ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O REAL E O VIRTUAL EM UM CONTO DE BORGES

 

Márcia Reis Brandão (UFF - PG)

 

Em magistral lance à intertextualidade, Borges inicia seu conto A Outra Morte. A referência primeira é ao poema The Past de Ralph Waldo Emerson o qual parece ratificar a irreversibilidade do que aconteceu. Nada é capaz de alterar o ocorrido. Nem os deuses nem Satã podem alterar o passado. Esse é como uma porta cerrada, sem frestas e inamovível:

 

The Past

 

The debt is paid,
The verdict said,
The Furies laid,
The plague is stayed,
All fortunes made;
Turn the key and bolt the door,
Sweet is death forevermore.
Nor haughty hope, nor swart chagrin,
Nor murdering hate, can enter in.
All is now secure and fast;
Not the gods can shake the Past;
Flies-to the adamantine door
Bolted down forevermore.
None can reenter there, -
No thief so politic,
No Satan with a royal trick
Steal in by window, chink or hole,
To bind or unbind, add what lacked
Insert a leaf, or forge a name,
New-face or finish what is packed,
Alter or mend eternal Fact. 1

 

A referência inicial é breve, aparentemente irrelevante, pois logo o narrador passa a tratar do que seria o tema central do conto: a história de um gaúcho posteiro recém-falecido que participara de uma batalha - a Batalha de Masoller, travada entre argentinos e uruguaios no início do século XX - e que em seus delírios finais a revivera. O próprio narrador teria conhecido tal personagem, embora não se recordasse de sua figura muito claramente.

Assim inaugura-se seu relato: logo no primeiro parágrafo o narrador declara ter perdido a carta que lhe dava notícia da morte do camponês; em seguida refere-se à sua fraca memória visual e declara lembrar-se mais de uma fotografia do gaúcho do que do próprio. Conclui dizendo ter perdido, também, a foto.

Como destaca Susan Sontag (2004), "fotos fornecem um testemunho" (p.16), constituem um documento. Um relato oral ou escrito pode ser contestado. A fotografia nos oferece uma prova irrefutável de existência passada ou presente (quiçá a previsão de estados futuros, já que hoje, com o auxílio do computador, projetam-se imagens de como seremos ou como serão os lugares daqui a anos!). A sociedade moderna e os aparelhos de vigilância e repressão se utilizam cada vez mais do recurso à câmera, fotográfica ou de vídeo. Mesmo admitindo-se a possibilidade de distorções e, especialmente com o desenvolvimento das tecnologias de tratamento da imagem, a possibilidade de intervir, alterando de modo quase total a imagem fotográfica, "uma foto - qualquer foto - parece ter uma relação mais inocente, e, portanto, mais acurada, com a realidade visível do que outros objetos miméticos"(p.16).

Mas nosso narrador perdeu a foto, ao mesmo tempo privando-nos, e a si mesmo, da possibilidade não só de socorrer a memória, mas de uma comprovação do que vem sendo narrado. Segundo declara o narrador, a história do camponês lhe teria inspirado a escrever uma narrativa fantástica. Buscando argumentos para tal, entrará em contato com um coronel que participara da batalha. A descrição do encontro nos mostra que ele mesmo percebe haver no relato do coronel mais "imaginação" do que recordação, mobilizando a concepção de memória como construção:


[El coronel] Habló de Illescas, de Tupambaé, de Masoller. Lo hizo con períodos tan cabales y de un modo tan vívido que comprendí que muchas veces habia referido esas mismas cosas, y  temí que detrás de sus palabras casi no quedaram recuerdos (Borges, s.d.:115. Grifo nosso).


Observe-se que os adjetivos "cabais" e "vívidos" que supostamente poderiam ratificar a recordação, são vistos como índices do oposto.

O coronel refere-se ao camponês, que se chamava Pedro Damían, como um covarde que fraquejara ante os exércitos colorados durante a batalha. Essa é a primeira versão da história de Damían, sobre a qual o narrador declara "Yo hubiera preferido que los hechos no occurieran así" (p.116).

