ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

BIBLIOTECA DO MUNDO E A BABEL BORGIANA

 

Marcos Fabio de Faria

 

A ordem e o rigor na elaboração de espaços literários, ditos espaços ficcionais, não se limitam só em manter uma relação intrínseca de realidade com as referencias a qual o texto pretende alcançar, mas também podem proporcionar uma noção de memória cultural entre obra e autor.  Podem eles ultrapassar questões meramente taxonômicas sem tampouco limitar-se a uma escrita dita por vezes meramente enciclopédica. O demasiado uso de meios de classificação em busca de uma possível ordem, que levada tão às ultimas conseqüências de rigor e simetrias, podem chegar a beirar uma espécie de caos organizacional. Essa relação de organizar coisas por meios de classificação como gênero, forma, tamanho, nomenclatura e outros, pode ser visto como uma forma de obsessão equivalente ao hábito de colecionar.  Não é comum a um colecionador fazer uma cumulação de coisas aleatórias no mundo, estabelece por hora às coleções um critério de rigor que evolui por sua vez a uma chamada obsessão taxonômica como por exemplo “no vaticano, formaram coleções que, classificadas e catalogadas, eram instrumentos de erudição e consolidação do conhecimento enciclopédico”(BLOM, 2003. P.31.).

 

No que se trata de relação entre espaço e enciclopédia, Jorge Luis Borges em seu conto “A Biblioteca de Babel”, faz uma aproximação muito incomum destes dois assuntos.  A escolha por classificar as coisas e então junto a eles fazer uma afinidade espacial, não só como uma mera analogia situacional, mas sim um tecido onde é impossível classificar estes limites, como nos elucida Maria Esther Maciel em seu livro A memória das coisas. Em um emaranhado de informações que, colecionadas de forma muitas vezes não solipcista, obedecem à própria exigência à elaboração dos espaços físicos reais, pretendem, assim como nos grandes projetos enciclopédicos, manter uma referencia, mesmo que de forma breve, às coisas, fatos e relatos históricos.

 

Criar lugares reais que utilizam ao extremo as formas taxonômicas são comuns às civilizações humanas em seus projetos de urbes - isto quando falamos de um algo maior dito território que não é por momento algum tratado como um mero objeto, mas sim um espaço onde as relações, sejam elas de qualquer procedência, se realizam. Giuseppe Demattteis afirma que “a materialidade do território exprime-se nas relações intersubjetivas derivadas, em ultima instância, da necessidade de produzir e de viver que, ligando os sujeitos humanos à materialidade do ambiente, provoca interações entre si” (DEMATTEIS, 2007.P.8), essas interações os formão membros de uma sociedade.

 

Os territórios do mundo, dentro de um espaço geográfico bem delineado, são referencias do que mais real circunda as memórias culturais de Borges no conto “A Biblioteca de Babel”, pois, aproximam-se do valor estrito do que então se tem por território e nele, mesmo que em situações mais burlescas e impossíveis, são perceptíveis as amarras culturais entre as personagens e os territórios não literários. Relações essas de conflito e trocas culturais das personagens que compõem quadros já existentes nas arestas espaciais das geografias reais. Ao homem, este que não de papel, nota-se uma necessidade organizacional, ora por simbologias, ora pelo uso de sistemas como agendas, estantes, bibliotecas e, de forma mais alegórica, os próprios livros e a disposição de seus assuntos. Deste modo tem-se então a estes homens mais que um fato organizacional, mas uma obsessão culturalista que os levam a classificarem ruas por nomes, casas por números, cidades por nomes e CEPS.

 

Este “universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas” (BORGES, 1998. P.91) é criado na narrativa de Borges a delinear as construções espaciais a partir de uma perspectiva mais geográfica onde “Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois” (BORGES, 1998. P.91). A esclarecer valores que delineiam necessidades explicativas práticas, concisas e coerentes em que autor pode reafirma uma criação territorial.

 

Borges escolhe a formação do espaço literário por limites hexagonais, a nos não conhecemos esses limites, são os quarteirões, por exemplo, os mais legítimos divisores espaciais no nosso mundo. Esses divisores, assim como os hexágonos borgianos, estão, em uma escala menor, a realizar uma separação para motivo organizacional de uma esfera que não se limita somente a irrisórios saberes. A construção do espaço em “A Biblioteca de Babel” pode ser uma metáfora da organização humana em classificar os espaços, segundo um plano diretor[1]. Por sua vez não deixam também de ser uma reflexão dos obstáculos para os fáceis translado dos homens, a poder assim cercear a condição de igualdade entre as estirpes no mundo real tal qual na realidade defendida pelo autor.

