ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A TRANSFIGURAÇÃO DO MITO NA MODERNIDADE: ADORNO E HORKHEIMER, FRIEDRICH NIETZSCHE E ALBERTO CAMUS

 

 

 

Maria Angélica Amâncio

 

 

“O próprio Estado não conhece leis não escritas

mais poderosas do que o fundamento mítico.”

— Nietzsche

 

 

 

I – Da relação com o Rito e a sociedade grega

 

Quando Ulisses engana o gigante Polifemo, ele o faz por explorar a distinção entre a coisa e a palavra (Oudeis), despojando-se do peso heróico de seu nome e proclamando-se como “Ninguém”, em busca de sua autoconservação. 

 

(...) premido pela necessidade, Ulisses se apercebe do dualismo, ao descobrir que a palavra idêntica pode significar coisas diferentes. Como o nome Oudeis pode ser atribuído tanto ao herói quanto a ninguém, Ulisses consegue romper o encanto do nome. (...) Os dois atos contraditórios de Ulisses no encontro com Polifemo – sua obediência ao nome e seu repudio dele – são, por’em, mais uma vez a mesma coisa. Ele faz profissão de si mesmo negando-se como Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer. (ADORNO, 1985:65)

 

O herói, assim, no lugar de anular-se, reforça o epíteto, a ele concedido, de “astuto”. Naquele instante, é por ser “Ninguém” que Odisseu é o “Vencedor”, o homem esclarecido, que se autoconserva graças a sua inteligência. Ulisses representa a proto-história da subjetividade, portanto a primeira etapa do esclarecimento. Seu epíteto duplo sacraliza e simultaneamente ludibria os poderes míticos para retornar à sua terra natal. “O mundo mítico não é pátria, mas o labirinto do qual é preciso escapar, por mor da própria identidade.” (HABERMAS, 2002: 155)

 

Percurso semelhante percorreu o Mito na história da humanidade. Também ele precisou passar de herói a suposto ninguém para se autoconservar e, novamente e com maior ímpeto, retornar à posição heróica de sua origem.

 

Para as sociedades antigas, especialmente a grega, os mitos estavam, muitas vezes, relacionados aos rituais[1], posto que iam de encontro ao desejo do homem de compreender e de domesticar o mundo exterior.

 

Os ritos seriam primários nas sociedades antigas, já que eles são uma reação anterior ao mito frente a natureza: os ritos são uma tentativa de domar e controlar o mundo natural. Frente ao incomensurável e espantoso mundo ao seu redor, o homem cria ritos, com poderes mágicos, para assim domesticá-lo. Depois do rito institucionalizado, procura-se então um fundamento e explicação para a sua função na sociedade. O mito nasceria desta tentativa de explicação do rito. (PINHEIRO, 2003:123)

 

Destaca-se, contudo, que nem todos os mitos apresentam um ritual equivalente, e que existem também ritos sem um mito que os explique. Certos mitos apresentam aspectos lúdicos e narrativos que não precisam de um equivalente prático ou cerimonial; outros têm a função de sancionar costumes e crenças. No entanto, há traços na teoria ritualística que hoje ainda apresentam grande importância para compreensão dos mitos:

 

O que acredito ser de extrema importância nessa visão dos mitos é a característica dos mitos terem sempre uma contraparte prática, um lado de encenação que qualifica e confere sentido a esse mito. Pensar na relação intrínseca entre mitos e ritos nos leva a ter em mente o lado performático do relato mítico. (...) Se levarmos em conta na noção de mito certas idéias que qualificam a tragédia grega, essa como um exemplo de um ritual grego, podemos pensar melhor o modo de recepção do relato mítico. Os ouvintes de uma tragédia participam da realização da tragédia: o ato de assistir a uma encenação trágica não é passivo, mas ativo, isto é, a platéia tem uma função no desenrolar do drama. Deste modo eles são chamados de ‘theoroi’, os espectadores. (Idem: 124-5)

 

Essa contraparte prática, essa relação entre mito, rito e espectador, pode ser mais bem compreendida se ressaltado o fato de que eram tomados por mito tanto o natural e quanto o sobrenatural, e que a religião abarcava também aspectos políticos e sociais, além de performáticos.

