Um dos livros de poesia mais interessantes que li nos últimos tempos traz o título miasmas, de João Moita (publicado pela Cosmorama edições em 2010), que o próprio poeta teve a amabilidade de me fazer chegar.
Ao longo da leitura deste livro reparamos, imediatamente, que João Moita é um esmerado trabalhador da palavra poética, um senhor do seu ofício cantante, um poeta que sabe da sabedoria do exercício da linguagem.
Poesia da palavra rigorosa (poemas na sua maior parte curtos, de linguagem concisa) o seu discurso é visceral, acutilante e violento (Eu pronuncio-me apenas sobre o que é do domínio da agressão) de uma beleza convulsiva (A beleza é uma hemorragia que bebo / amargamente). Fala com uma voz de veias acutilantes ; que é alimentada a seringas/ do alto da contrição . É uma poética nascida do sangue.
Vejamos:
A palavra com sangue
a palavra sangue
dita
atirada com sangue e espasmos
como coração exangue
com o sangue sufocando a voz
e a voz encantando ainda já sem voz
onde eu estou como a descoberto para cantar por baixo.
Todo este livro é percorrido igualmente por uma fabulosa negatividade abissal onde Tânato está presente : Posso começar pela minha morte ; [ ... ] entoo um canto fúnebre. Regresso de todos os açougues onde testemunhei / o aço refulgente ; [ ... ] possuo a beleza como a um feto roxo ; a coroa é um nervo apodrecido na cabeça [ ... ] . E aqui transcrevemos na íntegra o poema XXIV:
É o começo do mero jogo da morte,
o jogo do esforço.
Torção do caos ao rés da espinha.
Esta é uma ferida que sutura pelo excesso de sangue,
esta é a abertura para o excesso de zelo.
A virilha do mundo expeliu o seu filho.
Se me calo,
ouço o ferro,
a pulsação vibrando.
Um único vocábulo líquido
distribui a morte e o seu hálito
a jasmim.
Estes 32 poemas lembram uma caminhada pelas escarpas dos limites, sempre sob o perigo da queda, lugar onde se respiram os miasmas (emanações mitificas ou provenientes de uma doença contagiosa) e onde vamos encontrando imagens, versos e vocábulos desesperados de uma violência lancinante e pulsante, mas fabulosos.
Podemos dizer que há nesta poesia uma descrição do desamparo e da fragilidade existenciais e que há nela, igualmente, um desejo implícito de re – ligação, ou seja, de integração no cosmos e no mundo. Há nela de facto uma forte religiosidade, porquanto exprime (implicitamente), como acontece nos versos 1, 11, 15 do poema X, o desejo saudoso de re – ligação. No entanto a impossibilidade de se atingir essa integração é evidente e traz consigo um sentimento de exílio e vazio existenciais, a expulsão do paraíso uterino ( A virilha do mundo expeliu o seu filho ). O medo é uma constante. O eu lírico encontra-se em permanente fuga: A teoria do medo enuncia-se de boca açulada [ ... ] ; o medo, definitivo, instigando-me sempre. E Em nome de nada./ Do êxtase recolho a nova moral. / De tudo fujo [ ... ]. Ou ainda Os dedos inclinam as suas sondas / para os trilhos do medo.
Pela voz deste eu lírico vislumbramos a imagem de um anjo caído, ou um Édipo, abandonado a si mesmo (nado morto vivo da orfandade), rumando de terra em terra, um desesperado, um culpado sem culpa. Incapaz de se reconciliar com o mundo, de se integrar no mundo, ou seja, penetrar no grande silêncio que é Deus, ele reconhece que Deus não receberia o meu amor em holocausto
[ ... ]; Deus não saberia alentar o meu esquecimento. Isto porque a consciência do homem abre um rasgo, uma dicotomia entre ele e o mundo, entre ele e Deus: a crença não é possível.