Pouco tempo depois, ao retornar à casa do Coronel, o narrador ouvirá de outro participante da batalha uma nova, e completamente distinta, versão de como se portara o gaúcho durante o embate. De forma bravia, sucumbira antes dos vinte anos, liderando os homens no campo de guerra. É significativo que para essa nova versão o narrador faça uso do discurso direto, dando voz ao próprio participante da guerra, em oposição à versão anterior em que reproduzira indiretamente o que o coronel lhe havia relatado, e, talvez, maior veracidade.


_ Usted se equivoca, señor _ dijo, al fin, Amaro. Pedro Damían murió como querría morir cualquier hombre. Serían las cuatro de la tarde. Em la cumbre de la cuchilla se había hecho fuerte la infantería colorada; los nuestros la cargaron, a lanza; Damían iba en la punta, gritando, y una bala lo acertó en pleno pecho. Se paró en los estribos, concluyó el grito y rodó y quedó entre las patas de los caballos. Estaba muerto y la última carga de Masoller le pasó por encima. Tan valiente y no había cumplido veinte años (Borges, s.d.:118).


Outro aspecto relevante nesta nova versão é o seu caráter eminentemente descritivo. Se antes se fizera um relato, agora se nos apresenta uma cena. Dada a riqueza dos detalhes, é fácil compor mentalmente a imagem dos momentos supostamente derradeiros de Pedro Damían. Talvez por preferir essa versão, como vimos a anterior o desagradara, o narrador optara por lhe dar outras tintas. O Coronel que antes referira ao narrador "com veraz incomodidad" (p.116) a covardia do homem, agora nem mesmo lhe lembrava o nome, mas lembremos que o próprio narrador declarou temer ter o relato pouco de recordação.

O jogo lembrança/esquecimento, real/virtual parece ter apenas iniciado. Logo o narrador retorna ao ponto inicial de sua narrativa e a referência ao poema de Emerson, cujo tema é a irreversibilidade do tempo, é também negada. Ao encontrar seu colega escritor que, em uma mesma carta, já perdida, lhe anunciara a morte de Damían e prometera uma tradução do poema, ele declara jamais haver pensado em uma versão espanhola para o mesmo e nem tampouco se lembrava de alguém chamado Damían. Pouco tempo depois, no entanto, o narrador recebe carta do coronel que declarava ter se lembrado do camponês Damían.

É nesse vaivém que mobiliza memória e esquecimento, ocorrido/não ocorrido que se vai intrincando o leitor na narrativa, em um ato constante de construção e desconstrução.

O narrador recorrerá, então, a um novo personagem: Ulrike von Kühlmann, a quem Borges dedica o conto "Historia del Guerrro y de la Cautiva" - nele também se narra a morte de um guerreiro que, para uns fora um traidor e, para outros, um herói - no mesmo volume. Na versão de von Kühlmann, definida pelo próprio narrador como  sobrenatural, Damían, embora morto em batalha aos vinte anos, retornara a sua terra por obra de Deus, mas sob forma de sombra. A riqueza do vocabulário ligado ao campo visual torna imprescindível sua reprodução:


Pedro Damían, decía Ulrike, perecío en la batalla, y  en la hora de su muerte suplicó a Dios que lo hiciera volver a Entre Ríos. Dios vaciló un segundo antes de otorgar esa gracia, y quien la había pedido ya estaba muerto, y algunos hombres lo habían visto caer. Dios, que no puede cambiar el pasado, pero sí las imágenes del pasado, cambió la imagen de la muerte en la de un desfallecimiento, y la sombra del entrerriano volvió a su tierra. Volvió, pero debemos recordar su condición de sombra. Vivió en la soledad, sin una mujer, sin amigos; todo lo amó y lo poseyó, pero desde lejos, como del outro lado de un cristal; "murió", y su tenue imagen se pedió, como el agua en el agua (Borges, s.d.:121).


Borges mobiliza dados que serão caros à análise da imagem: o conhecimento científico associado ao testemunho, à observação, como veremos adiante; a possibilidade de se alterar, distorcer as imagens, que, embora no conto seja obra de Deus, na contemporaneidade foi viabilizada pelas novas tecnologias da imagens; e, também, a noção clássica de sombra vinculada tanto ao campo do esquecimento quanto ao do conhecimento. E ainda há a alusão ao cristal, aqui uma espécie de barreira, muro a separar Damían da existência mais ativa, mas que também implica a noção de multiplicidade a partir de suas diversas faces.

O narrador declara a versão de seu amigo incorreta, mas ter-lhe sugerido "la que hoy creo la verdadera" (p.121). A partir de então considera-se a  tese que  se anunciara  no início da narração: a (ir)reversibilidade do passado. Borges lançará mão do tratado De Omnipontentia de Pier Damiani.2  O narrador declara, inicialmente, que nessa obra o teólogo afirma que Deus pode transformar o que foi feito no que não foi feito, ou seja, alterar, desfazer o passado. Ora, a grande discussão desenvolvida pelo líder monástico versa justamente sobre a inadequação, do ponto de vista teológico, da questão: "É Deus capaz de mudar o passado, de fazer o que ocorreu deixar de ter ocorrido?" Tratando da onipotência divina, Damiani havia declarado em um debate que Deus poderia restaurar a virgindade de uma mulher. Interlocutores, então, o questionaram se Deus era capaz de desfazer o que foi feito. A explicação de Damiani mostra que a restauração da virgindade se daria através de um milagre a ser feito no presente. O que se alteraria seria o estado atual da carne, o que não implicaria alterar o fato passado que a ele teria conduzido. A pergunta feita, por extensão, seria improcedente, pois a ação se concentraria no presente. Damiani postula que o passado não pode ser desfeito porque ele resulta da vontade de Deus e para esse não há distinção entre os tempos e sim um eterno agora.

O jogo entre a dualidade das histórias de Pedro Damían parece confundir o leitor, enredando-o. Ao mais atento não escapara a homonímia dos personagens: Pedro Damían  e Pier Damiani são o mesmo nome. Seriam também a mesma pessoa, a que mostrara a (ir)reversibilidade do passado? Assim, mais uma vez o recurso à intertextualidade, através da referência à De Omnipotentia, permite abalar  não só o conceito de memória enquanto conservação do tempo decorrido, mas o próprio estatuto do passado. O recurso ao saber da Física, inextricavelmente relacionado à questão da imagem, aqui nos parece inestimável.

Uma das perguntas fundadoras da pesquisa em Física concerne a como se desenvolvem os eventos ao longo do tempo.  A própria pergunta já supõe algumas conjecturas, como a de que os eventos estariam, de alguma maneira, pré-organizados, e se revelariam gradativamente. Também supõe que o "palco" dos eventos - o tempo - seria uma espécie de fluir inexorável e inequívoco, como uma flecha em movimento desde o passado em direção ao futuro.

A Física se propõe, entre outras tarefas, a identificar os motores do movimento de eventos no espaço e no tempo. Isto permitiria, supostamente, descrever a realidade com precisão. O projeto da Física pareceu ser muito bem sucedido quando foram conhecidas "as Leis" que regem o movimento, como atesta o sucesso da descrição do movimento dos planetas em torno do sol. Julgava-se, assim, que conhecidas as leis, bastaria saber o estado do sistema físico em um dado instante para se determinar o movimento deste sistema "ao longo do tempo".

Hoje estamos bem distantes dessa utopia. Na verdade, as supostas leis da Física valiam para sistemas extremamente simples como o caso de partículas punctiformes, sem extensão física, embora dotadas de algo definido como massa. Sua aplicabilidade se reduz a casos muito particulares, a situações em que a infinidade incontrolável de motores que atuam de fato sobre todos os sistemas físicos pudesse ser ignorada.

Bastou o confronto com a própria realidade dos fatos a serem explicados, para que se comprovasse que a natureza não está sujeita às leis como se pretendia no quadro da chamada Física Clássica.3 Haveria outras leis? Leis mais complexas, cuja compreensão nos escapa? Estas perguntas não são pertinentes apenas ao campo da Física, mas a toda discussão em torno do conhecimento.

Tal questionamento levou a Física a dois cruéis pressupostos. Um deles: não é possível conhecer completamente o estado de um sistema físico em um dado instante no tempo. Quanto mais se conheça, por intermédio de medições, observações, aferições,  um aspecto do sistema, menos se conhecerá a respeito de outros seus aspectos complementares. O outro: "o real" estado de um sistema físico é efetivamente a sobreposição de todos seus possíveis estados. No momento em que se "realiza" uma observação (medida, aferição), um dos possíveis estados miraculosamente se manifesta. Aceitar estas hipóteses foi a única maneira de seguir adiante com o projeto da Física. Esta aceitação não foi simplesmente fruto de reflexão ou análise. Foi antes o resultado da constatação de que dada a solução de um problema (a realidade manifestada), deve-se buscar a estrutura dos fatos que a gestaram e geraram.

Nesta outra Física, a resposta à pergunta inicial envolve algumas etapas básicas. Primeiramente é preciso escolher que aspecto do sistema físico se pretende observar, dado que é impraticável a observação completa. Em seguida, realiza-se, em um dado instante do tempo, uma medição cujo resultado será necessariamente um dos possíveis estados.

Que dizer sobre a evolução ao longo do tempo? Tendo sido feita uma observação, o máximo que se pode "prever" como resultado de uma outra medição é a probabilidade de que um outro dos possíveis estados se realize. Embora esta nova Física - chamada de Mecânica Quântica, ou Mecânica Probabilística - também esteja restrita ao mundo das partículas punctiformes, seu sucesso na descrição de fenômenos naturais é espetacularmente superior ao da Física Clássica, pois permite que sistemas mais complexos, como átomos, moléculas, corpos extensos, entre outros, possam, em tese, ser estudados por métodos estatísticos.

Uma regra, atribuída ao físico Erwin Schrödinger, para o cálculo da evolução temporal da probabilidade para que um dado estado físico se manifeste ilustra tanto a inteligibilidade quanto o exotismo da descrição de mundo oferecida pela Mecânica Quântica: o paradoxo denominado "O Gato de Schrödinger".4 Imagine-se um gato oculto dentro de uma caixa, de modo que não se saiba seu estado. Em algum momento, um tiro é disparado sobre a caixa, que pode (ou não) ter liberado um gás venenoso. Pergunta-se: qual é o estado do gato? Vivo ou morto? Segundo a Física Quântica, enquanto não tiver sido feita uma observação, o gato estará vivo e morto. Só no momento em que for inspecionado o conteúdo da caixa, um dos estados se realizará. Como podemos ver, o saber disponibilizado pela Física dificilmente pode ser ignorado na reflexão e busca pelo conhecimento.

Consideremos, o próprio estatuto do passado a partir do experimento de Schrödinger. Poderíamos nos satisfazer com sua definição como a trajetória dos eventos no tempo, mas, uma vez admitidas as proposições da Mecânica Quântica, percebe-se que há literalmente uma infinidade de possibilidades para o assim chamado passado. Alguém que tenha acumulado uma série de observações ao longo do tempo terá registrado nada mais que as manifestações de uma série de estados possíveis. Em princípio, outro observador poderia ter documentado outra série de observações. Mas, para a Física, na eventualidade de dois ou mais observadores realizarem a mesma observação, o mesmo estado será manifestado a todos.

Jorge Luis Borges parece tê-lo compreendido perfeitamente. Assim o demonstra em A Outra Morte. A idéia de que a cada instante a realidade se bifurca em infinitos caminhos, entre os quais escolhemos um, já havia sido enunciada por Fernando Pessoa. Mas Borges vai além, insiste em averiguar, como vimos, as conseqüências e possíveis incongruências desta mesma idéia.

As versões apresentadas parecem enigmáticas não só pela contradição encerrada, mas também porque os dois "relatadores" estiveram em presença um do outro, ou seja, segundo a Física, observaram um mesmo estado, e, finalmente, concordaram com uma única versão dos fatos: a morte do bravo homem em combate em 1904. Para a "outra morte" restaria o testemunho do próprio narrador, mas, a suposta carta que a anunciara teria se perdido (ou nem existido), assim como descobre que a fotografia de Damían na verdade era o retrato de um tenor. Ou seja, já não dispõe de nenhum documento que ateste sua própria versão. Até mesmo um outro gaúcho posteiro, que também teria visto Pedro Damián em 1942, está morto. Os registros da outra morte parecem se dissipar...

Em seu penúltimo parágrafo, entretanto, todo o trajeto empreendido pelo narrador na construção do relato é revelado, desvelando-se o ato da composição e o texto se transforma em meta-escritura. Se em Funes, o Memorioso Borges colocara em xeque a capacidade mnemônica exagerada do personagem, ratificando o caráter seletivo da memória, em A Outra Morte é o próprio conceito de verdade que será mobilizado, juntamente com o questionamento da irreversibilidade do tempo. É o poeta, no sentido platônico, que através do ato da escrita é capaz de desfazer o que foi feito, sendo, quase, erigido a Deus. É isto que faz o narrador em suas idas e vindas, criando um personagem que é um e outro ao mesmo tempo, simultaneamente, o covarde e o herói, e ainda um terceiro, pois ao fim do conto, o próprio narrador explicita o jogo entre os nomes do peão e do líder monástico, que introduz na narrativa exatamente a noção da não-contradição: o que foi não pode deixar de ser e o que será não poderá deixar de ser, que, no entanto, é desconstruída pelo conto.

A solução apresentada para o enigma mobiliza justamente a co-existência de estados advogada pela Física. Pedro Damián, na Batalha de Masoller, era covarde e corajoso. Esteve vivo e morto. Sua morte foi observada, foi incorporada ao passado dos observadores. No momento de sua (outra) morte, esboça estar revivendo a Batalha de Masoller. As duas mortes, bem como as duas vertentes da personalidade de Pedro Damián, de fato (co)existiram. A aparente unicidade do passado, perante todos os observadores, é garantida pela cuidadosa remoção dos vestígios e memórias da outra possibilidade, que, no entanto, se desvela no próprio ato de composição.

Tal como apresentado, o conto pode ser considerado "fantástico", em oposição a "verossímil". Curiosamente, entretanto, visto sob a ótica da própria Física, pode ser considerado rigorosamente realista. Em um dado instante, inúmeros estados co-existem. Entre um instante e outro, proporcionalmente, inúmeras possibilidades de evolução temporal são realizáveis. A realidade observada, as imagens da realidade, mesmo que aparentemente contínua, não é mais que a acumulação de registros diversos. A continuidade lhe é imposta, ou antes, do que se concebe como real, extraímos um aspecto contínuo que nos convém.

Fosse a realidade de fato tão determinada, tão apreensível quanto o discurso da razão pretende, poderia ser comparada ao desenrolar de um único filme. A sucessão de quadros, de eventos, estaria estabelecida sem margem para intervenções do espectador. O exercício de Borges, em A Outra Morte é como uma espiadela indiscreta nos mecanismos de projeção do filme. Abre ainda a possibilidade inestimável de construção, pelo próprio observador, de múltiplas histórias mostrando-nos nosso próprio poder de intervenção. O que o ato da escritura permite, e talvez somente ele, é justamente a subversão deste princípio: transmutar o feito em não-feito e criar sim, não somente duas histórias universais, mas incontáveis histórias.

