ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

CRIANÇAMENTO DAS PALAVRAS - FRAGMENTOS DO ENSAIO
'A TEOLOGIA DO TRASTE - A POESIA DE MANOEL DE BARROS


 

por Fabrício Carpinejar

 

Manoel de Barros  é considerado um dos maiores poetas brasileiros vivos da atualidade, com mais de 15 livros publicados desde 1937. Viveu grande parte da vida literária editando obras artesanais, de escassa circulação, caracterizado pelos rótulos de 'poeta do Pantanal', 'alternativo' e 'de fala torta'. Nasceu em Cuiabá (MT), em 1916. Mudou-se para Corumbá (MS), onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumbaense. Atualmente mora em Campo Grande (MS). Advogado e fazendeiro, foi reconhecido tardiamente como poeta, na década de 80, por críticos e personalidades como Antonio Houaiss, Millôr Fernandes e Ênio Silveira  e virou uma 'coqueluche' da nova literatura brasileira.  Hoje é editado em grandes tiragens e tem se destacado como um dos escritores contemporâneos mais premiados, com distinções como Jabuti, Nestlé e Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

Os títulos de sua trajetória antecipam a inclinação pelo improviso, elegendo os pássaros e o rumor do solo como seus protagonistas. Entre eles, destacam-se: Gramática Expositiva do Chão, Arranjos para Assobio, Livro de Pré-coisas, Livro das Ignorãças e Livro sobre Nada.

Seu universo não é nada urbano: anhuma, pacus, graxas, nervos, beija-flor de rodas vermelhas, gravanhas. O que resulta, a princípio, no efeito de estranheza para quem vive em grandes cidades. Ele é porta-voz de um mundo que não é habitual aos moradores das metrópoles. Um local ancestral, onde os seres miúdos e os animais silvestres reinam e compõem um particular bestiário. O cenário da qual parte sua voz é o da floresta, do mato embrenhado, das extensões dos rios.  Tudo se mistura num processo de troca e sinestesia.

A natureza é humanizada, a ponto de não a diferenciarmos do homem:

"O homem deste lugar é uma continuação de águas"

(LPC, GEC, p. 229 )

 

"A gente é rascunho de pássaro"

(MP, GEC, p.185)

 

O mote portanto não é o homem e sim o próprio lugar, no revezamento de chão entre seus mais distintos habitantes.

"Formigas carregam suas latas.
Devaneiam palavras.
O escuro encosta nelas para ter vagalumes"

(GA, GEC, p. 286)

As formigas, no caso, recebem características humanas do devaneio e do vocabulário. A transferência emotiva resulta em imagens insólitas, de uma superexposição dos detalhes. As formigas carregam latas, o que não é natural. Elas devaneiam, o que não é natural. Elas geram vaga-lumes, o que não é natural.

Desde já, inicia-se um pacto entre criação e recepção, um pacto de leitura. Entenda-se que não é um contrato, racional e negociável, que estabelece cláusulas a ser seguidas por ambas as partes, leitor e autor. Se o contrato significa o gradual convencimento dos dois lados, o pacto pressupõe uma adesão instantânea de uma das partes, uma crença absoluta no desenrolar - ainda que absurdo - dos acontecimentos. O que poderia ser considerado inverosímil no contrato,  não o é na convenção de um pacto, firmado na cumplicidade e consentimento verbal.

A poesia hiperbólica de Barros centra o foco na trajetória das miudezas. A hipérbole é uma forma de chamar a atenção para o secundário, afirmando uma importância até então esquecida. Quando se deseja atrair o interesse, o exagero é peça fundamental. Introduz elementos como se fossem conhecidos. Trabalha com certezas que não são usuais, nem racionais, mas de fundo emocional. Certezas imaginárias que fixam relações psicossomáticas entre elementos díspares: formigas - homens - vaga-lumes. O autor visualiza as formigas como contempladoras, transfigurando sua condição inata. O que ele pretende? Acredito que seja desligar a palavra das informações e antecedentes culturais pré-existentes. Abolir a historicidade evidente, reencontrando o mistério da pronúncia. Ele desconstrói para construir. Desautomatiza o vocábulo em busca de um arranjo inédito, do rastro verbal originário. Efetua uma limpeza, uma 'faxina', sobretudo com o propósito de reverter vícios do uso lingüistico corrente e oficial.

