODA SORTE DE  PERSONAGENS................................” (lâmina 03).

O leitor assistirá a essa transformação do set cinematográfico, do morro, em um de verdade. Espécie de descida das colinas do sonho aos escarpados da vigília, aos pesadelo que é a realidade objetiva sustida sempre na artilharia pesada da história, da história contemporânea. E o leitor realocará seus assombros naquelas páginas acompanhado do absurdo e do surrealismo, as duas formas do pensamento e arte para estar no mundo           e suportá-lo que andam por aí desde o século XX. Todo esse binômio dos Santos            tem-no bem lido, visto e vivido antes e durante a escrita de sua Prosa do grande cineasta.

 

Em Prosa do grande cineasta circula a história e histeria atuais do mundo, em particular as do Brasil. Menciona-se ou alude-se à guerra, a alienação do homem, a rampante publicidade, assim como as luzes falsas e as chagas verdadeiras da chamada globalização.

Na Parte 9 (da geometria de um dia todo feito de incisões..............) toma de “Con Vallejo en París mientras llueve”, de Gastón Baquero: “Oiga lo que le digo, Abraham:               tanta hambre paso en París que voy al Louvre a comerme el pan y los faisanes de un bodegón holandés. Le arrebato a un hombre de Franz Hals un jarro de cerveza y me harto de espuma. Salgo del museo limpiándome el hocico con el puño cerrado y digo ¿cuándo parará de llover en este mundo..............................” (lâminas 156-157), mas ao não haver faisões ou Franz Hals por aqui “saquearam um supermercado ………………………... mais a frente quando a água baixou começou-se o Fraz-halls, um grupo para ocupar a entrada de grandes corpora    ç      õ    e    s     .    .     .     .    .      .”  (lâmina 157).

 

O set foi disposto em uma grande colina de favelas, e já com isto se legitima ainda mais  a aparição de umas constantes da obra, a farsa, a paródia, e com elas a sátira e a ironia, dois elementos definitivos para o humor que tanto cruza essa obra. Há expressões memoráveis de sátira e ironia. Na Parte 10 diz-se: “( O político tem uma mão maior do que a outra de tanto dar tapinhas nas costas dos outros ...................)” (lâmina 186);

a respeito dos índios amazônicos e a curiosidade do depredador turismo: “Que seria dos pobres turistas sem seus penachos ...............?” (lâmina 199). Humor negro mostrando suas cristas de fumaça branca na ponta da torre.

 

Na Parte 6, “O que aconteceu quando o Che esteve no Brasil..........”, por celebrar um gol os companheiros do Che esquecem-se dele, esquecem-se “da revolução, de tudo! abandonam as armas e saem às ruas para comemorar.............O Che fica sozinho, tossindo, tossindo…….... Foi assim que a Grande R   e  v   o   l   u   ç   ã   o   , que mudaria o destino das américas, fracassou por aquí” (lâmina 110). O gol se impõe frente ao que seja, como também vai ocorrer logo com o samba. O cineasta ‘terminou’ de filmar seu interminável filme e “enquanto sobem os créditos Hdc vai invadindo com o Carnaval países em guerra e os soldados vão abandonando as armas e caindo no samba..................” (lâmina 242). Gol e samba, dois produtos ‘verde-amarelos’ que põem no mesmo lado revolução e guerra, e que tiram seu chapéu para a história.

 

O chute fulminante de sátira e ironia vem ao fim da filmagem que fez Jean Nubis,               o grande cineasta. Ele deixou de fazer a rodagem e a continuação segue “A primeira pauta ……..”. As palavras vêm a se referir a um documentário relaxante, como que          de cortesia de empresa aérea, que trata de chimpanzés, macacos, vida selvagem. Um chimpanzé macho e grande vai devorar um macaco e “daí veio uma fêmea interessada naquele petisco e se ofereceu ao macho .............. Mesmo separados por incontáveis anos de evolução, era um registro curioso do passado no futuro do nascimento da primeira pauta............ ( Abençoada providência............ )” (lâmina 251). Não obstante a presença da insinuação de uma entrega sexual, neste exato lugar do texto creio entrever que a imagem vem a cumprir sua especial função temática na obra. A cena descrita é também  o encontro da origem primordial com o resultado do que nos tempos que correm chegou a ser a espécie humana. Com isto, pois, Prosa do grande cineasta é também uma viagem até o encontro ritual dos chimpanzés e o Homo sapiens, como para que entre os dois         se ajustem contas ao cabo dos incontáveis anos de evolução.