Notas Bibliográficas:

[1] Tradução literal: "O Passado": A dívida está paga,/ O veredito anunciado,/ As Fúrias jazem,/ A praga extinta,/ Todas as sortes lançadas;/ Vire a chave e cerre a porta,/ Doce é para sempre a morte./ Nenhuma soberba esperança, nenhum obscuro desgosto,/ Nenhum rancor assassino, pode penetrar./ Tudo agora é definitivo e lépido;/ Nem os Deuses podem abalar o passado;/ Moscas se debatem  contra a porta adamantina/ Para sempre cerrada./ Ninguém pode entrar novamente,-/ Nenhum ladrão por mais perspicaz,/ Nem Satã com um nobre truque/Pode penetrar por uma janela, fresta ou furo,/ Atar ou desatar, suprir a falta/ Inserir uma página, ou forjar um nome,/ Remodelar ou concluir o que está cerrado,/ Alterar ou reparar o Eterno Destino.

[2] Líder monástico do século XI, Pier Damiani escreveu o Tratado De Divina Omnipotentia,e foi erroneamente visto como opositor da validade do princípio universal da não-contradição, em função da defesa da onipotência divina. Cf. Stanford Encyclopedia of Philosophy.

[3] Física Clássica: Parte da Física que abrange, de modo geral, os conhecimentos e teorias incluídos na física até os fins do século XIX, e se caracteriza por uma formulação teórica baseada nos conceitos e princípios da mecânica clássica (nexwtoniana) e do eletromagnetismo (maxwelliano).

Física Quântica: Parte da Física inaugurada em 1905 com uma proposição de Max Planck, a fim de explicar fenômenos não descritos corretamente pela Física clássica, segundo a qual a energia emitida por um corpo aquecido é veiculada em unidades discretas (não contínuas), denominadas "quanta".

A Física Quântica se refere à Física dos "Quanta". Esta efetivamente foi introduzida pela proposição de Max Planck, e tinha um caráter novo na medida que admitia que a energia (suposta, pela Física Clássica, como uma grandeza cujos valores variam continuamente) só pode assumir valores múltiplos de uma unidade mínima: o "quantum". O que chamamos Mecânica Quântica é uma construção teórica mais abrangente, que tem conceitos e ferramentas próprias, diferentes das que são utilizadas na Física Clássica. Mas a Mecânica Quântica, embora tenha tido a Física Quântica como ponto de partida, foi elaborada ao longo de vários anos, incluindo contribuições de muitos outros físicos (entre os quais Schrödinger).

[4] Um célebre experimento imaginário proposto por Erwin Schrödinger, no ano de 1937, para ilustrar as diferenças entre interação e medida no campo da mecânica quântica.

Referências Bibliográficas

1.      BORGES, Jorge Luis. "La outra muerte". In: ------. El Aleph. Buenos Aires: Emecé, s.d. pp.113-125.

2.      JAY, Martin. "Regímenes escópicos de la modernidad". In: ------. Campos de fuerza: entre la historia intelectual y la crítica cultural. Trad. de Alcira Bixio. 1. ed. Buenos Aires: Paidós, 2003. pp. 221-251.

3.      MERLEAU-PONTY, Maurice. "O olho e o espírito". In: Os pensadores/Textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1980. pp.85-111

4.      NIETZSCHE, Friedrich W. A origem da tragédia. São Paulo: Moraes, 1990.

5.      PAZ, Octavio. "A Imagem". In: ------. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1990. pp. 37-50.

6.      Stanford Encyclopedia of Philosophy. Cordura Hall: The Metaphysics Research Lab Center for the Study of Language and Information -Stanford University.

7.      SONTAG, Susan. "Na caverna de Platão". In: -----. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. pp.13-35.

8.      VIRNO, Paolo. "El fenômeno del déjà vu y el fin de la Historia". In: ------. El recuerdo del presente: ensaio sobre el tiempo histórico. Buenos Aires: Paidós, 2003. pp. 11-64.

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Márcia Reis Brandão é doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (RJ).

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