ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

VIAGEM AOS SEIOS DE LUIZA

 

 

Luis Maffei

 

 

A vaga semelhança entre os nomes Luiza e Duília provoca-me um bocado. Mas me provocam de modo ainda mais agudo os seios, lugar de iniciação e certa verdade muito do corpo. Feminino, claro. Erótico, evidentemente. Verdade de freqüência máxima, verdade da ordem mesma da protuberância. Pela mão de Duília, ou melhor, por seus seios, o jovem José Maria encontra-se diante duma revelação: “A procissão subia a ladeira, o canto místico perdia-se no céu de estrelas. De repente, o séquito parou para que as virgens avançassem, e na penumbra de uma árvore, ela dá com o olhar dele fixo em seu colo (...), e com simplicidade, abrindo a blusa, lhe disse: – Quer ver? – Ele quase morre de êxtase. Pálidos ambos, ela ainda repete:– Quer ver mais? – E mostra-lhe o outro seio branco, branco... E fechou calmamente a blusa. E prosseguiu cantando...”[1].

 

Na procissão, uma verdade “só/ do corpo, e livre de outra crença”[2]. Acabo de citar um fragmento de um poema assinado por Gastão Cruz, companheiro de Luiza em Poesia 61, após ter citado nosso esquecido Aníbal Machado, que morreu em 1964 certamente sem sequer ouvir falar numa poeta portuguesa jovem, então autora de umas poucas coisas. O conto de Aníbal é “Viagem aos seios de Duília”. Fico-me pela imagem da procissão porque Duília, ali, assume um virginal lugar de erótico poder, deslumbrante e genuíno. E são essas palavras em articulação talvez precária que me fazem querer viajar aos seios de Luiza, poeta de erótico poder, mulheril, deslumbrante e genuíno, corpo, em poesia (fora dela não sei, nem vem ao caso), dono de seios fartos e fartamente disponíveis para mim, José Maria, ou melhor, Luis: alguma identidade, do nome ao corpo, das letras à mastolatria, deve fazer-se por aqui.

 

Jorge Fernandes da Silveira abre, “à sua maneira”[3], a “blusa” de Luiza Neto Jorge – com a maliciosa anuência virginal da poeta: “Na realidade, por escrever poemas em que passa o sexo a ser eixo (...), Luiza Neto Jorge tem muito a falar sobre a cópula dos sentidos, quero dizer, as cópulas de sentido entre os gêneros masculino e feminino” (p. 13). José Maria, ou melhor, Luis, solicita, na fala, apenas um grafema, o a precisamente, para mudar de “eixo” e de “sexo”. Há, sim, relação sexual, há sim um “sítio” “a um só tempo fatal e vital” (p. 13), e Jorge põe a “blusa” de sua (agora nossa) amante no chão do quarto. Vestidinha, Luiza assume uma nudez máxima do texto e da própria posição sua enquanto poeta: “Eu não sou senhora eu não sou menina” (p. 28). “(...) Quem és tu? que esse estupendo/ Corpo certo me tem maravilhado?” (Lus, V, 49, 3, 4)[4]: a generosa dona de novos cantos, feitos “recantos”, dona de um “Poder que vos desfoca, dinamite” (p. 87). Dinamene em estado de Bárbara a vir-se? Ok, mas certamente explosão, gozo, uma das “cópulas de sentido entre os gêneros masculino e feminino”, “entre os gêneros” épico e lírico, entre os nomes da poeta que não é “senhora” nem “menina” e seu xará que, bem lido, torna-se mais que interlocutor, torna-se, porque já é, máquina de prazer.

 

Luiza é portuguesa, Camões é português, e “Ele-e-Ela sorriam ambos nus para toda a gente” (p. 113) perto do fim dos Dezanove recantos. Mas Camões – autor de diversos poemas em castelhano –, se nos seios de Luiza, lembra-me algo nada hispano e tão brasileiro como a edição que comento: certo uso da expressão espanhola, descritora de um ato fálico-mastolátrico: “A silabar que o poema é estulto/ o amado abre os dentes e eu deslizo;/ sismos, orgasmos tremem-lhe no olhar/ enquanto eu, quase a rimar, exulto” (p. 79): “SO-NETO JORGE, Luiza”. “quase”. Mas “amor é foda” (p. 83), esqueçamos qualquer “quase”, que só se dá no ato mesmo da rima, nunca perfeitamente possível. Ou perfeitamente possível, mas Luiza permite-se o intervalo para que ele possa ser ocupado pela memória de Luís, a máquina. Ou por Luíses e Josés Marias quaisquer que saibam bem de uma prática místico-amorosa, Luíses e Josés Marias animalizados e, portanto, humanos, demasiado humanos: “Vinde animais místicos/ ou os místicos com seu santo atento/ os que escoiceiam no pino do outono/ hermafroditas/ (...)/ os homens por equívoco” (p. 59), “Outra genealogia”. Fica claro na escolha antológica de Jorge e Mauricio que essa poesia, como gosto de pensar desde algum tempo, é de aprendizagem.