 

A taxonomia espacial relaciona de forma ainda mais prodigiosa quando observada de ângulos menos visíveis. Assim como as sondas se afirmam como tais pela classificação crescente, partido, por exemplo, de rua e nesta evolução temos sucessivamente os bairros, cidades, estados, paises, hemisférios, planetas, sistema solar e por ultimo nossa galáxia. Essa sistematização a parti do que se conhece por pais, seria este uma coleção de estados que por sua vez colecionam cidades, etc. Em a “Biblioteca de Babel” Borges alegoriza esta relação humana de separação, pela descrição de espaços bem delineados tal quais os espaços citados acima, assim a classificação dos espaços hexagonais ganham um entremeio do que se tem por espaço físico e espaço cultural. Estes limites definem-se em ambos os espaços, sejam impostas pelos homens como no caso das cidades, seja pelas próprias divisões da natureza, ela que utiliza de diversos limites tais como vegetações, climas e relevos.

 

Dos lugares, historicamente, conhecemos uma relação mimética entre literatura e realidade. Mais que uma localização, os espaços reelaboram uma condição enciclopédica de real e não real a qual imergimos enquanto leito. Assim somos submetidos no texto a uma classificação que nos faz acreditar em uma verdade que é defendida pelo autor. Nestes ambientes hexagonais, que contem todos os livros do mundo e que são rigorosamente organizados, vão se formata em nossa lógica de pensar uma vez que completamente imersos neste sistema organizacional, essa relação taxonômica à que Borges nos submete chega a funcionar como um suplemento à memória.

 

Sabe-se pouquíssimo destes espaços hexagonais, sabemos muito mais do inventário melindroso que é realizado neste texto o número de estantes, de livros nas estantes, de paginas nos livros, de linhas nas páginas e de palavras nas linhas. Esta importância pormenorizada que é dada aos componentes que formam este território não se compunha fora dele, tampouco teriam funções se ele não existisse.  A necessidade de uma explicitação rigorosa da cartografia que compõe “A Biblioteca de Babel” passa a ser na narrativa a maior representação de composição, mesmo que seja ela dividida em milhares de hexágonos, do “universo” ficcional, embora a considerar que as cartografias não busquem uma representação intrínseca da realidade, e sim uma aproximação do que de fato é categorizado por real nas delimitações antrópicas. 

 

O rigor em elaborar todo um universo que condiz com uma proximidade do que pode então ser aceito por “real”, não passa de uma alegoria do que se tem por verdadeiro. Assim os espaços hexagonais se aproximariam às divisões retangulares ou quadradas conhecidas por quarteirões, que o plano diretor escolhe como método para possivelmente manter uma ordem territorial nas cidades. Essa necessidade de manter uma ordem poderia ultrapassar as relações menos solipsistas, onde, tais divisões existem de fato, mas é associada a elas uma responsabilidade de ordem incomensurável que nem sempre são responsáveis. É esse processo que corresponde a um pensamento arcaico e fantasioso das classificações espaciais ideais.

 

Esta categorização de espaço pode ser ainda avaliada em uma escala menor se tratamos das organizações que estes hexágonos borgianos utilizam em seus espaços internos. Cada hexágono é uma representação de uma pequena parcela da enciclopédia maior chamada por “Universo”, são enciclopédias dentro das enciclopédias. Existe nos espaços interiores uma burocracia tão semelhante ao que se tem do lado de fora destes espaços que seriam, então, mundos dentro de mundos. Esta dinâmica espacial dos hexágonos em “A Biblioteca de Babel” fundamenta, em relações de espaços literários, a reestruturação destes lugares. Esta tecnificação da construção espacial na literatura exige, isto partindo de um viés mais simplista, também o reprojetamento dos objetos envoltos nesse mundo. Cada galeria hexagonal e suas estantes têm uma função neste universo construído por Borges, mesmo que esta função seja meramente representativa.

 

A tomar como exemplo os espaços internos, como o das casas, necessita-se de uma primeira localização, pois não se podem ter espaços interiores sem antes ter uma referencia exterior de sua existência. Seria, então, tal reflexão um conceito paradoxal de referencia onde haveriam espaços inseridos em outros espaços. As funções que os territórios internos têm são as de desligar os correspondentes limites que antes os faziam membros de universo comum, e agora são eles próprios universos quando tidos como pontos de referencias. Os cômodos, a disposição dos móveis, os lugares destinados à circulação dos moradores são, a rigor, uma espécie de taxonomia, isto porque a casa seria inexistente sem estas classificações.