O encantamento é um efeito da ressonância. O escrito é distorcido para ecoar puramente canto. Ou melhor, a alteração provoca um choque acústico, porque lida com a desarticulação de experiências idiomáticas, próprias da construção racional de um diálogo,  do interlocutor.

Um dos primeiros requisitos para se afeiçoar à leitura de Manoel de Barros é rejeitar a verossimilhança. Sua literatura não reproduz a realidade, funciona como espécie de mediadora entre o que ela oferece e o como é percebida.  A poesia pretende exercer um poder encantatório, capaz de modificar a realidade em função de um ideal estético e de prazer acústico. Peixes podem morar na árvore, assim como o vento ser apanhado pelo rabo - dois exemplos que não condizem com a normalidade do cotidiano, mas que terminam sendo acatados em função do pacto de leitura, de não duvidar do autor e sim compartilhar com ele a irrealidade das imagens.

Manoel de Barros faz uma poesia que pensa, não uma poesia que olha. Pensar diferente é a bronca de Manoel de Barros com a linguagem. Ele não está descrevendo a formiga, simula pensar como a formiga, deslocando-a para outras paragens que não a dela. O exagero é decorrente do fato de raciocinar por ela e como ela.

Poesia não é para compreender, mas para incorporar.
Entender é parede; procure ser árvore"

(AA, GEC,  p. 212)

O poeta conceitua sua poesia enquanto a realiza. Sua opinião é suspeita, quer nos chamar atenção para determinada maneira de entendê-lo. De acordo com sua observação, compreender é manter o respeito pela individualidade. Segundo Barros, o esforço vai além do entendimento, reivindica que o leitor seja igual à sua poesia e que os animais possam falar pelo autor. Da mesma forma em que o autor pede ao interlocutor que acredite piamente no que lê,  finge pensar como os animais de sua poética.

Barros parece integrar o mundo da 'metáfora total', estipulado pelo crítico Northrop Frye:

"Um mundo de símile total, onde tudo fosse como tudo o mais, seria um mundo de total monotonia; um mundo de metáfora total, onde tudo é identificado consigo mesmo e com tudo o mais, seria um mundo onde o sujeito e o objeto, a realidade e a organização mental de realidade são a mesma coisa. Esse mundo da metáfora completa é causa formal da poesia". (Fábulas de identidade, Northrop Frye, p. 270)

O "mundo da metáfora total", bem apanhado pelo crítico inglês, estuda a percepção das coisas como idéias, e não propriamente como coisas. No caso de Manoel de Barros, ao buscar a singularidade de cada visão, o autor correr o risco de  assassinar o elo comum com o cotidiano do leitor e o nexo da leitura. No momento de destruir uma identidade e não restaurá-la em seguida, involuntariamente cria uma sucessão de destroços impossíveis para a decodificação. Uma metáfora descende da outra, degenerando progressivamente a origem do real, perdendo o começo de tudo. Ao invés do poeta intercalar idéia e coisa, fica-se com a idéia-idéia, cada vez mais distante da coisa em si e imerso num plano inteiramente imaginário.  Trata-se de uma ordem que emprega a desordem. O universo é reinaugurado em benefício de uma disfunção do real. Manoel de Barros não figura ou configura a realidade, trabalha na transfiguração ininterrupta do homem.

Diga-se de passagem que Barros não está aí para os ditames do mercado. Condiciona a poesia a tudo o que não presta, não tem valia. Inverte a escala do válido e do inválido. O que a sociedade de consumo preza, ele despreza, e vice-versa. Por quê? Não está interessado em repetir o cotidiano, mas em reciclá-lo. Um carro no ferro-velho, de acordo com sua teoria, tem mais valor que um novo na concessionária.

 

"Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios"

(MP, GEC,  p.179)

 

Não lhe interessa a vida útil do objeto, mas a vida espiritual que se inicia no fim prático, no momento em que é descurado e abandonado. O carro deixa de ser usado e passa a colecionar besouros, atuando como responsável por uma atividade lúdica. De submissos, os pertences atingem a alforria de despertences. Autônomos, percebem a existência como se fossem pessoas recém-chegadas, libertas das experiências anteriores.  Independentes, gozam de uma sadia amnésia. A equação baseia-se em desprover a função social ou ambiental da coisa, reificando-a num brinquedo destinado à fruição. O que era jugo econômico é jogo sensitivo. O prazer está unicamente em celebrar. Celebrar gratuidades sonoras, visuais e semânticas.

