ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A CONSTRUÇÃO DA AUSÊNCIA: A POÉTICA DE JULIO CASTAÑON

 

por

Franklin Alves (CNPq - UFF)
Leonardo Gandolfi (CNPq - UFF)

 

Em memória de Sebastião Uchoa Leite

A poesia moderna é, sobretudo, uma operação de linguagem, e as poéticas, um projeto de lucidez: opção consciente de dominar o processo criativo ao estudo e controle do poeta. A inspiração, espécie de alento, os estados subjetivos ou o acaso têm, através de uma razão construtiva e geométrica, suas existências reguladas. O poema assume-se então como linguagem à parte, não falaria mais acerca de algo, seria ele o próprio ato de realização - ação ao invés de informação, numa reflexão sobre o próprio corpo, enfim, metalinguagem. Ele torna-se, principalmente, o dispositivo de uma consciência crítica da linguagem, atualizando tal crítica no corpo verbal que lhe dá existência.

Este ideal poético, que está entre nós, pelo menos desde Baudelaire, pois para ele "um poema não deve ter em vista nada a não ser o poema", foi entronizado pelas experiências de Mallarmé com Un coup de dés - peça que radicaliza a lição de que não se fazem versos com idéias, sentimentos, ou proposições, mas sim com palavras. O projeto moderno de lucidez e a conseqüente autonomização da linguagem atingem, com Mallarmé, um grau elevado de tensão, o que implica numa série de questões fundamentais para a poesia do século xx.

No caso da poesia brasileira, esta prática ganhou força com a obra de João Cabral de Melo Neto - é certamente com ele, nos livros O engenheiro e Psicologia da composição (Melo Neto, 1997), que o poema torna-se o lugar enfatizado da experiência poética: exercício rigoroso de linguagem que, por meio de um pendor abstratizante e impessoal, questiona sua função mimética. No poema O engenheiro, do livro homônimo, o ato de escrever, a ratio construtiva, é comparado ao fazer do engenheiro, edifício e poema se equivalem; os instrumentos de construção também: "O lápis, o esquadro, o papel; / o desenho, o projeto, o número: / o engenheiro pensa o mundo justo, / mundo que nenhum véu encobre". A escritura despende tempo, lê-se em A lição de poesia, uma vez que a criação é trabalho: "Toda a manhã consumida / como um sol imóvel / diante da folha em branco: / princípio do mundo, lua nova". Consome também a outra metade do dia: "A noite inteira o poeta / em sua mesa, tentando / salvar da morte os monstros / germinados em seu tinteiro".

Com o rigor, ou disciplina, suprime-se o supérfluo, "evitando o fácil, impedindo a desordem, recusando o vago, tolhendo a intromissão do inconsciente ou da efusão sentimental"; a disciplina ainda "impõe limites à dispersão dos fenômenos subjetivos e certa consistência à sua incessante fluidez", afirma Benedito Nunes no livro sobre Cabral. E se mesmo assim algo se precipita, "Desordem na alma / que se atropela / sob esta carne / que transparece", há a lição da pedra na Pequena ode mineral: "Procura a ordem / que vês na pedra: / nada se gasta / mas permanece". É no "pesado sólido" que o poeta busca uma lógica para a "desordem na alma", porque a pedra "Nem mesmo cresce / pois permanece / fora do tempo / que não a mede". Fora do decurso do tempo, e, logo, fora da história, a pedra ensina ao poeta uma lição entusiástica que "valerá como vontade negativa, que medusará a vida interior, paralisando os sentimentos e a inquietação que vem deles" (Nunes, 1974, 42, 46).

Na Fábula de Anfion, um dos três poemas de Psicologia da composição, é possível encontrar outras questões importantes, e produtivas, da poética moderna: a interferência do acaso e o medusamento da subjetividade - este um desdobramento daquele. Na segunda parte do poema, Anfion, depois de achar que encontrou no deserto a esterilidade, depara-se com o acaso: "Ò acaso, raro / animal, força / de cavalo cabeça / que ninguém viu; / ò acaso, vespa / oculta nas vagas / dobras da alva / distração; / inseto vencendo o silêncio / como um camelo / sobrevive à sede". Este ataca e lhe faz soar a flauta-voz, assim, Tebas se faz: "Quando a flauta soou / um tempo se desdobrou / do tempo, como se uma caixa / de dentro de outra caixa". De uma parte a outra, uma significativa mudança de ritmo: na descrição do acaso, o verso desembesta em cortes. Já na construção da cidade, o ritmo é mais contido, desdobrando-se lentamente, e exprimindo, talvez, a decepção diante do resultado.