 

A localização é uma importante legitimadora deste entre – lugar do dito real e não real. A idealização de uma verdade a ser defendida pelo autor é a mesma observada quando se pretende estabelecer uma consciência espacial que é deliberadamente necessária quando se estabelece uma referencia, seja ela dos sujeitos ou dos objetos, tanto no plano real quanto literário. A identidade espacial que se pretende então estabelecer com o uso de múltiplas informações acerca do que se escreve, mais que aproximarem os espaços literários dos espaços reais, faz tomar uma forma particular que extrapola os limites do próprio livro, dando-o vida viva enquanto referencial de localização, como sugere o autor ao falar que “os idealistas argúem que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço”. É comum aos homens a busca por uma referencia que legitima uma realidade, mesmo que esta seja fantástica.

 

Já os não-lugares representam no texto também uma função de catálogo. Aparecem sem referencias explicitas, marcadas às figuras nômades que existem na narrativa. Elas trabalham a extremidade espacial dos hexágonos, vão catalogando ao longo de suas jornadas os mistérios do “Universo”, assim “muitos peregrinaram à procura d'Ele. Durante um século trilharam em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o hospedava?”. Este espaço inexistente como referencia carrega, ora uma função de ludibriar as referências reais aparentes, ora reafirma na condição de espaço uma reelaboração de realidade, que tal qual andarilhos em mundos reais, onde mesmo sem referencias de espaço não deixam de andarem nos limites geográficos, não se extrapola limites de uma caminhada de hexágonos para hexágonos, ou fora dos seus limites.

 

Borges, enfim, coloca um limite entre enciclopédia e espaço em a “Biblioteca de Babel”, isto por poder aproximar seu conto a uma representação mais cabal do que se tem por real e imaginário, e também como estes dois pontos podem se entrecruzar em uma narrativa. A constante referencia à taxonomia nesse texto faz acreditar que a biblioteca e o mundo dividem uma linha tênue, ambos não se podem ser ordenados sem um critério de seleção previamente determinado. A ordenação desses dois espaços, ficcionais e não, é tido como um exercício de poder, a sugerir que o demiurgo é o detentor de toda razão. A coleção que se compõe no conto segue sempre uma ordenação, como qualquer outro espaço geográfico que encontra-se fora do ficcional (neste inventário têm-se as cidades, estados e países). A explicitação do homem como um ser que pratica, mesmo que involuntariamente, o rigor e a organização assolam em “A biblioteca de Babel” a condição desse ser como exímio colecionador, isto de forma principal aos que tem dentro do espaço a necessidade de delimitar fronteiras para separar o homem do próprio homem no “Universo”.

           

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BARTHES, Roland. As pranchas da enciclopédia. In: Novos Ensaios Críticos. Trad. Heloisa Dantas. São Paulo: Cultrix, 1974.

 

BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca.In: Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987.

 

BLOM, Philipp. Ter e manter:uma história intima de colecionadores e coleções.Rio de Janeiro : Editora Record, 2003.

 

BORGES, Jorge Luis. A Biblioteca de Babel. In: Ficções Rio de Janeiro: Globo, 1998.

 

CALVINO, Ítalo. A Multiplicidade. In: Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia da Letras, 1990.

 

DELEUSE, Giles e GUATTARI, Felix. Introdução: Rizoma. In: Mil Platôs Vol. I. São Paulo. 1995.

 

DEMATTEIS, Giuseppe. As relações de poder e os significados do conceito de território e O conceito de território: movimento processualidades e multiescalaridades.In: SAQUET, Marcos Aurélio, Abordagens e concepções de território.. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

 

FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: Estética: Literatura e pintura, música e cinema.. Trad. Inês Autran Dourada Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

 

FOUCAULT, Michel. Prefácio e Classificar. In: As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.. Trad. Salma Tannus Muchaij. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

 

FUENTES, Carlos. A ferida de Babel. In: A geografia do romance.. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

 

HISSA, Cássio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras. Fronteiras. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

 

MACIEL, Maria Esther,. A memória das coisas: Arthur Bispo do Rosário, Jorge Luis Borges e Peter Greenaway. In:. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

 

PÍGLIA, Ricardo. O ultimo leitor. São Paulo: Compainha das letras. 2006.

 

SAQUET, Marcos Aurélio, Abordagens e concepções de território. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

 

NOTAS

 

[1] Plano diretor vem a ser o planejamento de uma cidade, este plano determina as áreas e suas funções promovendo assim uma maior sustentabilidade  do espaço urbano e agrega, por sua vez, um valor financeiro a cada região de acordo com sua função.

 

 

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Marcos Fabio de Faria, Universidade Federal de Minas Gerais / Faculdade de Letras. E-mail: quitoteatro@gmail.com

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