Introdução
As narrativas do escritor moçambicano Mia Couto são conhecidas por serem repletas de histórias cuja temática se dá em torno de acontecimentos sobrenaturais. Muitos estudiosos dessa espécie de literatura, escrita na África passarão a denominá-la de Realismo Animista. Isto traz à tona uma questão geográfica para a classificação dos eventos insólitos entendidos nesses textos. Enquanto a Europa, por meio de Todorov e outros teóricos, viram configurar-se uma Literatura na qual os fatos considerados sobre-humanos denominarem-se Fantásticos, na América passou a ter outra designação, segundo a visão de Irlemar Chiampi: Realismo Maravilhoso.
A forma clássica de conceber o insólito a partir do século XX sofreu modificações no decorrer dos anos. Contudo, as narrativas que continuaram com essas características mantiveram alguns traços do Fantástico clássico. Entre esses traços está a hesitação proposta por Tventan Todorov. Segundo o teórico, para que determinados gêneros constituam-se como tal, deve haver em seu conteúdo alguns aspectos.
Quando o leitor vê-se diante de um evento no qual se sobressai o sobrenatural, nasce uma indagação sobre esse fato, surgindo imediatamente a hesitação. As perguntas constantes presentes no texto, a falta de equilíbrio diante da ocorrência do insólito e sua não solução são elementos de constituição do Fantástico. Para Filipe Furtado (1980) “Só o fantástico confere sempre uma extrema duplicidade à ocorrência meta-empírica” (p. 35). Como diz Todorov (2010) “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (p. 31), além disso, a presença de um narrador que faz parte da narrativa, que vivencia os fatos como testemunha ocular e repassa para os leitores sua experiência ante os acontecimentos extraordinários. Vânia Pimentel (2002) complementa essa idéia dizendo que o Fantástico é “... tudo que escapa à compreensão comum, lógica racional, ou, ainda, o que gera hesitação, medo angústia, conservando-se a dúvida até o final, condição indispensável ao gênero” (p. 20). Irlemar Chiamp endossa todas as afirmações elencadas acima:
A vacilação do leitor entre uma explicação racional dos fatos narrados (o fantasma como alucinação, por exemplo) e uma explicação sobrenatural (os fantasmas existem), a impossibilidade de optar por qualquer das alternativas, constitui o dado objetivo que se projeta no discurso como questionamento das duas ordens que o leitor conhece: a natural e a sobrenatural. Os limites de ambas as normas, de ambos os códigos, são relativizados, pela irreconciliação dos fatos narrados, seja com a razão, seja com a não-razão (CHIAMPI, 1980, p. 55).
Outra caracterização dessa espécie de narrativa são os topoi góticos. Imagens de monstros, fantasmas, igrejas velhas, casarões antigos, o escuro, e outras de campo semânticos afins ajudam na configuração do Fantástico nesse tipo de obra.
O propósito deste trabalho, além de destacar os elementos supracitados na obra de Mia Couto, A Chuva Pasmada, a classificará como Modo ou Gênero Fantástico. Na Literatura, segundo a visão aristotélica, existem três modos o Lírico, o Narrativo e o Dramático. Dentro desses, há os gêneros, por exemplo, no Narrativo: o conto, a crônica, o romance, a novela. Notadamente o Modo engloba os Gêneros que são desse modo categorias menores.
Quando se fala do Fantástico surge sempre a dúvida quanto a sua classificação, principalmente nos dias atuais. Tem-se então, que, para ser classificado como Modo o evento insólito ocorra sem a necessidade de uma estrutura que o configure como um texto Fantástico. Diferentemente na narrativa como Gênero o sobrenatural terá do começo ao fim do relato elementos da narrativa que o manterão como Fantástico.
A Chuva Pasmada: Modo ou Gênero Fantástico
É comum encontrar nas obras de Mia Couto narrativas que mostram a situação do povo moçambicano no período colonial e pós-colonial, uma das características desses relatos é retratar o misticismo e sua influência na cultura africana, mantendo com isso, a identidade de um povo. Nas palavras de António Martins (2008) “... é intuito do autor criar uma literatura que tem como meta o encaminhamento do país (Moçambique) rumo à identidade...” (p. 73), essa identidade será construída a partir da afirmação da oralidade e da presença de elementos lendários e mitológicos.
A obra em análise não foge dessa característica. A Chuva Pasmada é a reconstrução de uma lenda – a lenda de Ntoweni: o surgimento do rio – e sua ressignificação em um novo contexto, período que o rio já existe, porém a água está suspensa no ar, sendo chamada pelo narrador de chuva pasmada, dando início à narrativa.
Tudo começa quando a chuva deixa de cair como normalmente acontece ao que a ciência denomina ciclo da água. Como em um ciclo a história das Ntoweni retorna, fazendo com que toda uma lenda seja revisitada e reconstruída, agora de uma forma moderna, contudo, o que permanece é a presença da água como agente principal na consolidação e desenvolver dos fatos narrados.
O narrador de A Chuva Pasmada faz parte da história, podendo ser denominado narrador intradiegético, uma das chaves para a classificação do romance como fantástico, embora isso não seja a principal característica, além disso, há a presença dos topoi que a configuram como uma narrativa do Gênero Fantástico: o misticismo que se entrelaça com a história, a varanda como símbolo da ligação entre o terreno e o celeste, a mina que faz lembrar a escuridão, a igreja que a tia do narrador freqüenta como a presença do gótico e outras de campos semânticos que levam à manutenção da narrativa como insólita.