A consciência que o homem tem do mundo e por sua vez do tempo não lhe permite comungar da unidade do mundo (nem de Deus que se encontra fora do tempo) como por exemplo o animal. O animal, não tendo consciência do mundo nem do tempo, está dentro do mundo e do tempo, é puro, encontra-se em comunhão com Deus. O animal desconhece a dicotomia, ou seja, o resultado da consciencialização: sujeito/objecto.
O amor que é o ponto mais alto do humano, porque unificador, seria uma das possibilidades de o eu lírico re - encontrar um lugar onde estivesse em casa, uma guarida, mas também o amor é volúvel e precário pois mesmo o amor / às vezes / se põe ao redor, sofre as flutuações do espaço e do tempo, é só um instante nesse espaço/tempo, ou seja, também ele é só um ponto de passagem, um anjo que o tempo torna um cadáver, precário tal como a vida (nascer é começar a morrer):
A vida está aqui de passagem
e mesmo o amor
às vezes
se põe ao redor.
Um anjo é um cadáver sensível.
Consciente da incapacidade de se reconciliar com o mundo, de atingir aquele aberto de que Rilke fala na 8 elegia de Duino, o eu lírico toma contacto com a realidade por meio da transgressão (podemos dizer que a consciência que o homem tem da sua própria existência é uma transgressão, porquanto essa consciência separa-o de Deus, do animal e da natureza).
Toda a linguagem deste livro é transgressora, dado que vem dos limites humanos, das margens, que neste caso são o centro. A sua luz irrompe das profundezas obscuras, das primeiras pulsões irracionais,do ímpeto dionisíaco onde a língua sangra pois: À face do poema chegam irrigadas de sangue: / o furor do mundo em um edema / e erupção; As sombras do meu ventre são relíquias do tempo [ ... ]; O açougue é um lugar de produção; É onde a língua sangra. / Esta é a força que conduz o canto. Ou ainda: Para que o sangue não arrefeça na clausura das veias: / firo-me. / Ínvias são as primícias da transgressão.
É nesta força transgressora (embora ínvia, pois que tal como a própria vida não é por si mesma explicável, nem leva a lugar algum) que o poeta encontra, por meio do cântico à beira dos limites, sempre pulsante, uma possibilidade, um caminho para a libertação, uma promessa, a confiança reencontrada para avançar ao longo das escarpas abissais, para, como Sísifo, voltar sempre e sempre a carregar a pedra pela encosta acima. E assim o poeta diz : Venho para anunciar que tudo contribui / para a hipóstase do recomeço. Deste modo a negatividade assume um tonos positivo.
A transgressão de que falamos é inerente a esta poética, acreditamos tratar-se mesmo de uma necessidade. Pois sem esse impulso transgressor, ela perderia a sua potência e por sua vez a situação ficaria frágil:
Confio-me às minhas transgressões.
Sempre que me afasto dos seus desígnios
a situação oh fica tão frágil.
Podemos ver neste curto poema uma súmula do livro, o canto transgressor em nome do nada, a súmula da viagem que é feita através desta poesia, uma viagem em confronto com a perda irreparável que acontece a cada passo da existência (pois nada permanece, tudo se esvai: (panta rhei), rumo à morte (posso começar pela minha morte ), como já dissemos, sempre à beira dos abismos, uma viagem desesperada que coloca diante dos nossos olhos a fragilidade e o vazio da existência humana, os miasmas que se libertam da fragilidade da existência e nos levam a presenciar o mistério horrível, que nos envolve, bem como a incapacidade de nos podermos situar dentro do mundo, a ferida aberta (A ferida põe o corpo em perspectiva) que só a transgressão poética permite agrafar. A transgressão que é o cântico poético, ele mesmo. Pois este cântico vem da transgressão que se apoia naquele desdeus disse. / E eu venho apoiar-me à sua quietude muda.
A voz do silêncio. A revelação do irrevelável. Transcendência vazia que o cântico transforma em presença habitável.
Até certo ponto este livro segue as pegadas do discurso da poesia baudelairiana e rimbaldiana porquanto há nele a potência transgressora do exercício do cântico revolto ( à margem ) corrosivo e abissal:
O cântico-livor embrutece,
sobe do fundo desvitalizado,
prepara as sevícias:
só a cegueira desnuda.
