ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

DA CERTEZA DA MORTE: UMA CONVERSA ENTRE JACQUES ROUBAUD E WITTGENSTEIN

 

Marceli Andresa Becker

 

Há quem diga que pode ser mais inspirador para o poeta passar por experiências de dor que de alegria. Talvez seja esse o caso de Jacques Roubaud. Em seu Algo: preto, traduzido por Inês Oseki-Dépré e publicado pela editora Perspectiva (coleção Signos), o escritor apresenta o seu melhor ao tentar 'dizer' a morte prematura da mulher. Na contramão do que poderíamos imaginar, os poemas de Roubaud não funcionam como uma válvula de escape para o sentimentalismo. Dotados de rigor conceitual, resultam do esforço do poeta em encontrar as palavras certas para expressar o que significa viver uma experiência (a morte da pessoa amada) para a qual não cabem palavras. Seu empreendimento é todo às avessas: ocupar um espaço (o poema na folha em branco) para relatar o vazio (o lugar que alguém deixou); invocar a força do verbo para dizer, em algum sentido, o silêncio; reivindicar da ausência, enfim, um modo de aparecer.

 

Matemático de formação, ele não se contenta em atingir apenas aproximadamente o alvo. Recorre, para satisfazer o obstinado desejo de conceituar a morte, às anotações do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein sobre como (i) usamos verbos e expressões de cunho epistêmico, notadamente 'saber' e 'ter certeza', em nossos 'jogos de linguagem' e sobre como (ii) levantamos, relativamente a tais usos, as assim chamadas 'dúvidas sensatas'. Em “Meditação da Certeza”, por exemplo, o apelo do poeta às ideias do filósofo é evidente. Assim ele escreve: “A porta afastava a luz./Eu sabia que ali havia uma mão. quem me consentiria daí por diante todo o resto?/Tendo-a visto, tendo reconhecido a morte, que não somente parecia ser assim, mas que era assim certamente, mas que não havia nenhum sentido em duvidar./Tendo a visto, tendo reconhecido a morte./Alguém me teria dito : «não sei se é uma mão», eu não poderia ter respondido «olhe mais de perto», nenhum jogo de linguagem podia deslocar essa certeza. tua mão pendia na beira da cama./Morna. morna apenas. morna ainda./O sangue tinha se amontoado na ponta dos dedos, como num copo um fundo de guinness./Eu não o via aspecto humano.  «há sangue numa mão humana». eu entendia muito claro o sentido dessa proposição. porque eu estava contemplando sua confirmação negativa./Não me era necessário dizer-me :        «o sangue corre por uma mão viva», coisa que entretanto ninguém jamais viu. aquele sangue ali com toda a evidência não corria. o que eu não podia pôr em dúvida. para duvidar faltavam-me as razões”.

 

Antes de estudarmos o poema, vejamos rapidamente o que Wittgenstein escreve sobre os pontos que elencamos acima no seu Da certeza. Ainda que, destaca o filósofo, em nossos 'jogos de linguagem' as expressões 'saber' e 'ter certeza' sejam, muitas vezes, usadas como sinônimos – “Num tribunal”, observa ele, “«Estou certo» podia substituir «Sei» em qualquer testemunho” –, há uma considerável diferença entre (i) o que alguns filósofos querem dizer ao declarar ter certeza da existência deles mesmos e de objetos empíricos e o que queremos dizer ao informar alguém de que sabemos, por exemplo, que no próximo fim de semana irá chover.

 

Toda a argumentação de Wittgenstein no Da certeza gira em torno de uma declaração de G. E. Moore, também filósofo, num ensaio intitulado “Prova de um Mundo Exterior”. Ao longo desse texto Moore sustenta que há certas verdades empíricas que podemos saber com certeza – a exemplo das expressas em proposições do tipo “A Terra existe há muitos e muitos anos”, “Seres humanos nascem, crescem e se reproduzem” e “Moramos num país chamado Brasil”. Contrário ao que admitem os céticos – para quem declarações como essas podem ser fruto de uma ilusão bem ao estilo Matrix –, ele defende que tais truísmos do senso comum fornecem uma prova rigorosa da existência do mundo externo. Nas suas palavras, “eis aqui uma de minhas mãos e eis aqui a outra; há, portanto, pelo menos duas coisas materiais”.

 

Wittgenstein afirma que Moore se engana ao declarar “Sei que aqui está uma mão”, mas ao fazê-lo não quer dizer, como supõem os céticos, que o que ocorre é que ele não sabe que aqui está a sua própria mão. O objetivo do austríaco é única e exclusivamente mostrar que, se está correto o uso do verbo 'saber' numa proposição do tipo “Sei que hoje à noite irá chover” (e como poderíamos usá-lo de outra forma?[1]), então, no que concerne à proposição “Aqui está uma mão”, não podemos tomar nenhum partido (dizer que sabemos ou dizer que não sabemos dela). O motivo? Se alguém duvida do que digo naquele caso, posso apontar para o céu nublado (fornecer a quem questiona uma evidência para o que declaro). Duvidar de (ou ser questionado em relação a) e exigir (ou fornecer) determinadas evidências para o que alegamos são comportamentos próprios da gramática de 'saber'. Quando agimos assim num 'jogo de linguagem' como o da proposição “Sei que irá chover hoje à noite” ninguém estranha. Nossos lances aqui são legítimos.