A "injusta sintaxe" que fundou Tebas faz Anfion lamentar, pois sua obra não é mais a construção exata, fruto de raciocínio e trabalho, corpo calculado com lápis, esquadro, papel; nem tampouco a "leve laje" sonhada, "largada no espaço". E atônito pergunta-se: "Onde a cidade / volante, a nuvem / civil sonhada?". Do projeto ao objeto construído uma perda, ou desvio, que o faz jogar a flauta fora, "aos peixes surdos- / mudos do mar", porque não há como domesticar esse instrumento, metáfora precisa da voz, "cavalo solto que é louco". A Fábula de Anfion reflete, assim, as dificuldades e carências do processo poético que se define como lúcido, mas se encontra, paradoxalmente, numa posição de tensão entre o êxito e o malogro, uma vez que o medusamento, ou seja, a petrificação do sujeito não é completa - resta ainda um fio de vida que irrompe do sujeito a estragar-lhe o projeto escrevendo o poema.

Desta maneira, a poesia de Cabral, e de outros poetas modernos, aponta para o poema como objeto de representação de uma crise e, sobretudo, de uma crítica: a crítica da linguagem e da realidade. Nas palavras de Octavio Paz: "La poesia moderna es insepararable de la crítica del languaje que, a sua vez, es lá forma más radical y virulenta de la crítica de la realidade". Portanto, a autonomização da linguagem poética, por vezes criticada, não é desvinculada nem desengajada de questões históricas, pois, além da virulência da crítica, tal reflexão mostra-se inseparável do sujeito que a faz.

É no desdobramento destas questões, nessa tradição da insuficiência do falar, nomeada singularmente de negativa, antílirica, que a poesia do contemporâneo Júlio Castañon Guimarães se inscreve. Inscreve-se, entretanto, de maneira positiva, num diálogo vivaz com a tradição - é do encontro, ou choque entre estes corpos, passado e presente, que sua poética se constrói. "Nenhum poeta, nenhum artista, tem a sua significação completa sozinho" escrevia Eliot , pois o "significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos" (Eliot, 1989, 39). E Castañon, consciente dessa postura, recupera aquilo que tanto angustiou parte da tradição moderna: a relação da poesia com uma realidade que não fornece acesso à linguagem, e a esgarça, traduzindo-a como experiência de extravio, descaminho das coisas que se perdem, no jogo interno em que se escreve o poema - ou "injusta sintaxe" nas palavras de Anfion.

A incomunicabilidade na poesia de Castañon parece ter uma razão específica: a vontade de preencher aquilo que faz falta. A partir do projeto moderno da lucidez, o poeta espera construir, com seus versos, um objeto perfeito, cristalino e de superfície polida que se quer além da própria rugosidade do real. No entanto, tal projeto é arriscado e perigoso - por mais precisas e minuciosas que sejam as imagens, seu poema esbarra sempre no que há de humano neste percurso. Castañon apega-se ao formal, às linhas, aos mecanismos de estruturação daquilo que para ele, em princípio, seria um monumento, bem alicerçado, amplo, justo e, portanto, único. Mas é no construir do poema que esse intento acaba revelando-se outro - o que se quer perfeito descobre-se fraturado. Porque dentro da máquina do poema há nódoas, fios, enfim, filetes de uma subjetividade que corrompe estruturas e negaceia sua convicta ordem.