 

Aprendizagem, por exemplo, da feroz conexão entre certa mística e certa, já está bem claro, erótica. E não é numa procissão que José Maria acessa os seios de Duília? Na iniciação erótica, a verdade do corpo. Na verdade do corpo, a liberdade em relação a “outra crença”, mas a crença outra de que o “equívoco” pode ser muito criativo. “Vinde animais místicos”, e misturemo-nos hermafroditamente ao corpo alheio, “Ele-Ela”. Com efeito, “amor é foda”.  Aprendizagem, eu disse? “O poema ensina a cair/ sobre os vários solos/ desde perder o chão repentino sob os pés/ como se perde os sentidos numa/ queda de amor (...)” (p. 64). Do chão não se passa, diz certa verdade popular; “da lenta volúpia de cair” (p. 64) chega-se, de fato, ao chão, mas assim: “quando a face atinge o solo/ numa curva delgada subtil/ uma vénia a ninguém de especial/ ou especialmente a nós uma homenagem/ póstuma” (p. 64). Aprendizagem: o “solo” pode ser ótimo lugar onde estar, desde que saibamos cair, e, no limite, deitar. Mas deitar com “curva”. E curvas tem Luiza, curvas têm os seios da poeta.

 

Disse eu de espanhola, digo, portanto, do “I” de “O poema”: “Esclarecendo que o poema/ é um duelo agudíssimo/ quero eu dizer um dedo/ agudísssimo claro/ apontado ao coração do homem// falo/ com uma agulha de sangue/ a coser-me todo o corpo/ à garganta// e a esta terra imóvel/ onde já a minha sombra/ é um traço de alarme” (p. 32). Revelação, os seios de Duília; um poema tão lúcido como o de Luiza, esclarecimento. E o dueto, desculpem, o “duelo” é sempre um dueto, desculpem, um “duelo”, é sempre entre dois. Quem abre sua própria veste é Duília, quem aponta o “dedo” é Luiza. E o homem, feita a aprendizagem da queda, deita-se (é deitado?), decerto de barriga para cima, à espera da espanhola, um admirável uso de seu “falo”. Mas quem fala? Eu, Luiza, quer dizer, Luiza, a “Ela” dum sempre “Ele”, dum sempre dueto, ou melhor, “duelo”. Sim, deitar assim é bom.

 

E é em “curva” semelhante que quero entender um uso de Jorge em seu prefácio, uso nada ingênuo porque se trata, Jorge, dum homem “por equívoco”, dum abridor de blusas e sentidos: “(...) desejamos (...) o maior prazer na leitura desses muito bem-vindos poemas de Luiza Neto Jorge” (p. 18). Não poderia ser mais luízica essa afirmação do “desejo” de “maior prazer”: que mais se poderia desejar? “Assim termina” (p. 112) a apresentação dum livro urgente, pois é urgente ler Luiza neste lugar que fala espanhola. Que comece, pois, uma série de quedas na visita a esse livro: “e duma varanda um pingo cai/ de um vaso salpicando a roupa de um bancário” (p. 84), “Acordar na rua do mundo”. A semeadura líquida do vaso e o ato de despertar, esclarecer e aprender dão-se ao leitor que queira realizar sua viagem aos seios de Luiza, já que suas blusas não serão “calmamente” fechadas: “Sempre viver incluiu andar percorrer voar/ de avião ou com os braços ou num ser de mais/ rodas que nos conduza/ a outro sentido ambulatório” (p. 91).

 

 

NOTAS

[1] MACHADO, Aníbal. Viagem aos seios de Duília. In — Melhores contos. Seleção de Antonio Dimas.  7. ed. São Paulo: Global, 1997. p. 62.

[2] CRUZ, Gastão. O Requien de Fauré. In — A moeda do tempo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006. p. 45.

[3] A apresentação do livro se intitula “Implicâncias: Luiza, duas ou três coisas, à minha maneira”.

[4] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Edição organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto editora, 1978.

 

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Luis Maffei é professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense. Como poeta, publicou, em 2006, seu livro de estréia, A, e, em 2008, Telefunken. Coordena, para a editora Oficina Raquel, uma série dedicada à novíssima poesia portuguesa, de nome Portugal, 0.

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