 

O mesmo não ocorre no caso da afirmação de Moore. Visto que, como dissemos, pôr em dúvida, justificar e descartar são comportamentos que podemos legitimamente ter em 'jogos de linguagem' que envolvem 'saber', a proposição “Sei que aqui está uma mão”, de que Moore se vale no intuito de provar a existência do mundo externo, revela um absurdo. Não podemos aqui nem duvidar de Moore (se você acha que sim, pense então no que seria uma evidência ou uma resposta para suprir a sua dúvida) nem dele reivindicar – tal como podemos de quem declara algo do tipo “Sei que irá chover hoje à noite” – uma evidência para o que pretende provar (se você acha que mostrar as próprias mãos é uma maneira de provar que existem, lembre-se de que é precisamente da existência dessas mãos e de qualquer outro objeto empírico que a pessoa que reivindica uma evidência nesse caso – geralmente o cético – diz duvidar).

 

Tanto Moore, na sua defesa do senso comum, quanto o cético, na sua obsessão por duvidar de tudo, estão, segundo Wittgenstein, equivocados. E, embora pareçam distantes no que diz respeito a convicções, os dois caminham juntos quando se trata do tipo de erro que cometem ao defendê-las. Enquanto aquele alega saber de algo que, a julgar pelo uso que fazemos do verbo em nossos 'jogos de linguagem', não podemos saber, este duvida onde faltam razões com base nas quais possamos duvidar. Em pelo menos um aspecto, portanto, a dupla concorda: que proposições como “Aqui está uma mão” constituem 'lugares' em que o conhecimento há (Moore) ou em que o conhecimento não há (cético). Ambos, enfim, partem do conhecimento (que há ou que não há) ao abordá-la.

 

Para Wittgenstein esse é o erro. A proposição “Sei que aqui está uma mão”, tal como Moore pretendeu expressá-la[2], faz parte de uma categoria de proposições muito particulares da nossa linguagem. Dizer, em última instância, que sabemos ou que não sabemos que aqui está uma mão é o mesmo que afirmar que enxergamos ou que não enxergamos o cheiro de um bolo. São placas de trânsito, aviões e pessoas que nós enxergamos ou deixamos de enxergar, não cheiros. Mais: se por um lado não enxergamos cheiros, por outro esse não é o caso porque deixamos de enxergá-los. 'Enxergar', assevera o filósofo, não é um verbo que se aplique a cheiros. Eles não fazem parte de sua gramática. Não podemos, simplesmente, enxergar ou deixar de enxergá-los. “Mas parece”, pode pensar alguém, “que faz todo o sentido dizer 'Não enxergo o cheiro de um bolo', mas nenhum 'Enxergo o cheiro de um bolo'”. Há aqui uma espécie de 'ilusão gramatical': uma vez que a gramática se encarrega de excluir a combinação entre 'enxergar' e 'cheiro' na proposição “Enxergo o cheiro de um bolo”, pensamos que o seu oposto (“Não enxergo o cheiro de um bolo”) fica nela incluso[3].

 

Raciocínio idêntico se aplica à proposição de Moore: visto que a ignorância, no caso de uma proposição sobre as minhas próprias mãos, é gramaticalmente excluída de nossa linguagem (apenas em jogos bem especiais faz sentido afirmar algo como “Não sei que aqui está uma mão”[4]), o seu oposto parece fazer muito sentido (chegamos inclusive a pensar que em “Sei que aqui está uma mão” reside um grau muito mais alto de conhecimento do que em “Sei que irá chover hoje à noite”). O que, portanto, motiva Moore a insistir no fato de que a sua proposição não pode ser absurda se associa à exclusão gramatical de um estado de ignorância da sua parte (à falta de sentido que todos nós podemos detectar numa proposição como “Não sei que aqui está uma mão”). Ao asseverar “Sei que aqui está uma mão”, ele não se coloca, por conseguinte, na condição de alguém que exprime conhecimento, mas na de alguém que não pode – por conta daquela exclusão gramatical que já comentamos – estar errado.

 

Na sua “Meditação da Certeza”, Roubaud retoma os argumentos de Wittgenstein para cantar uma tragédia. Podemos observar que a relação do poeta com a morte da esposa é a mesma que a de Moore com sua mão: ambas se referem a um tipo de certeza que não equivale à presença de algum conhecimento, mas sim à impossibilidade do erro. Nas palavras do poeta, a morte da mulher “não somente parecia ser assim, mas [...] era assim certamente [...]. Não havia nenhum sentido em duvidar”. Duvidar de que a mulher está morta, reflete Roubaud, não tem sentido uma vez que a gramática se responsabiliza por excluir da linguagem o seu oposto (a possibilidade de ela estar viva). É por isso que a Alix não se aplicam mais certas palavras. Sua morte traduz-se, ao longo de Algo: preto, como um 'lugar' em que falar, atividade que caracteriza a nossa 'forma de vida', ou o nosso modo de sermos seres humanos, não cabe mais. De acordo com o próprio poeta, na sua mulher o “aspecto humano” agora não se pode ver.

 

“Alguém”, conjectura o escritor, “me teria dito: «não sei se é uma mão», eu não poderia ter respondido «olhe mais de perto», nenhum jogo de linguagem podia deslocar essa certeza. tua mão pendia na beira da cama”. A proposição “Olhe mais de perto” exprime, em muitos de nossos 'jogos de linguagem', uma ordem do falante a alguém que dispõe das condições necessárias para se certificar de algo (que pode buscar e encontrar uma evidência para corroborar ou enfraquecer uma crença, uma opinião, uma hipótese...). Se eu e meu filho paramos para olhar uma vitrine, por exemplo, e ele, concentrado, pergunta-me se a mão da manequim é realmente uma mão, eu posso, como mãe pacienciosa que sou, entrar na loja e orientá-lo a olhar mais de perto. Meu filho pode certificar-se de que, a despeito de todo o esforço dos seus fabricantes, aquela manequim não é real. Nesse contexto o meu filho substitui a ignorância pelo conhecimento. Estão abertas para ele tanto a possibilidade de dúvida (“Mãe, aquilo é realmente uma mão?”) quanto de certificação (“Ah, agora vejo mais de perto... Não é mesmo uma mão!”).

 

Em relação à morte a situação é outra. Ao confessar que não poderia ter respondido “«olhe mais de perto»” a quem porventura lhe dissesse não saber se aquela mão morta era mesmo uma mão, o poeta sugere que a morte se enquadra, tal como a polêmica alegação de Moore, naquele grupo de certezas de que não podemos nos certificar (nem consequentemente duvidar e tomar conhecimento/saber). Assim como não há, pelas razões já citadas, aquilo a que Moore poderia recorrer para nos fornecer como uma evidência de que tem mãos (condição sem a qual não podemos alegar saber ou não saber de algo), não existe aquilo de que Roubaud poderia se valer para nos oferecer como uma evidência de que sua mulher está morta. Nos dois casos não se trata de algo que sabem (ou deixam de saber), mas de que têm certeza.

 

Ciente da morte da mulher, o poeta se encontra, da mesma forma que Moore, não na condição de alguém que sabe de algo, mas na de alguém que não pode estar errado (na de alguém que, tendo visto, “tendo reconhecido a morte”, não pode ignorá-la ou pô-la em dúvida... “Para duvidar” lhe faltam “as razões”). É, por fim, marcada pela força dessa certeza, que se mostra ao mesmo tempo necessária e absurda, que a proposição “Alix está morta” penetra o seu entendimento e de repente lhe ata as mãos.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

GLOCK, Hans-Johann. Dicionário Wittgenstein. Trad. Helena Martins. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

 

HACKER, P. M. S. Wittgenstein: sobre a natureza humana. Trad. João Vergílio Gallenari Cuter. São Paulo: Unesp, 2000. (Coleção Grandes Filósofos)

 

ROUBAUD, Jacques. Algo: preto. Trad. Inês Oseki-Dépré. São Paulo: Perspectiva, 2005. (Coleção Signos)

 

WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Trad. Maria Elisa Costa. Rio de Janeiro: Edições 70, 1969.

 

______. Investigações filosóficas. Trad. Marcos G. Montagnoli. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

 

NOTAS

[1] A pergunta é feita pelo próprio Wittgenstein no parágrafo 246 das Investigações filosóficas.

[2] Ou seja, com a finalidade de provar a existência do mundo exterior.

[3] Para entender como Wittgenstein desenvolve esse argumento relativamente à privacidade epistêmica, leia as páginas 33 e 34 de Wittgenstein: sobre a natureza humana, de P. M. S. Hacker, citado nas referências bibliográficas deste texto.

[4] Talvez faça sentido num jogo como aquele em que se vendam os olhos de uma pessoa a fim de que ela, ao tocar num objeto qualquer (entendam-se aqui por 'objeto' também pessoas e animais), tente identificá-lo. “O que você acha que é?”, poderia perguntar o outro jogador, “Uma pata, uma mão?”. A pessoa poderia responder: “Talvez, mas me deixe sentir mais... Não sei se isto é uma mão”.

 

 

 

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Marceli Andresa Becker é poeta e estudante de Filosofia.

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