 

Para o homem grego, não se separam, como domínios opostos, o natural e o sobrenatural: o divino pode ser encontrado no mundo tanto quanto o mundano pode ser encontrado no divino. O culto pode ser dirigido a astros, sentimentos, rios, mesmo que não se tratem de deuses propriamente, mas sejam passiveis de manifestar o caráter divino. Não se pode dizer que religião grega seja uma religião da natureza, ou que as deidades sejam personificações das forças naturais. Elas participam da natureza, a integram. “Não são Zeus, mas de Zeus.”(Vernant). Esse deus único, perfeito, incomensurável, não pode ser conhecido pelos homens. Pode-se apenas saber que ele existe, reconhecê-lo. Para preencher a distância entre esse deus soberano e o resto do mundo, há, então, a necessidade de uma mediação. Em uma religião monoteísta, buscar-se-iam revelações ou profetas, messias. Na religião grega, no entanto, esse contato se daria por meio dos próprios costumes, das tradições, dos hábitos; entre o religioso e o social, o doméstico e o cívico, não há separação:

 

A religião grega não constitui um setor à parte, fechada nos limites que viriam sobrepor a vida familiar, profissional, política ou lúdica, sem se confundir com ela. (...) o religioso está incluso na vida social e, reciprocamente, o social, em todos os seus níveis e na diversidade de seus aspectos, é em cada parte permeado pelo religioso.[2] (VERNANT, 1999:15)

 

Uma das conseqüências disso é que o indivíduo não ocupa um lugar central, não participa do culto como criatura singular, mas representa um papel, associado a seu status social: cidadão, pai de família, jovem, membro de uma tribo. Assim, pode-se dizer que a religião está ligada também à política e que, além disso, consagra-se um caráter de maior coletividade à experiência religiosa. Tem-se, com isso, mais uma vez em evidência, o aspecto prático da religião para o homem grego, para o qual era impossível conceber um mundo harmonioso sem a luz da mitologia.

 

 Essa luz, todavia, foi considerada, mais tarde, fonte de infindável escuridão, que precisava ser banida para que tivesse espaço um mundo civilizado, racional, esclarecido.

 

II – Adorno, Horkheimer e a cumplicidade secreta

 

Hegel inaugurou o discurso filosófico da modernidade e descobriu, nesses tempos modernos, uma estrutura de auto-relação que ele denominou “subjetividade”. Tal subjetividade seria elucidada por meio da liberdade e da reflexão. “Hegel substitui a oposição abstrata entre finito e infinito pela auto-relação absoluta de um sujeito que alcançou a consciência de si, da sua substância que traz em si tanto a unidade quanto a diferença do finito e do infinito.”(HABERMAS, 2002:49)

 

Na tradição desse esclarecimento, condição sine qua non para a conceituação da modernidade, o pensamento esclarecedor é entendido como antítese e força contrária ao mito – já que seu programa consistia também no “desencantamento do mundo”, por meio dos discernimentos conquistados individualmente: “O esclarecimento contraria o mito e escapa, com isso, de seu poder.” (Idem:155)

 

Frente a essa relação, Theodor Adorno e Max Horkheimer, em sua Dialética do Esclarecimento, apresentam a tese de uma “cumplicidade secreta” (Habermas) : “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter em mitologia.” (ADORNO apud HABERMAS, 2002:155) 

 

Nessa obra, os autores restituem ao mito o lugar de destaque do qual uma suposta pureza de racionalidade, peculiar ao pensamento moderno, havia se apoderado. Partem, para isso, de uma interpretação d’ Odisséia, de Homero, tomando Ulisses como figura que representa a proto-história do esclarecimento e da subjetividade. Segundo os filósofos, a “organização” dos mitos, originários da tradição popular, já denuncia no espírito homérico uma contradição com os próprios mitos. O ato de cantar as aventuras de Ulisses já seria por si só uma “estilização nostálgica daquilo que não se deixa mais cantar”, e o herói se constituiria assim no “protótipo do indivíduo burguês, cujo conceito tem origem naquela auto-afirmação unitária que encontra seu modelo mais antigo no herói errante.”(ADORNO, 1985:53)

 

A oposição do ego sobrevivente às múltiplas peripécias do destino exprimiria a oposição do esclarecimento ao mito; cada um dos desafios enfrentados pelo herói indicariam o trajeto vivido pela humanidade no sentido de libertar-se da escuridão mítica e caminhar rumo ao esclarecimento, pátria de autoconservação e segurança.

