DO RISCO DE PENSAR
Luiz Costa Lima
Comecei
a escrever muito jovem. Só depois de publicar alguns livros,
compreendi que eles me haviam servido apenas de aprendizagem.
Os livros imaturos tenho-os guardados, mas até há pouco não
me arrependera de haver jogado fora os artigos que considerara
inúteis. Sobre minha decisão, pesara o comentário que ouvira
do saudoso Sebastião Uchoa Leite, acerca de minha primeira
contribuição a uma revista de qualidade. Já não recordo como,
o editor da revista Diálogo,
Milton Vargas, aceitara um artigo que fizera sobre Guimarães
Rosa (Diálogo, nº
8, 1957). Envaidecido com a escolha, dei um exemplar ao amigo.
Quando voltamos a nos encontrar, com a rude sinceridade que
nunca o abandonou, ele me disse: "Não é dos piores, mas também
não é dos melhores". Perdi o céu para entrar no inferno.
Nunca
agradeci a Sebastião como ele o merecia. Considerei aquele
artigo, como dezenas de outros, impróprio para ocupar algum
espaço. E o que fazia com os meus, repetia com os comentários
sobre o que escrevesse: não mereciam ser guardados. Só anos
depois, em conversa com Guimarães Rosa, percebi que não
adotara a melhor solução: dizia-me ele que as críticas que
não lhe agradavam, as colava de cabeça pra baixo.
Lembro
agora a lição tardia por conta de artigo que chamara "Quem
tem medo de teoria?". Publicara-o na revista Vozes
(novembro de 1975), e, em versão resumida, no jornal Opinião, no mesmo mês, do mesmo ano. Considerei-o em condições
de aparecer em livro, de 1981. Mas, lamentavelmente, não
guardei as críticas indignadas, acolhidas pelo mesmo Opinião.
Ao passo que minha intervenção fora motivada por artigos de
literatos maduros, que, pelos jornais, se queixavam do tempo
que os estudantes perdiam com textos teóricos, os que me
criticavam eram jovens, que começavam a aparecer. Seus
argumentos tampouco eram os mesmos: estes, ao lado de
responsabilizarem a teoria por os alunos de letras escreverem
mal, insinuavam
uma razão política: o ensino da teoria afastava os alunos de
letras e ciências sociais do empenho contra a ditadura.
A
recordação importa porque, havendo a teoria se mantido no
currículo depois de os militares saírem do poder, tudo
indica que conservamos a teoria sob suspeita. É o que se pode
supor ante a permanência da ausência da reflexão teórica,
entre nós. Para entendê-la, há de se considerar que ela não
é exclusiva ao campo da literatura, senão que extensiva às
ciências sociais e à filosofia da arte. Há exceções sem dúvida
- como o de A Inconsistência da alma selvagem (2002), do antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro, o do pequeno Schiller
e a cultura estética (2004), de Ricardo Barbosa -, mas
elas não abalam a pergunta: não é a formação intelectual
brasileira avessa à reflexão teórica? Embora eu saiba que a
teoria não se confunde com o exercício da crítica literária,
para que se pudesse contar com uma resposta fecunda seria
preciso que se dispusesse da abordagem sistemática de nossa
critica ou, ao menos, com ensaios de qualidade sobre nossos críticos
mais destacados. Na falta daquela e a extrema raridade destes,
temos de nos contentar com a plausibilidade da hipótese: à
nossa formação intelectual aborrece o empenho teorizante. E
as frases corriqueiras, "isso é teoria, deixemos de
teoria", adquirem outra dimensão. Elas claramente condenam
o que se entende como um blá-blá-blá enrolador. A teoria é
uma espécie de conversa estéril e metida a besta. Como ela,
entretanto, se mantém nos currículos de letras,
estabelece-se o antídoto: que seja ensinada como receita de
bolo - a teoria é uma receita a ser aplicada. Daí a preferência
editorial pelos diluidores: os raros livros de teoria que, de
fato, circulam entre nós são os que dizem muito pouco, quase
nada. Para entender-se o fundamento dessa prática, vale
recordar o que dizia Juan Bautista Alberdi, em 1842, na
abertura dos cursos de filosofia, em Montevidéu:
En el deber de
ser incompletos, a fin de ser útiles, nosostros nos
ocuparemos sólo de la filosofía del siglo 19; y de esta
filosofía misma excluiremos todo aquelllo que sea menos
contemporáneo y menos aplicable a las necesedades sociales de
nuestros países [...] (Alberdi, J. B.: 1846, 303)
Não
estranhe a citação de um estrangeiro, que escrevia em meados
do século XIX: a aversão à teoria, a promessa em torná-la
algo útil às necessidades sociais são extensivas ao
continente latino-americano. Sem ser exclusiva à literatura,
nela encontra seu desiderato porque, desde a independência, a
literatura tinha, como já observou Antonio Candido quanto ao
Brasil, um caráter empenhado. Tratava-se de, por ela,
investir as nações latino-americanas de um sentimento de
nacionalidade. Daí o caráter documentalista de que suas
literaturas se investiram. Isso é hoje bem conhecido desde os
livros de González Echevarría, Myth and archive. A theory of
latin american narrative
(1990), Flora Süssekind, Tal Brasil, qual romance?
(1984)
e O Brasil não é longe daqui. O Narrador, a viagem
(1990), Maria Helena Rouanet, Eternamente em berço esplêndido.
A fundação de uma literatura nacional (1991).