 

II

Logo que a claquete da equipe de filmagem dá seu golpe de início da rodagem vem a primeira parte do livro, que consiste em sete sequências rápidas. Na primeira, de cinco minutos “para prender a atenção....” (lâmina 08), um ex-religioso banha com sua língua o corpo de uma bela mulher e a possui. Na primeira parte revelam-se alguns dados do que vai acontecer nas seguintes, e aparecem o Grande Cineasta, o já mencionado Hdc e outros personagens como o Sr. X, o professor-poeta, Anabela e o Homem-do-Cigarro.          Seguem outras dez partes, um epílogo e umas páginas dedicadas ao ‘leitor desatento’.      

 

Se com a cena do ex-religioso se abre a obra, esta se encerra com aquela do final em que se insinua a entrega da mulher ao chimpanzé. O círculo se completa e é o momento preciso em que o desmoronamento se dá por completo, pois se cumpre o assinalado na advertência: “nesse terreno cediço, talvez a imagem que se ajuste melhor a essa escrita seja a da ampulheta ( também uma espécie de morro, às avessas )” (lâmina 02). O morro cinematográfico inverteu-se, e tudo acaba por acontecer brevemente, como um sopro entre as areias que enchem a garganta do tempo, pois como já o disse dos Santos          Prosa do grande cineasta é“uma prosa torta, escrita praticamente num fôlego depois revisitada” (lâmina 02).

 

Na primeira parte uma loira comenta que “O procedimento colagem/montagem se constitui num dos mais sintomáticos da estética da modernidade.............” (lâmina 80),         e o Grande Cineasta lhe dá mais vinho e lasanha. Esta declaração da mulher vem a ser o princípio reitor do que o leitor tem em mãos. Todas as onze partes de Prosa do grande cineasta foram escritas à base de collage/montagem. Esta técnica se desdobra em toda a construção do texto, a mesma que é chave para a permanência do leitor em meio a esse caos surrealista e absurdo.

 

A Parte 7 “Na azáfama do morro........ ( Ou nos 400 metros com barreiras........... )”            se destaca porque é uma profusão de eventos nos quais aparecem todos os personagens da filmagem, conversam e ao mesmo tempo se referem a situações que se alinham na realidade objetiva do mundo atual, e todos presididos pela onipresença da banca e suas ações especulativas. Nessa parte, o caos surrealista e absurdo que veio lendo o leitor agora é convocado a suceder de maneira simultânea, e precisamente essa parte se lê sem sentir aquele caos. A simultaneidade lhe outorga essa qualidade, mas sobre o complemento essencial que dá a leitura do leitor contemporâneo, que em boa porção é derivada do cinema.

 

Seguindo a imagem do relógio de areia que no princípio dos Santos nos proporcionou (lâmina 02), dir-se-ia que essa Parte 7 corresponde aos momentos em que o set cinematográfico está se tornando real, em que o morro invertido passa a ser um com o cume para cima, um de verdade. Já ao final se retoma a escrita fragmentada que parte de uma imagem que se justapõe a outra, que desliza até outra, que se decompõe e logo se refaz em orações que se fraturam, em palavras que se separam, que se decompõem em suas letras, que quebram, saltam, explodem, se desintegram, voam em pedações. Regresso à dinâmica do desmoronamento, a do caos, de que justamente nesta parte às vezes já terá podido sentir saudade o leitor.

 

A Parte 7 é crucial em Prosa do grande cineasta. É a passagem da realidade fictícia do filme que se roda até o da realidade objetiva. É o encontro destas duas realidades nos pontos exatos em que o sino de vidro do relógio de areia se estrangula para dar passagem ao gotejo do tempo. Esta parte é como o Capítulo 41 (as tábuas entre as janelas dos apartamentos de Horacio e Traveler) em Rayuela de Julio Cortázar. Em várias ocasiões o autor confessou que a novela começava aí, que esse capítulo tinha sido o lugar germinal da novela. Não obstante, se em Rayuela o Capítulo 41 é uma espécie de núcleo do          qual se desprendem os outros, a Parte 7 de Prosa do grande cineasta é um centro no qual converge todo o sucedido na rodagem do filme. Talvez dos Santos tenha começado              a escrever seu texto nesta parte, vá lá saber, como diria o mesmo Cortázar, mas para          o leitor ela ajuda a organizar-se frente ao caos em que se meteu na leitura, e para prosseguir nele.

 

Até aquela parte sétima que se despendura pela cintura do relógio de areia vão dar as primeiras seis, as do morro cenográfico, e também as seguintes quatro, as do morro real. Ao entrar nas primeiras seis e começar a sair das últimas quatro, o leitor foi implicado em tudo o que sucede e acaba de se fazer cúmplice dos personagens, como se fosse mais um deles. Sua entrada ao texto se produziu com um começo in media res. “Mas sim, esta é uma espécie de alegoria de meus amigos e gente que se conhece por aí” (lâmina 02),        reza a advertência inicial já mencionada e que termina dizendo que o leitor está avisado, que está por sua conta. Começa sua viagem de leitura e logo sem mais remédio é também alguém entre a “gente que se conhece por aí”, e isto lhe será lembrado mais adiante, logo da Parte 11, quando leia “AO LEITOR DESATENTO …………”. Como em uma rua,  entre a gente que via por aí, diz-se ao leitor “você se acha muito esperto porque chegou até aqui.....não                             é........? É com você mesmo que estou falando........” (lâmina 223). A voz narrativa não distingue bem entre os diversos seres que povoam a rua e que de uma forma ou outra espreitam o leitor, mas lhe sinala que “Você foi seguido desde que chegou........... Eles já têm todos os seus passos......... Vai, anda..............”. Canto ao qual foi o leitor conduzido logo de haver entrado desarmado neste texto do domínio absoluto da imagem.

 

Embora tenha sido o leitor posto contra as cordas, já no Epílogo o cineasta vai entender      a futilidade de sua empresa, cairá na armadilha à qual o conduziu a dinâmica                     da filmagem, terá que saber “que jamais terminará               o               seu               filme, pois o filme é uma ideia.....e uma ideia vai mudando......” (lâmina 241). Espécie de Sísifo com seu labor interminável, eterno, já não condenado pelos deuses senão por ele mesmo, pelo ofício que lhe faz a vida de criador.

 

E se o cineasta e o leitor caem nas armadilhas do absurdo, também nelas cairá aquele      que trata de explicar-se Prosa do grande cineasta, pois ao fazê-lo corre o risco de chegar a acometer uma empresa tão absurda como quando na televisão passam uma partida de futebol e os narradores esportivos fazem o seu ofício: “coisa mais nonsense narrar  futebol na tv............ não é absurdo ? ( dá um tapinha nas costas do Absurdo..... )            você olha para algo e alguém tem que falar o que você está ‘  v e n o  ’ . . . . . . . .” (lâminas 56-7). Enfim, como se na tela do televisor onde se vê e se escuta uma partida de futebol houvesse uma legenda fixa que dissesse “Ceci n’est pas un match de football”. Em Prosa do grande cineasta deFrancisco dos Santos não tem saída para ninguém.        No desmoronamento que é o tema desse texto, que ao mesmo tempo serve para postular uma alegoria do Brasil e do mundo atual, todos são arrastados irremediavelmente              até o centro do caos. Talvez do que sim está seguro o leitor é que já nesse centro ele não poderá dizer ‘Ceci n’est pas un chaos’.  

 

 

(Tradução de Fábio Aristimunho Vargas)

 

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José Cardona-López ensina espanhol, criação literária e literatura hispano-americana no Texas A&M International University e criação literária e literatura no Middlebury College. Publicou a novela Sueños para una siesta (1986) e os livros de contos La puerta del espejo (1983), Todo es adrede (1993, 2009), Siete y tres nueve (2003) e Al outro lado del acaso (2012). Como pesquisador acadêmico publicou Teoría y práctica de la nouvelle (2003). Contos, micro ficções e poemas seus tem aparecido em antologias publicadas na Colômbia, Canadá, Espanha, Estados Unidos, México e Perú. E ensaios e artigos em revistas impressas e electrônicas nos Estados Unidos e no exterior.

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