Ainda aqui estou para dizer que o taumaturgo opera
nas estrias do pneuma com o seu estilete.
Vê-lo é segurar o punhal embotado da beleza.
Ainda aqui estou para dizer que o cântico-livor se levanta
implacável de tudo isto,
mergulha e emerge de toda a destruição,
estende ainda alto e longe e espaçosamente e internamente
e cristãmente e merdosamente
a flor-de- lis.
Poesia do desespero, das tensões nocturnas, ctónica, violenta e destrutiva (tudo procede da violência) transgressora, a voz taumaturga que habita este livro irrompe da noite visceral, é uma luz prodigiosa, uma luz que ilumina as profundidades irracionais, uma luz que de tanto brilho cega, uma luz que não deixa o leitor incólume, que o marca com o seu sangue espúrio, com a lâmina do punhal embotado de beleza, com o contágio da sua combustão lírica, a obscura-luz da própria matéria.
NOTA: João Moita, poeta português, também cantor/guitarrista do grupo Rock: The Daughters of Lot (www.myspace.com/thedaughtersoflot), nasceu em Alpiarça em 1984. Publicou dois livros: O vento soprado como sangue (2009) e Miasmas (2010), ambos pela Cosmorama Edições. Blogue: http://www.joaomoita.blogspot.com/
7 poemas do livro miasmas:
I
É uma voz de veias acutilantes:
devolverei ao silêncio a sua mais sórdida cadência.
IX
A ferida põe o corpo em perspectiva.
Eu levanto-me triunfal para o crânio do dia
onde mãos divinas remexem
inquinando o culto.
A efemeridade dura.
X
Deus e Deus sabem que me agarro furiosamente,
que amo o fogo e o fogo atado à solidão.
Olho o mundo com os globos sob os cascos maduros.
Hoje sou uma revelação metódica:
traio a disciplina.
Canto com o bafo de todas as disposições.
Vi sobre as córneas a besta erguida:
as garras infectadas na pele de Deus,
o caldo rutilando.
Ambos sabiam:
era a Grande Obra.
E eu atava-me aos elementos.
Sublimava-me.
Era na terra uma ocultação.
Deus e Deus amavam-me furiosamente
e eu sabia que me agarrava ao fogo e ao fogo de passagem.
Os pés com que corro são cascos que florescem
sobre os olhos.
A beleza é uma hemorragia que bebo
amargamente.
Hoje canto com uma disposição muda.
XIV
Criarei liricamente a combustão de que
a luz é só a transparência mais visível :
por dentro há carne revolvida.
Fez-se uma sangria nesta fábula -
o poema sacrifica todos os objectos
à sua curva anémica.
Não usarei outro artefacto que as escórias
desta metalurgia vascular.
A sedição é aqui ao meio.
O poema à volta.
Um grito eleva o hálito da distinção:
se ele queima é por baixo da linguagem.
XIX
A minha veia poética é alimentada a seringas
do alto da contrição.
Excita-me o que me definha.
O meu coração encolhe se usado como símbolo:
esta é a parábola da compensação.
O sujeito lírico afila-se em sua índole jazente,
verte uma veia,
aguarda do alto o alimento,
ergue-se nas patas –
estamos no domínio da moralidade.
Eu pronuncio-me apenas sobre o que é do domínio da agressão,
da beleza escorchada,
do bafo intravenoso.
Venho para anunciar que tudo contribui
para a hipóstase do recomeço.
XXX
Aqui sou o que respiga o sangue.
É um estímulo nocturno,
a ínvia música nocturna dos meus dedos,
a água música nocturna do meu sangue.
Está uma paisagem deslumbrante retorcida pela água,
o rosto em chaga,
as mãos entradas na contenção.
XXXII
Confio-me às minhas transgressões.
Sempre que me afasto dos seus desígnios
a situação fica oh tão frágil. |