ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A POESIA OU A LIBERDADE DA PALAVRA PLENA

 

 

Luís Costa

 

 

A poesia é um acto criador que nasce, em grande parte dos casos, de um sentimento de destruição ou do caos. Destruir e construir estão muito mais próximos um do outro do que muitas vezes possamos imaginar. E não haverá construção na destruição, ou na desconstrução? Pensemos, como simples exemplo, na tela primitivista ou pré - cubista : Les Demoiselles d’Avignon de Picasso. Aqui opera-se (pela primeira vez na arte ocidental) a uma espécie de desconstrução do objecto pictórico para que o possamos ver em todas as suas faces. Isto descobre-se sobretudo na mulher posicionada no canto inferior do lado direito da tela. A verdade é que com esta tela Picasso rompe com o princípio de unidade de construção próprio do estilo e pensamento clássicos. Podemos aqui falar de um rompimento com as regras da perspectiva, ou antes, de uma desconstrução ou violação da perspectiva. No entanto, embora existindo nesta tela uma desconstrução, ela é, ao mesmo tempo, uma construção porquanto é válida como obra acabada. O mesmo se pode dizer de muitos dos quadros de Paul Cézanne onde o inacabado faz parte do acabado, ou seja (embora isto possa parecer um paradoxo), sem o inacabado a obra de Cézanne não existiria como acabada.

Também com a poesia se pode passar o mesmo: para se ser poeta com P grande é necessário usarem-se todas as palavras. Mas também não ter medo de destrui-las, construi-las, tratá-las bem, maltrata-las (a palavras não são coisas sagradas, não cheiram a incenso, no entanto também podem ser usadas para os tais ofícios sagrados).

 

Quantas vezes Camões não violou e maltratou a língua nos seus poemas, ou nos Lusíadas, para que assim nascesse uma nova linguagem? Muitos exemplos poderiam aqui ser dados. E não fizeram os poetas modernistas um fabuloso trabalho de violação, ou mau tratamento da linguagem? Por exemplo Pessoa nos seus poemas de índole futurista e Almada Negreiros, sobretudo na sua “ cena do ódio “ e também Mário de Sá Carneiro, entre outros? A invenção de neologismos bem como a quebra das regras sintácticas são uma constante no modernismo.

 

Vejamos uma passagem de um poema de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) onde a linguagem poderá ser considerada por certos espíritos puritanos como sendo violada e maltratada :

 

 

Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto mal sol rua,

Aros caixotes trolley loja rua vitrines saia olhos

Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua

Passeio lojistas “ perdão “ rua

Rua a passear por mim a passear pela rua por mim

Tudo espelhos as lojas de cá de dentro das lojas de lá

A velocidade dos carros nos espelhos oblíquos das montras,

O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua

o meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua.


( do Poema: A Passagem das Horas )


Neste poema Sensacionista (onde se descobrem os princípios de quebra das regras sintácticas e do movimento vertiginoso tal como o futurismo o queria), Álvaro de Campos que tinha como divisa: “ Sentir tudo de todas as maneiras “,leva a quebra das regras sintácticas até às suas últimas consequências. E consegue criar assim um poema onde o eu lírico e o mundo circundante praticamente se anulam num mar de sensações: as palavras já não dizem nada, mas antes - elas são criadoras de um mundo vertiginoso e caleidoscópico. Aqui encontramo-nos bem longe de todas as regras de uma linguagem moralista, ou seja, da linguagem usurária do status quo. Aqui reina a criatividade total. A linguagem é um corpo vivo, criatividade para além de todas as regras do bom senso literário ou gramatical estático.

 

E nem queremos falar da poesia estrangeira com movimentos como o expressionismo, o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo, o letrismo, o concretismo etc. onde se opera muitas das vezes uma destruição verbal: linguagem fragmentada, estilhaçada, fracturada etc. própria do gosto pela experimentação linguística que é uma das grandes características das poéticas modernas.

 

A poesia não é uma coisa de falinhas mansas, ou só palavras bonitas, de festinhas na cabeça, nem é uma coisa de anjinhos e fadas de um romantismo fácil, burguês, de bilhetinhos a namoradas/os. Nem é só Amor. Nela também existem monstros e demónios, explosões, corpos desfeitos, bebedeiras, ódio, raiva, mastros quebrados, imperfeição, podridão, miséria, crueldade, ruínas etc.:

 


Torrões moles afrouxam o ferro
Sangues filtram flocos de limo
Crostas migalham
Carnes lamam
Amamentar estua nos destroços
Entrematanças
Chispam
Olhos de crianças

 

(“ Campo de Batalha” de Augst Stramm, trd. de Augusto de Campos, transcrito do blogue do poeta Cláudio Daniel: http://cantarapeledelontra.blogspot.com/2009/09/tres-poemas-de-august-stramm.html )

 

A poesia tem uma dimensão metafórica, transfiguradora: ali as palavras atingem um sentido outro, elas criam uma realidade própria, um corpo autónomo: o poema. E quanto às palavras mais grosseiras do dia-a-dia, o poeta não deve ter receio algum em usá-las, pois elas “ purificam-se “ dentro do poema, atingem uma outra dimensão, uma dimensão estética. Dentro do poema elas existem como uma força de intensidade estética. Vejamos um caso:

 

 

“ Tu pensas que os cardeais

não se masturbam

que não vêem telenovelas


[... ]


Não, eles nunca lêem livros pornográficos


[... ]


Nunca acariciaram um pénis,

Nunca o desejaram túmido e ardente

Na sua boca casta. “

[... ]


( António Ramos Rosa )


Palavras como “ masturbam “ ou “ pénis “ que podem ser vistas no dia a dia como palavras grosseiras dão ( para além do sentido critico nelas existentes ) a este poema uma intensidade estética, que sem elas ele não atingiria e, por este meio, elas são mais do que o que são na boca da generalidade, isto é, tornam-se outras, ou como já dissemos atrás, purificam-se de todo os seus conteúdos pejorativos, de ordem moralista . Pois que a poesia, tal como a verdadeira arte, está situada para além de quaisquer interesses de bom comportamento, morais, ou seja, para além de bem e mal.

 

O grande Eugénio de Andrade, que nem sempre foi assim tão grande, escrevia num dos seus, a nosso ver, mais fracos poemas, o seguinte:

 

 

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão, crueldade,

alguns lamentos

muitas espadas


É urgente inventar alegria,

Multiplicar os beijos, as searas,

É urgente descobrir rosas claras e rios

E manhãs obscuras.


Neste poema, demasiado pessoal, de um lirismo menor, Andrade procura restringir o mundo à sua imagem. Quer um mundo da paz e do amor, um mundo cor-de-rosa. Muito bem, isto pode ser de facto o nobre ideal de um humanista, ou de grande pacifista, ou de um bom homem por natureza, mas isto pouco ou nada tem a ver com a poesia. O que Andrade aqui defende, poderíamos dizê-lo com mais ênfase, força e veracidade num discurso humanista ou político.

A verdade é que nos maiores poemas do mundo nunca se omitiram quaisquer palavras. A grande poesia sempre precisou e precisará de todas as palavras.

 

Outro grande poeta português David Mourão Ferreira, numa resenha dedicada ao livro “ Até Amanhã “ de Eugénio de Andrade nota, a certo passo, falando do poema de que atrás falámos e transcrevemos, o seguinte :

 

 

Destruir“ certas palavras “, destruir “ódio, solidão e crueldade“ – será decerto um excelente programa humanitário. Mas quanto perderá a poesia? Como nos parece mais amplo e mais fundo o ideal de um Motherlant: “ garder tout en composent tout “! O ódio, a solidão, a crueldade, têm sido desde Sófocles a Shakespeare, desde Milton a Baudelaire, a matéria de algumas das mais altas obras do espírito europeu. Sem paradoxo: são uma nobilíssima herança. Que só ombros vigorosos a possam sustentar – é outro caso. Mas não é verdade que já começam a tornar-se fatigantes os óptimos sentimentos de que anda infestada certa poesia contemporânea? “

 

( Do livro: Vinte Poetas Portugueses “, colecção ensaio, edições nova ática, 2. edição, página 183/84 )


Concluindo, diremos: não haverá mais insustentável mau trato da língua poética do que praticar-se uma poesia moralista, hipócrita, dos óptimos sentimentos, muito certinha, dentro de normas e regras de mentalidades restritas, correctamente política, que sufocam a liberdade poética, ou seja, a explosão da liberdade da palavra - criadora por excelência.

 

 

Züschen 2009

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