Num esboço de leitura de sua obra, que conta vinte e oito anos e seis livros, percebe-se o desenrolar de tais ações. A experiência da falta, ou daquilo que se perde, insinua-se desde Vertentes (1975), em poemas como Geografia: "sombras ancestrais / claras manhãs / em que margem? / ainda que a memória esbata as horas / o que há são espaços perdidos". Porém, cada vez mais é possível notar a presença de uma subjetividade, feita de memória e afeto, que mina a pureza da matéria incólume, e expõe, no corpo do poema, fraturas que conscientemente constituem o ponto principal desta poesia. Em Inscrições (1992), os versos de Castañon já deixam ver as ruínas de uma linguagem que não pode mais comunicar. Na série sem título, é exemplar tal exposição de fraturas. São como planos superpostos que não mais coincidem, desvios que deixam ver arestas, pois "rigorosa pode ser / a organização dos desvios / - quase figura ou figura de trama". E no poema que fecha a série, a tensão entre organização e desvio é mais radical: "a construção de fato / sequer simula ocultar-se / e deixa posto que, / se traz em pauta / cálculos e tramites, / a proposição não repele / afetos e horizontes à deriva". São versos que denunciam a aventura crítica da literatura como uma voz que pretende dizer o real, mas que erra sempre ao fazê-lo - extravio que, além de conter o real, contém ainda suas possibilidades. E, progressivamente, o poeta parece tomar mais consciência disso, tanto, que em Práticas de extravio, seu último livro, ele assume, explicitamente, tal postura como poética.

 

Texto é um poema de Inscrições:
A máquina que a ti
se expõe, leitor,
esta máquina busca
talvez ocultar certas
engrenagens, talvez
outras acelerar.
Roldanas, polias, motores,
ignições, chaves, bobinas
concertam-se ora exatos,
ora em furor e estrépito
e desassossego, compondo
máquina entre
inútil e bizarra.
O que produz? Ora, o demônio
que dela se desembesta
não passa de outra máquina,
a que se costuma chamar,
quase sempre a meia voz,
leitura.

Aqui, percebe-se outra vez o embate de forças que se dá dentro do poema. As "Roldanas, polias, motores / ignições, chaves, bobinas" desta máquina não funcionam como a princípio funcionariam, sua medida e exatidão são corrompidas pelo "furor" e "desassossego" que, contraditória e propositalmente, a fazem trabalhar. Pois "o demônio / que dela se desembesta" instaura a falta e o desconcerto, porém, não a impossibilidade de existir. Existência agora corrompida e, assim, extraviada. Mas, o descompasso também se configurará como uma máquina, outra menos pura, tipograficamente menor no poema, e associada ao ato de ler. Sua subjetividade é, por enquanto, a que se dá através do leitor e não através do poeta - é como se este oferecesse uma ordem e aquele a destruísse. Uma possibilidade que Castañon oferece a quem lê: expandir os extravios no ato significativo e, não menos importante, da leitura.

Aos poucos, o problema de funcionamento do poema vai ganhando proporções bem maiores. Passagem, peça de abertura de Matéria e paisagem (1998), é um exemplo da intensificação progressiva desta poética na sua obra:

 

enquanto na rua passos
medidos, como o percurso  

de versos tão breves quanto
certeiros, sob as arcadas

que exatas na noite ligam,
tal estrofe a estrofe,

a janela e a ocasião
de um hotel estrangeiro

aos vidros aos aços às linhas
da imaginação que se constrói,

às fortes torres perto
onde pedra pesa o passado

- ao alcance de um olhar
rápido o giro da história:

passos medidos entre tempos
postos contíguos pelos planos da cena

em tão desmedida simetria
que o atropelo não de pausas pés

mas do que perde o chão
e, crespo, insone, dúvida, se acende

 

Mais uma vez, existe a tentativa de instauração de uma ordem que logo é quebrada - agora, não necessariamente pelo leitor, mas pelo próprio processo de feitura do poema. Os "versos tão breves quanto / certeiros" são matéria prima e, ao mesmo tempo, instrumento para uma construção que não é um ornamento mas pelo contrário, um objeto sólido, preciso e útil. O nome "passagem" sugere o local por onde caminha o flâneur, personagem moderno; o desenho dos dísticos unidos por "arcadas" e o recurso do enjambement confirmam o título do poema. A concepção de tal caminho é porém comprometida pelos "passos medidos" que cedo revelam sua "desmedida simetria", feita sobretudo de pedaços sobressaltados da memória. É assim que se enfumaça a passagem, e o caminho já não pode ser atravessado, pois os pés em atropelo perdem o chão. A "dúvida" que "se acende" no fim do poema é o signo maior da poesia de Castañon. Há o desencontro dos "planos de cena", como se duas realidades brigassem por uma união que o poeta sabe impossível, descompassada.