Documentalista, a literatura estadeava a prova de ser nacional
ou pela descrição da natureza e dos costumes ou pelo
sentimentalismo eloqüente de seus poetas. Além do mais,
documentalista ou eloqüente-sentimental, prosa e poesia
haviam de ser acessíveis, pois do contrário, ainda que não
contrariassem o nacionalismo engajado, não encontraria público
que a lesse. A produção era rala, o público, rarefeito e a
teorização, quando houvesse, necessariamente histórico-sociológica.
Dadas as condições, o estranho é que esse resultado não
fosse unânime. Mas, se não o era, as exceções se mantinham
bastante raras.
Não
é ocasional que os mínimos autores que não se enquadravam
naquele figurino fossem legitimados, quando o fossem, por critérios
tacanhos. Assim se deu com Machado de Assis, aceito pelo
casticismo de sua linguagem! Como a situação estruturalmente
não muda com a passagem para o século XX, assim se repetiria
com Jorge Luis Borges, acatado em sua terra só depois de
reconhecido na Europa. Tal reconhecimento, contudo, não
impediria que, ainda em 1955, um certo crítico o acusasse de
ser "conscientemente, el proveedor literário de toda una élite,
más o menos vinculada a nuestra vacunocracia" (Portantiero,
J. C.: 1955, 84).
Só
os casos de Machado e de Borges justificariam um exame
minucioso. Mas não é o momento de fazê-lo. Limitemo-nos a
anotar que, sendo poucos os produtores excepcionais, nenhum
deles ou teve uma produção crítica quantitativamente
extensa (o caso de Machado) ou que não a convertesse em uma
ensaística inteligente, mas não propriamente de ponta (os
casos de Borges e Lezama Lima). As primeiras grandes exceções
se apresentariam em uma parte da ensaística de Octavio Paz
- sobretudo seu estudo do "soneto em ix", de Mallarmé
(1968) e sua extensa reflexão sobre Sor Juana de la Cruz
(1982) - e pela obra de Haroldo de Campos. O mexicano,
contudo, sofreu as restrições por seu progressivo
conservadorismo político, enquanto Haroldo, que não podia
receber acusação semelhante, morreu antes que o esquema
tradicional fosse seriamente abalado. Se ele, assim como o
poeta e tradutor excepcional que é seu irmão, Augusto de
Campos, teve a sorte de contar com o apoio constante da
Editora Perspectiva, foi sempre posto de lado pela interpretação
oficializada da literatura.
Quando
dizemos que Haroldo morreu antes que o figurino
rotineiro tenha sido abalado, deixo escapar um certo tom de
esperança. Mas não será um otimismo excessivo? Para
desmenti-lo, ensaiemos uma mínima reflexão sobre o momento
presente. Hoje, convivemos com a descrença no documentalismo
e com a mediocrização generalizada da instituição em que
poderia se processar a mudança: a universidade. Além do
mais, a literatura - em todo o Ocidente e não só no Brasil
- tem perdido o público que fora o seu, entre o século XIX
e a primeira metade do século seguinte, para os meios áudio-visuais
e o desenvolvimento dos media eletrônicos. Assim,
diante dos escritores e do leitor que se mantêm ligados à
literatura, põe-se a alternativa: ou progressivamente
escasseiam ou se obrigam a refletir sobre o lhes importa.
Esperar pela modificação da política cultural do Estado ou
pelo revigoramento da instituição universitária parece uma
atitude próxima da insanidade. Só a motivação conjunta de
escritores e leitores, entre eles incluindo uns poucos
professores e pesquisadores, parece capaz de provocar o
desmantelamento do esquema rotineiro. Isso, por certo, não
implicará uma literatura necessariamente despolitizada, mas
sim a compreensão de que nacionalismo e identidade nacional são
valores sócio-políticos, e não critérios indiscriminados,
de mesmo peso para todas as áreas. Muito menos, para a
literatura e as artes. Se aceitamos com Carl Schmitt (Der
Begriff des Politischen, 1932) que a política se
configura a partir do par "amigo / inimigo", haveremos de
admitir que sua presença atravessa todo o campo das manifestações
humanas; mas, para ser eficiente, a forma seminal do político
precisa considerar a diferença de critérios pertinente à área
em que atua. Caso essa área mantenha por critério exclusivo
ou dominante o histórico-sociológico, ela, simplesmente,
abandona a possibilidade de se compreender a si mesma; o que
vale dizer, a se ver como subordinada aos valores de outra área.
Ao menos por enquanto, a situação que vivemos não justifica
otimismo algum. Ao documentalismo em baixa tem correspondido o
avanço de um folclorismo industrializado: divulgam-se as práticas
culturais até então marginalizadas, que então se tornam
passíveis de ser exploradas pela indústria cultural. O mesmo
apenas assume outros nomes.
Referências bibliográficas
Alberdi,
J. B.: "Ideas", republ. em Antología del pensamiento
de lengua española en la edad contemporânea, José Gaos
(ed.), Editorial Séneca, México, 1945
Portantiero,
J. C.: "Borges y la nueva generación", republ. em Contra
Borges, organiz. e introduz. por Juan Fló, Galerna,
Buenos Aires, 1978
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Luiz Costa Lima, ensaísta e crítico literário,
publicou Por que literatura (1968), A metamorfose
do silêncio. Análise do discurso literário
(1974), Mímesis e modernidade. Formas das
sombras (1980), Terra ignota. A Construção
de Os Sertões (1997), entre outros títulos.
Reside no Rio de Janeiro, onde leciona na UERJ e na PUC-RJ.
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