 

Ulisses só consegue retornar a Ítaca, sendo capaz de passar não apenas pelas sereias, mas também por Calipso, Polifemo, Cila, Caríbdis – seres que, de uma forma ou de outra, simbolizam a natureza exterior –, à medida que ele próprio aprende a se dominar a si mesmo. Dito de outro modo: ele só pode dominar a natureza que a ele se contrapõe à medida que domina a sua natureza interna. (DUARTE, 1993: 93)

        

Ulisses aprende a dominar o mundo exterior, mas despede-se, como todo homem que se quer esclarecido, “da felicidade do arcaico ser-um com a natureza, tanto a exterior quanto a interior.”(HABERMAS, 2002:157). Assim, o herói estaria empreendendo, como o homem racional, o sacrifício de si mesmo, de sua natureza, da própria felicidade:

 

O domínio do homem sobre si mesmo, em que se funda o seu ser, é sempre a destruição virtual do sujeito a serviço do qual ele ocorre; pois a substância dominada, oprimida e dissolvida pela autoconservação, nada mais é senão o ser vivo, cujas funções configuram, elas tão-somente, as atividades da autoconservação, por conseguinte exatamente aquilo que na verdade devia ser conservado. A anti-razão do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfazer necessidades, em sua forma objetualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação de necessidades e impele ao extermínio dos homens – essa anti-razão está desenvolvida de maneira prototípica no herói que se furta ao sacrifício sacrificando-se. A história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou por outra, a história da renúncia.” (ADORNO, 1985:61)

        

Uma das passagens mais emblemáticas da Odisséia, “O canto das sereias”, é vista, na Dialética do Esclarecimento, como uma alegoria do homem que possui uma “relação flutuante” com a natureza, assim constituindo-se uma metáfora possível para o conceito de razão instrumental. Quando Ulisses ordena a seus companheiros que tapem os ouvidos com cera e os obriga a remarem com todas as suas forças e seus músculos, ele representa o senhor que faz os outros trabalharem para ele. Os tripulantes do navio não seriam, para Odisseu, iluminados o bastante para poderem escutar o canto das sereias sem sucumbirem. Ele, ao contrário, por ser um homem racional, não apenas merece ouvir tal canto, como também é astucioso o suficiente para elaborar um plano que garanta sua sobrevivência: preso ao mastro, cercado por marinheiros surdos pela cera e pelo trabalho intenso, ele pode gritar, exigir que o soltem, clamar pelo sedutor direito de entregar-se a seus desejos – não será ouvido. Amarrado e impotente, ele se autoconserva. Sua razão lhe serve aos convenientes fins.

 

É exatamente sobre essa razão que refletem Adorno e Horkheimer. Para eles, a razão, tal qual foi concebida pela mentalidade burguesa no início da “era moderna”, possui duas dimensões, a emancipatória e a instrumental. No entanto, com a evolução histórica da burguesia e a dominação das demais classes sociais, sobressaiu-se a dimensão instrumental da razão em detrimento da emancipatória. A primeira pode ser entendida como “a forma de dominação racional com respeito a fins da natureza e dos impulsos” (HABERMAS, 2002:159). Desse modo, Ulisses é visto, no episódio do “Canto das Sereias”, como a negação da dimensão emancipatória, ideal, da razão.

 

Outro alvo do questionamento, empreendido por Adorno e Horkheimer, sobre o abismo que diferenciaria esclarecimento e mito, está na idéia do sacrifício: “Se a troca é a secularização do sacrifício, o próprio sacrifício já aparece como o esquema mágico da troca racional, uma cerimônia organizada pelos homens com o fim de dominar os deuses, que são derrubados exatamente pelo sistema de veneração de que são objetos.” (ADORNO, 1985:57)

Assim, a relação entre mito, ritual e esclarecimento seria não apenas antiga como também atual; haveria, contudo, uma inversão de justificativas: a princípio, o homem camuflaria sua razão em cultos e sacrifícios religiosos; com a modernidade, seria em nome da razão que ele empreenderia o sacrifício transcendental – do outro, de sua união com a natureza, de si mesmo, da própria felicidade.

 

Nietzsche, antes mesmo dos filósofos frankfurtianos, já postulava essa relação construída a partir da interiorização do homem: tendo sido despojados dos seus instintos de “apêndice” a fim de controlar a natureza exterior, os homens tiveram que se entregar à sua consciência, sendo reduzidos a ela, “esses infelizes” (Nietzsche). Porém, ao mesmo tempo, os velhos instintos tiveram que ser domesticados, formando a subjetividade de uma natureza interior. Finalmente, os dois elementos de uma dominação sobre a natureza interior e exterior teriam se unido e se solidificado na dominação institucionalizada do homem sobre o homem.

 

“Esses infelizes”, encontrando-se em um estágio de absurdo divórcio com o mundo, irão precisar recorrer a novas formas de reconciliação: a arte, a revolta, um deus que está por vir.

 

III – Nietzsche e o deus performático

 

A entrada de Nietzsche no discurso da modernidade altera totalmente o rumo da argumentação. Acreditando que, sob o signo da liberdade subjetiva, o excesso de esclarecimento resulta na alienação do indivíduo em relação à totalidade de um contexto de vida ético, o filósofo alemão renuncia a uma nova revisão do conceito de razão e despede a dialética do esclarecimento. Ele descarta o conceito de razão histórica – que, por sua vez, havia superado o elemento unificador da Religião – em favor de seu oposto: uma concepção mítica da realidade. 

 

Nietzsche depara-se com uma razão que, apresentada na forma de uma religião cultural, não mais desenvolve uma força sintetizadora capaz de renovar o poder unificador da religião tradicional. Ao mesmo tempo, é impossível retornar simplesmente às origens, uma vez que “as imagens metafísico-religiosas das civilizações antigas são elas mesmas já um produto do esclarecimento, demasiado racionais, portanto, para ainda conseguir contrapor algo ao esclarecimento radicalizado da modernidade.”(HABERMAS, 2002:126)

 

O ideal nietzschiano de integralização social, portanto, só se faz possível através de uma mitologia renovada esteticamente. Esse ideal de uma nova mitologia, em que a modernidade e o arcaico se tocam, conduz à adesão à arte wagneriana. Nietzsche acredita na passibilidade de uma festa religiosa tornar-se obra de arte, arte do futuro, que se desmentiria como criação de um artista individual e nomearia o próprio povo como artista do futuro. Richard Wagner seria, para Nietzsche, esse “revolucionário da sociedade”, que sobrelevaria a cultura alexandrina: “Somente a arte moderna pode comunicar-se com as fontes arcaicas de integração social esgotadas na modernidade. Segundo essa versão, a nova mitologia exige da modernidade cindida que se relacione com o ‘caos originário’ como o outro da razão.” (Idem:132)

 

Outro ideal dessa nova mitologia nietzschiana inclui o culto a Dionísio, “o deus que está por vir”, como resposta à adoração da racionalidade. Figura messiânica que, diferentemente de Cristo, “guarda, nos excessos praticados em seu culto, aquela reserva de solidariedade social que se perdeu no Ocidente cristão junto com as formas arcaicas da realidade.” (Ibidem:133)

 

É principalmente essa crítica ao vínculo do dionisíaco com o cristão que diferencia o pensamento niezstchiano da nova mitologia proposta pelos primeiros românticos alemães, a qual deveria promover um rejuvenescimento, e não uma despedida, do ocidente: uma nova solidariedade deveria ser restituída, mas não seria rejeitada a emancipação que a liberação dos poderes míticos originários trouxera também para o homem individualizado em face do deus único.

 

Todos os românticos, porém, de uma forma ou de outra, também viam a arte como elemento unificador deflagrador do “espírito” do tempo. Schelling e Schlegel, por exemplo, assim como Nietzsche e Wagner, acreditam no poder da arte de adquirir um caráter de instituição pública, capaz de desencadear a força de regeneração da totalidade ética do povo. Para Schlegel, essa nova mitologia estaria elevada à esperança messiânica, a arte estaria dotada de um caráter místico-encantatório. Para Schelling, a intuição estética substituiria a filosofia, seria o ato supremo da razão. “Verdade e bondade só estão irmanadas na beleza.” (SCHELLING apud HABERMAS, 2002:129)

 

A arte, pensada a partir da tragédia grega, em O Nascimento da Tragédia, é a via de reconciliação em um mundo onde a individuação e a racionalidade instrumental acabaram por promover a separação atônita dos homens uns com os outros e com a natureza circundante:

 

(...) o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza. O consolo metafísico – com que (...) toda a verdadeira tragédia nos deixa – de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, ‘e indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria, esse consolo aparece com nitidez corpórea como coro sátiro, como coro de seres naturais, que vivem, por assim dizer, indestrutíveis, por trás de toda civilização, e que, a despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes da história dos povos, permanecem perenemente os mesmos. (NIETZSCHE, 1996:55)

           

Dionísio é a figura emblemática dessa nova mitologia, por ser, no mundo dos deuses do Olimpo, aquele que põe em questão a ordem política e social, que revela, por sua presença, um outro aspecto do sagrado, insaciável, estrangeiro. Ele está além de todas as formas, escapa das definições, brinca com as aparências, rompe as fronteiras entre o real e o imaginário. Ele abole as distâncias que separam os homens das mulheres, o céu da terra, a juventude da velhice, os animais dos homens, os homens das deidades. Deus excêntrico e forasteiro, ele restitui, ao poder religioso da arte, dessa nova mitologia nietzschiana, o caráter concreto e performático, familiar aos rituais das antigas civilizações, buscando uma subjetividade liberta dos imperativos da utilidade e da moral, e suplantando, ao mesmo tempo, o mal erigido pela segregação dos indivíduos modernos: “Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa da reconciliação com seu filho perdido, o homem.” (Idem:31)

 

A reconciliação, possível pela magia do dionisíaco e pela experiência da arte, estaria muito mais acessível do que o imaginável, uma vez que ela, a arte, precederia a própria vida, segundo Nietzsche: “só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente.”(Idem:47) Além disso,

 

A esfera da poesia não se encontra fora do mundo, qual fantástica impossibilidade de um cérebro de poeta: ela quer ser exatamente o oposto, a indisfarçada expressão da verdade, e precisa, justamente por isso, despir-se do atavio mendaz daquela pretensa realidade do homem civilizado. (Idem: 57)

           

A pretensa realidade do homem, fruto da supervalorização da racionalidade, bem como da supremacia da razão instrumental em detrimento de uma razão emancipatória, atuaria no sentido de promover um sentimento de divórcio entre esse mundo homogêneo, irracional, e o homem, cuja consciência e, especialmente, o fato de estar ciente da finitude da própria vida, despertariam um sentimento de náusea perante a absurdidade do mundo. Tal sensação estaria passível de ser suplantada, mais uma vez, pela arte, para Nietzsche:

 

(...) a arte; s’o ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais ‘e possível viver: são elas o sublime, enquanto domesticação artística do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da náusea do absurdo. (Nietzsche, 1996:56)

 

Outra forma de combater o desterro desse homem absurdo, nas vias dessa concepção do estético como uma atividade verdadeiramente metafísica, é proclamada pelo escritor franco-argelino Albert Camus: “(...) o existencialismo de Albert Camus, com sua noção de ‘revolta metafísica’, pode ser tomado como um descendente desse conceito (nietzschiano).”[3] (BELL, 1998:62)

 

Para tal, um outro mito é transfigurado: Sísifo é o herói do absurdo camusiano.

 

IV – Albert Camus e a condenação de Sísifo

 

Em meados do século XX, a proliferação de fatos devastadores, como as duas grandes guerras, suscitou um pensamento perplexo, que levou a questão do homem a adquirir primazia e voltar a intrigar, antes de qualquer outro objeto. A reflexão perante a ininteligibilidade mundana levou à constatação de que o ser humano estava completamente desamparado, por mais que tivessem avançado sua ciência e seu esclarecimento: “Em face do malogro do dogmatismo religioso e do cientificismo, postula-se que nada justifica a existência e que a vida humana insere-se no contingente. Não há o necessário para apaziguar a angústia humana.” (PAIVA, 2003:155)

 

Nesse contexto, irrompe a filosofia existencialista, para sistematizar essas inquietações, expressar esse sentimento solitário e angustiado e fornecer nova luz à liberdade humana, um dos pilares de sustentação da Modernidade, ainda sólido. O homem se reconheceria como responsável por seus atos, liberto de qualquer instância transcendente e soberana que pudesse justificar seu destino.

 

O absurdo, porém, – sentimento de divórcio entre o homem e sua vida, entre um ser que clama por um sentido, por causas, ainda que más finalidades, e uma realidade que o atropela, irracional – antecede o sentimento de liberdade. Ele surge da capacidade de auto-reflexão, peculiar ao homem moderno, e dos males resultantes da individuação não reconciliada, típicas desse mesmo homem:

 

Começar a pensa é começar a ser minado. A sociedade não tem muito a ver com esses começos. O germe se acha no coração de todo homem. E ali que é preciso procurá-lo. É preciso seguir e compreender esse jogo mortal que arrasta a lucidez em face da existência à evasão para fora da luz. (CAMUS, 2006:27)

 

A substituição, pelo homem moderno, da fé em um deus pela fé no futuro, vem, com o absurdo, entrar em estado de decadência, quando o amanhã, em que se depositam as expectativas e esperanças, ações e desejos, revela-se: é a morte. Não há futuro redentor. Faz-se necessário, então, encarar o absurdo. Camus identificará precisamente nessa tragicidade a sua maior grandeza.

 

Não se trata de subestimar a vida, mas, ao contrário, de afirmá-la. Positividade que virá acompanhada de um sentimento de revolta. Este, todavia, não implica o postular de estratégias de autoconservação que visem a manter a vida custe o que custar. Inversamente, a revolta com a mortalidade e com o absurdo da existência tem como correlato a opção pela alegria e pela afirmação da vida. (PAIVA, 2003:163)

 

O homem absurdo canaliza suas energias não para o eterno, mas para o tangível. Ao optar por essa vida sem conciliação, a experiência de revolta conduz o homem à sua liberdade. Uma liberdade de ação e de espírito que é maximizada quando se rejeita a nostalgia, o suicídio e a trapaça do suicídio metafísico, representado pelas religiões e pela crença em uma vida além desta.

 

É nesse contexto que a alusão ao mito de Sísifo, manifestada pelo autor no ensaio O Mito de Sisifo, torna-se inteligível. Quando os deuses condenaram Sísifo a empurrar um rochedo incessantemente até o topo de uma montanha, de onde ela rolaria, obrigando o herói a ir buscá-la e, novamente, levá-la ao cimo, eles haviam pensado que não haveria maior punição do que o trabalho inútil e sem esperanças. Assim também se dá com os homens: todo o trabalho, de toda uma vida, não gera fruto mais consistente do que a própria morte. Daí a necessidade de se sorver até o limite as paixões que o mundo oferece:

 

Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que ele pensa enquanto desce. A lucidez que devia produzir seu tormento consuma, com a mesma força, sua vitória. Não existe destino que não se supere pelo desprezo. (CAMUS, 2006: 139)

 

Sísifo, na releitura realizada por Camus, é o homem moderno, cuja lucidez conduz à descoberta do absurdo, experiência individual que, contudo, pelas vias da revolta, leva – como o rito na Grécia antiga, como o Dionísio nietzschiano – também a um movimento de coletividade e reconciliação:

 

Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência de ser coletivo, é a aventura de todos. (...) Na nossa provação diária, a revolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é um território comum que fundamenta o primeiro valor dos homens. Eu me revolto, logo existimos. (CAMUS, 1999:35)

 

 

O Mito, em suas transfigurações ao longo da História, perdeu a relação com o ritual, quando, pela modernidade, foi considerado extremo oposto do esclarecimento. