A poesia de Adriana Zapparoli é um desafio para o leitor. Não há conforto nem acomodação. Estamos a todo o tempo sem saber onde pisamos ou mesmo sem saber se de fato estamos pisando. Apesar disso, parece haver um prazer secreto nosso em continuar a ser guiado nesse seu estranho jardim de esquiva botânica. É o que sugere a leitura do seu último livro Violeta de Sofia. Como os dois primeiros – A Flor-da-Abissínia e Cocatriz – seu texto é curto e apresenta uma sintaxe descontínua. Muitas imagens se aproximam de uma ciência botânica poética a que não serão indiferentes nomes científicos em itálico e repaginado latim. O inusitado é que alguns dos recursos que Zapparoli lança mão em Violeta de Sofia – entre eles, uma grande fratura discursiva, a presença de caracteres do texto coloridos (não em vão: a cor é violeta) e um corte violento do verso – não apontam necessariamente para determinada perspectiva destrutiva, como acontece muitas vezes a autores que assimilaram certos recursos frequentes nas vanguardas das décadas de cinqüenta e sessenta. Aliás, nesses autores, tal perspectiva destrutiva esvazia o que naquelas vanguardas é impacto e crítica. Em mão contrária, Zapparoli faz uso desses recursos com uma leveza que os desautomatizam.
O poema, o livro, é formado por uma sequência numerada de textos que inicialmente flagra e investiga uma flor a partir do voo de uma borboleta. É como se uma sonda Cassini (de fato da NASA) sobrevoasse a flor e dela fizesse um retrato analítico, mas o que está em jogo é a própria natureza da análise: “sonda cassini localiza / fonte de gelo em flor de papoula. / no canto de inverno, ela, violeta.” O texto é descritivo e ao sê-lo lança mão de um vocabulário que também é científico, mas não só. As imagens se misturam e, principalmente, perdem a hierarquia que a especificidade classificatória dos nomes exigiria: “épico. é o seu pescoço: uma tora com osso e / úvula em beira de feltro / de cadeira e ulna, em pêlo, em urso. Há um bico / de anatídeo (diria pato) ou ornitorrinco para simplificá-lo”. Um dos méritos do livro é o de não localizar no poema o próprio poema, isto é, a não ser indiretamente o poema aparece como matéria de si mesmo. No trecho citado, a descrição é antecedida por um “épico” que é a máxima referência interna a que esse poema se permite. Fora isso, o que vemos em Violeta de Sofia é o desandar da própria possibilidade de análise, encenado criticamente a partir de dentro de alguns mecanismos de descrição e também da classificação científica. Não bastasse isso, literalmente brotam desses mecanismos outros recursos que os tornam relativos como acontece na sequência: “é esse tédio, da raça de cão / pastor escocês de porte médio, / áspero bobtail, em boca de ralo”. Simplesmente, a descrição é interrompida pelo tédio, que por ventura ela mesma – a descrição – terá gerado; e assim feito flagram-se imagens que versam sobre, como dito, características caninas que não se fundem metaforicamente às imagens anteriores em torno da violeta: o que poderia acontecer com outros poetas, mas não com Adriana. Se seus poemas, nesse caso específico, deslizassem para o metafórico fatalmente cairiam naquela perspectiva destrutiva e esvaziada de um discurso líquido que a tudo equivale e ao mesmo tempo indiferencia.
Por mais esquivos que esses textos sejam, eles não nomeiam um mundo em que tudo se resuma a textos e nomes. Seu horizonte é o da realidade táctil, olfativa, visual em que as coisas não se equivalem justamente por serem concretamente contraditórias. Depois das imagens caninas, surge “a indiferença dum índio dizendo: – o rato / trouxe o milho / mais o amendoim, a fúria e a pinta, / a jaguatirica...”. E então, depois desse tour de force, o poema retorna, parece, à flor inicial: “e // para dentro da maloca esse sentir / ci-mento-”. Destaque para o isolamento gráfico desse conectivo “e” que funciona menos como adição que como justaposição, não fundido as imagens, mas colocando uma ao lado da outra. A flor, fechada em si mesma, com a realidade em volta contrastante como que, endurecida, se protege do risco da metáfora. Mas, ao mesmo tempo, só pôde correr esse risco, porque foi capaz de sentir essa mesma realidade circundante. O jogo verbal “sentir / ci-mento-” soa quase ingênuo na sua separação de sílabas (sentir-se, cimento e sentimento), mas é eficaz no que sugere: expansão e contração e ainda expansão (com seu último hífen). Não será esta habilidade da violeta o seu heroísmo, o seu sentir-se “épico”?
Não será em vão lembrarmos de outra flor que nasce onde não deveria nascer. O que Zapparoli aprende em “A Flor e a Náusea” de Drummond é que a flor, “uma pústula em espaço físico”, é tão real quanto o asfalto em que nasceu. O texto de Violeta de Sofia continua em suas metamorfoses entre o descritivo, o científico e o abismo circundante. Quando a realidade do texto não basta, é preciso voltar à realidade daquilo que não seja só texto, mesmo que essa outra realidade seja impossível ou apenas difícil, como sugere os melhores momentos do texto de Zapparoli. Em resumo, as dificuldades não são apenas nossas, mas também da poetisa e do tempo em que vivemos.
Porém, quando entramos nesse jardim, não será necessário abandonar toda esperança como os sinais, no mundo, muitas vezes deixam entrever. Porque do livro ouviremos: “não parta, diz sofia”. E continua: “meio disso tudo, sofia continua sua vida”. Precisamos ouvir “sofia”, ou seja, precisamos não ir embora: “não parta”. Com ou sem ciência, ela e sua violeta falarão menos de cimento e mais de sentir-se. Já no interior do jardim o poema nos colocará: “... ainda... em espaços sensíveis onde somos / transparentes com leves tons purpúreos...”. E o conhecimento ficará menos opaco e, como nas melhores leituras, seremos mais abismo. |