Em Noturno à janela, ainda de Matéria e paisagem, o que se enfumaça sob a névoa é o olho de quem vê a linha do horizonte e a paisagem "que toda noite / quase ocultos / já tendem a se tornar / mera hipótese". Entre o olhar e a natureza interpõe-se um obstáculo. Este impedimento é uma metáfora da palavra, expressando a distância que a poesia moderna tão bem notou entre linguagem e realidade. Não é despropositado lembrar desta poética quando lemos os versos de Manuel Bandeira, diferentes e ainda assim próximos aos de Castañon: "O arranha-céu sobre no ar puro lavado pela chuva / e desce refletido na poça de lama do pátio. / Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separe, / Quatro pombas passeiam" (Bandeira, 1989, 177). Nos dois poetas, o mesmo desejo de pureza e construção e também o mesmo problema da mediação - se neste o extravio aparecia na simplicidade do cotidiano, naquele toma vulto na não-geometria das arestas que se soltam e incomodam o olhar.

Na poesia de Castañon um dos modos de conhecer, ou enfrentar, a matéria faz-se através do olhar - conhecer que sempre esbarra na "mera hipótese". Horizonte é singular neste aspecto. Na primeira estrofe, o poeta observa, por uma janela, a paisagem: "a janela enquadra / quase ao pé / um jardim / uma faixa de areia / e adiante / um lance de mar / e ainda além / um trecho de terra / que antecipa / uma linha de montanhas". O desejo de objetivação, porém, torna-se, na segunda estrofe, irrealizável: "a janela (não) enquadra / o ar maculado / (escórias escárnios) / o estertor dos músculos / acionado pelo trânsito de ruídos / a tensão de ofensas ascos / lacerações (acúmulo / de escombros)". Deste embate entre o que a janela enquadra, desejo de uma construção lúcida, e o que ela não enquadra, malogro do desejo, "toda uma vida (oculta) / relances limites / algumas disposições / nesgas de perspectivas / traços de razão". Enfim, "mera hipótese", erro do sujeito - "cavalo solto que é louco" na lição cabralina.

O que a poesia de Castañon parece questionar é, sobretudo, isto - uma incomunicabilidade que não se faz devido à ausência de sujeito, ao contrário, se dá por sua insistente presença. Insistente, pois, apesar da tentativa de extirpação da subjetividade, através, dentre outras coisas, da falta de verbos conjugados na primeira pessoa e de qualquer adjetivação de quem fala, o que importa é sua permanência. O próprio nome do livro, Matéria e paisagem, confirma tal posição: matéria refere-se a um conteúdo e indicia uma presença; já paisagem aponta para uma natureza que necessariamente foi olhada, enquadrada, logo, interpretada por um sujeito.

É em Práticas de extravio (2003) que a permanência, e consciência de um sujeito, é mais entronizada e explorada. Extraviar, segundo o dicionário, significa: induzir ou cair em erro, desviar do bom caminho, desencaminhar, perverter. Ou seja, percebe-se aqui uma mudança de tom: se antes os poemas de Castañon ensejavam a perfeição, mas sabiam-se falhos - agora não só assume os desvios e impossibilidades, como os põem, conscientemente, em prática. Não há mais o afã de organização de antes, o que não prejudica seu rigor imagético nem tampouco sua pessoal sintaxe. O resultado: versos mais elípticos e menos lineares, pois se encontram construídos em meio à deriva da linguagem. O estado de extravio é, neste percurso, nomeado diversas vezes para confirmar o propósito do poeta: "engenho de modulações", "construção da ausência" ou "mapa de suspeitas", para citar alguns.

Mais do que nunca, a subjetividade nesta poesia é fundamental. Dentro do poema encontram-se, agora, ruínas estruturadas tanto pela memória quanto pelo afeto, sugerindo que a consciência do sujeito, e, conseqüentemente, de sua "injusta sintaxe", como basilares para a estruturação do poema. Enfim, aquilo que se intensifica em seus versos, é o constante descompasso de planos superpostos: a realidade e a imagem. Esta irresoluta tensão acaba por desencadear possibilidades lingüísticas que não podem abarcar totalmente a realidade, mas transformam nossa concepção do real, dizendo acerca dele coisas que, em si, não poderiam ser ditas, suposições da linguagem . "Mas sobretudo da hipótese de uma vida que poderia ter sido", afirma o poeta em Ainda onde. E na mesma direção, no poema Extravio, a condição daquilo que é (não é) possível: "para nada daquilo / do que era como se / tivesse ocorrido". No poema, e em toda literatura, "representar o que poderia ter acontecido é sugerir o que poderá acontecer, é revelar possibilidades irrealizadas do real" (Perrone-Moisés, 1990, 108).

É nas superposições de planos diversos, ou Aproximações, como diz o título de outro poema, que a lógica desta poesia se constrói. O passado, através da lembrança, caracteriza o não-assimilável do sujeito e de sua vontade, enquanto que a forma, que se quer incorruptível, tenta absorvê-lo e não consegue; daí o dilema do projeto moderno. O sucesso de tal operação parece não ser garantido, ou melhor, parece ser improvável como avisa o poema Luto. Aliás, neste, é possível ler que nas "camadas superpostas / (...) deslizam / fragmentos resquícios / sombras imaginações / e até mesmo avessos / de vozes". Já no poema Linha ouve-se, ainda, que "entre morros e céu / quase só a idéia do traço superposto / à massa de morros", como se as coisas, ou a matéria, só pudessem ser vistas "contra camadas de transparência" que as falseiam e transformam - metáfora que reflete a "pura lição da escrita", segundo o poeta.

Deste modo, extraviar exige a desmedida simetria entre linguagem e realidade. E qualquer trabalho poético, consciente de si, acaba resultando no abismar-se de tal prática, tão bem nomeada por Castañon. Até porque, parte do êxito de um poeta vem dessa provocação, desse erro que se torna acerto, perda que é lucro - necessário desengano que o poema Os dias resume:  

 

 

se então até mesmo se apegar
a alguma paisagem e seus pontos de afeto

um espaço ainda dentro da percepção
como um corpo a que se quer

não apaga nem o desalento e seus meandros
nem a persistência das lacerações

quando das furnas da memória
imagens pela noite adentro insistentes

sem que os arcabouços de especulação
resistem às ruínas de hipóteses

e no escuro o que reste dos enlaces
seja apenas a trama de algumas canções de lamento

 

Aqui, reúne-se grande parte das questões antes levantadas. Desde a superposição de "se apegar / a alguma paisagem" até as ruínas que o sujeito constrói com o desordenado da memória. Como foi destacado, não há propriamente uma subjetividade absoluta, e sim um traço afetivo, porém não sentimental. O que há de diferente no poema é, justamente, oferecer tal efeito com maior intensidade que de costume. A "persistência das lacerações", no entrechocar-se de planos, desencanta o sujeito e o faz tramar "algumas canções de lamento", dando um tom de pesar aos versos e desestabilizando ainda mais sua organização. Além da presença do desejo, "um corpo a que se quer", o título do poema, numa referência à passagem do tempo, expõe ainda mais a face deste sujeito que, aos poucos, vai tomando forma na poesia de Castañon - vencendo assim o tal medusamento, ou seja, a construção de sua ausência.  

E quem sabe não é isto o que há muito Castañon persegue.

Referências bibliográficas
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1989.

BONVICINO, Régis. Uma fina engenharia. In: Mais!. Folha de São Paulo, 21/06/1998.

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GUIMARÃES, Júlio Castañon. Matéria e paisagem e poemas anteriores. Rio de janeiro:7letras, 1998. ______. Práticas de extravio. Rio de Janeiro: 7letras, 2003.

MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997

MELO, Tarso de. A antivoz e a fala necessária. In: Cacto 3: São Paulo, 2003, p. 205-212.

NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1974 (Coleção: Poetas modernos do Brasil).

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Cia das letras, 1990.
POLITO, Ronald. Os horizontes do pensamento. In: Rodapé. São Paulo: Nankin, número 1, 2000, p. 59-67.

WEINTRAUB, Fábio. Esboço de um destroço. In: Revista Cult. São Paulo: Lemos Editorial, número 15, 1998, p. 38-40.

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