As narrativas que têm como tema o fantástico sofreram uma mudança em sua estrutura, antes, nos séculos anteriores, essas narrativas mantinham uma estrutura quase padrão para ser denominada literatura fantástica, tanto é que Propp (1984) tentou a formulação de “uma morfologia, isto é, uma descrição do conto maravilhoso segundo as partes que o constituem, e as relações destas partes entre si e com o conjunto.” (p. 25).
Atualmente, as narrativas fogem do padrão clássico de configuração do fantástico. Por isso, muitos estudiosos sentem a dificuldade ao classificar determinada obra que tenha um evento sobrenatural em seu conteúdo como Modo ou Gênero Fantástico. Uma das características que é mantidas nas modernas narrativas do fantástico é a hesitação e A Chuva Pasmada não fica de fora dessa nova forma de conceber o insólito.
A hesitação se dá em vários momentos, no início as personagens até riem do acontecimento insólito, o primeiro a demonstrar indagação sobre o fato é o pai quando diz “ – De onde vem isso? –” (COUTO, 2004, p. 08). A partir desse ponto abre-se possíveis respostas para a hesitação, segundo o avô “– Deve ser feitiço –”, para a tia um “castigo de Deus” (p. 17), teríamos então, fantástico maravilhoso; a mãe do narrador sugere “são fumos que vêm da nova fábrica” (p. 09), mudando rumo o da narrativa para fantástico estranho.
Quando o leitor tenta desvendar a que classe do fantástico pertence a narrativa, se for levada em consideração a perspectiva de Todorov, surge outro fator para aumentar a dúvida: a lenda de Ntweni. Uma lenda que será a amarra para a tessitura textual que se torna A Chuva Pasmada a partir do relato do avô. Para Gianluca Miraglia:
A idéia de uma relação de continuidade entre lenda e fantástico, em que o segundo seria uma evolução da primeira, parece por em causa a abordagem crítica que considera fantástico um modo narrativo moderno, cuja gênese enraíza naquela profunda e radical transformação de modelos culturais que afecta a civilização ocidental às portas do século XIX, em conseqüência do afirmar-se duma visão do mundo secularizada que estabelece uma distinção nítida e rigorosa entre natureza e sobrerenatural (MIRAGLIA, 2007, p. 55).
Portanto é estreita a relação da lenda com o fantástico fazendo com que a obra em questão não fuja desse viés. Segundo o avô, a lenda conta que o povoado que viviam não tinha água em nenhum lugar, somente no reino vizinho, mandaram Ntweni buscar água, mulher de rara beleza, logo encantou o imperador que a proibiu de sair de seu reino, e se por a caso saísse morreria, ficou e se deixou abusar. Certo dia, cansada da prisão e com saudade da família, conseguiu escapar levando consigo uma cabaça cheia de água que caiu, ao ser atingida por uma azagaia, tornado-se em uma serpente azul e formou o rio.
Como na lenda o que causa toda a situação que está passando a família do narrador é a água, e essa mesma água que fará com que a mãe vá à fábrica em busca de uma resolução para o ocorrido, pois a terra estava ficando seca, como na lenda. Há uma mudança na vida das personagens, o menino que deixa de ser pasmado, a tia que cria coragem e vai embora, a mãe muda o jeito de ver o mundo, o pai que desde a mina não vivia, passa a ter ciúme da mulher e luta para reconquistá-la, o avô que estava secando, agora aprende a morrer e vai para junto de Ntweni, na outra margem do rio. Depois da morte do avô a chuva que estava para começou a cair, indicando que aquela água era a Ntweni dita pelo velho e a água volta ao seu ciclo normal, assim como a vida das personagens.
Quanto à sua classificação, A Chuva Pasmada não poderia ser uma narrativa que configure o fantástico como Modo, para que isso ocorra deveríamos estar diante de uma narrativa que se manifesta um elemento insólito, mas essa manifestação não é ocasional, incidental, ou seja, que essa manifestação não interfira na narrativa, mas seja um dos nós. Segundo Filipe Furtado (s/d) “Recobre, portanto, uma vasta área a muitos títulos coincidente com a mesma esfera genealógica usualmente designada em inglês de fantasy”.
Pode-se dizer, portanto, que a obra em questão pode ser considerada uma narrativa do fantástico como Gênero, já que mantém certa estrutura, fechada, não como o fantástico clássico, mas como a nova roupagem que ganhou o fantástico com o decorrer do tempo.
Referências bibliográficas:
CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.
COUTO, Mia. A Chuva Pasmada. Lisboa: Caminho, 2004.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980.
_______________. s.v. "Fantástico (Modo)"; “Fantástico (Gênero)”, E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, <http://www.edtl.com.pt>, consultado em 21-03-2011.
MARTINS, António. O Fantástico nos contos de Mia Couto. Porto: Papiro Editora, 2008.
MIRAGLIA, Gianluca. Da lenda ao fantástico in: SIMÕES, Maria João. O Fantástico. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa/ Faculdade de Letras, 2007.
PIMENTEL, Vânia. Narrativas do Além-Real. Manaus: Editora Valer, 2002.
PROPP, Vladimir Iakovlevich. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.
TODOROV, Tzventan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2010. |