A poesia de Manoel de Barros articula-se no patamar de brincadeira e interação recreativa. Como o material tematizado é o entulho, o traste, a sobra, a ordem de seu chão é criar novos objetos a partir dos abandonados. Ou de dar novas modalidades às coisas imprestáveis. Incorpora em sua escritura a mania da criança em montar brinquedos com restos de outros. Do reaproveitamento artístico e imaginativo do que perdeu sua consistência econômica.

"Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria"

(LN, p. 71)

 

O que diferencia os objetos em Manoel de Barros é o manuseio. Ele não recorre à utilização produtiva, se estabelece em padrões de qualidade e eficácia. Suas imagens são conceitos de repouso e lazer, restritas a aspirações lúdicas e descobertas verbais. 

Sua poética absorve a infância como reduto da espontaneidade. A relação do poeta com as palavras decorre da confecção de brinquedos, com o objetivo de preparar surpresas.

 

"Meu irmão veio correndo mostrar um brinquedo que
inventara com palavras. Era assim:
besouros não trepam no abstrato"

(LN, p. 23)

 

O que Barros parece desejar é exercer a liberdade de animar a matéria, sem sofrer a cobrança de explicá-la. O perfil da criança personifica perfeitamente o papel de revelar a riqueza e as variações das imagens. Ela se resguarda no escudo da ingenuidade. Sua percepção inventiva procura saciar a curiosidade.

O brinquedo acima é composto de palavras, e o valor dele será validado na forma do maravilhamento. O trecho "veio mostrar correndo" comprova a expectativa do irmão em arrebatar a cumplicidade. A função do real - besouros - é adaptada para uma função onírica - trepar no abstrato.
 

"Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com
palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite o silêncio estica os lírios."

(LN, p.33)

 

Os vocábulos se atraem como um quebra-cabeça, formando um mosaico lingüístico, que consiste em conciliar uma peça concreta sob o fluxo de um abstrata, isto é, os lírios com o silêncio. O verbo é o encaixe.

A poética eminentemente da primeira pessoa, do eu falando e recordando, costuma provocar a persuasão, ansiando convencer o interlocutor da autenticidade da situação. A improvisação é outro requisito atendido na narração lírica de Barros. A criança improvisa com o mínimo suporte. Barbantes, pipas, bolinhas de gude, carrinhos com a tração de insetos. Os efeitos especiais têm simbólico orçamento, reivindica apenas o senso da transmutação, o faz-de-conta.

"Remexo com um pedacinho de arame nas
minhas memórias fósseis.
Tem por lá um menino a brincar no terreiro:
entre conchas, ossos de arara, pedaços de pote,
sabugos, asas de caçarola etc.
E tem um carrinho de bruços no meio do
terreiro.
O menino cangava dois sapos e os botava a
puxar o carrinho.
Faz de conta que ele carregava areia e pedras
no seu caminhão.
O menino também puxava, nos becos de sua
aldeia, por um barbante sujo uma latas tristes.
Era sempre um barbante sujo.
Eram sempre umas latas tristes.
O menino é hoje um homem douto que trata
com física quântica.
Mas tem nostalgia das latas.
Tem saudades de puxar por um barbante sujo
umas latas tristes."

(RAQC, p. 47)

 

Há a preferência pela memória tátil, priorizando os objetos pequenos que podem caber na mão: latas, ossos de arara e sabugos. Coisas diminutas que compõem o arsenal reflexivo. De acordo com Viviana Bosi Concagh, que desenvolveu um estudo sobre o poeta norte-americano John Ashbery, a atitude descende do verdadeiro espírito surrealista:

"(...) aquele que amplia o 'espaço dos sonhos' em que vivemos, capaz de recuperar a dimensão livre da percepção infantil, que vê com o mesmo encanto uma bolinha de gude rolando ou a passagem de um cometa. Sem o constrangimento da perspectiva analítica, recuperam o sem-fundo do supra-real" (John Ashbery - um módulo para o vento, Viviana Bosi Concagh, p. 86-87)

A brincadeira consiste na capacidade especulativa de deduzir formas onde não existiam, de não depender de nada além das coisas.  Manoel de Barros se julga na condição de um escritor primitivo, pretende - e a pretensão não implica juízo de valor - entrar diretamente nas coisas, não nos nomes das coisas que facilitam o reconhecimento delas.

Essa ligação direta com as coisas - de tutela e paternidade com o destino delas - é uma das preferências de Manoel de Barros. A criança não se limita a realidade física: de dois sapos ela prepara uma charrete. Da penúria material externa ocorre a demasia de possibilidades interiores. A criança mal se detém numa opção e começa outra, sem eliminar os objetos de sua trajetória, que se interpenetram, ocasionando um parque de diversões em miniatura. O protagonista do poema citado é um homem que mesmo desfrutando de uma posição de respeito, de físico quântico, recorda da infância como a melhor parte da vida. O adulto ressente-se de ter envelhecido. "O menino é hoje um homem douto (...)/ Mas tem nostalgia das latas./ Tem saudades de puxar por um barbante sujo/umas latas tristes." Sua riqueza está no passado, na matéria sonhada da infância - as latas tristes e o barbante sujo. Os adjetivos depreciativos - tristes e sujo - no contexto são  reiterativos de valor emocional.

"Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão"

(RAQC, p. 27)

O olhar rasteiro de Manoel de Barros é perfomático, estabelece uma posição teatral diante da vida, enfatizando aspectos de sua emoção com a adjetivação. Vasculha o paradeiro dos animais e das plantas com uma visão que se pretende infantil. Cumpre um recenseamento para provar a exuberância das inutilidades. Nada escapa da analogia, transforma elementos heterogêneos e isolados em gêmeos de sentido.

"A hera veste meus princípios e meus óculos"

(AA, GEC, p. 203)

 

Manoel de Barros abole a arbitrariedade em benefício das semelhanças. A hera e o óculos se encontram no ineditismo da comparação, circunscrevendo um homem abandonado. Isso o escritor argentino Júlio Cortázar qualifica como 'direção analógica', dispositivo que domina a infância:

 

"Uma criança de quatro anos pode dizer com toda a espontaneidade: 'Que esquisito: as árvores se agasalham no verão, ao contrário da gente', mas só aos oito aprenderá as características dos vegetais e o que vai de uma árvore a um legume. Foi suficientemente provado que a tendência metafórica é lugar-comum do homem, e não atitude privativa da poesia"

(Valise de Cronópio, p. 86)

 

A fase infantil permite a formulações de personagens. O fingimento é o mecanismo da metamorfose, de exercitar uma totalidade com o ambiente, ainda que fugaz, de estar em todas as partes e ser vários ao mesmo tempo. E esses personagens dependem do magnetismo das coisas para transitar da irrealidade ao cotidiano.

"Fazia tudo de conta.
Fingia que lata era um navio e viajava de lata.
Fingia que vento era cavalo e corria ventana.
Quando chegou a quadra de fugir de casa, o menino
montava num lagarto e ia pro mato.
Mas logo o lagarto virava pedra"

(EF, p. 53)

 

O homem acompanha a mutação da fauna e da flora, cedendo a novos contornos.

 

"Um passarinho pediu a meu irmão para ser a sua árvore.
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho"

(EF, p. 63)

 

Veja-se a intenção de reproduzir a circularidade do raciocínio de um menino. O segundo verso quase repete invertido o primeiro, com pequenas alterações. A repetição infunde o frescor da oralidade da idade, de frases  geminadas, amparando-se na relação causa-efeito.

 

"Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo...
A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando -
no silêncio líquido
com que  as águas escurecem pedras...
Um tordo avisou que é março."

(GA, GEC, p. 297)

 

"Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta do mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal"

(EF, p.12)

"O vento se harpava em minhas lapelas desatadas"

(AA, GEC, p. 207)

A poesia de Manoel de Barros condiciona diferentes figuras de linguagem, produzindo deformações sintáticas. Espécie de dublagem infantil, intencionada a despir o corpo fônico do uso corrente. Encontramos neologismos (harpava), glossário moderno (legal), sinestesia (Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados), prosopopéia (O rio ficou de pé e me olha),  entre outros. O conjunto heterogêneo - reunião de várias camadas e recursos estilísticos -, promove uma reorganização da língua como a estética do erro, estética que simula o nível da criança enquanto está aprendendo.

 

Fabrício Carpinejar é poeta, autor de Caixa de sapatos (Companhia das Letras, 2003), Biografia de uma árvore (Escrituras, 2002), Terceira sede (Escrituras, 2001), Um terno de pássaros ao sul (Escrituras, 2000) e As Solas do Sol (Bertrand Brasil, 1998). E-mail: carpinejar@terra.com.br. Site: www.carpinejar.com.br.

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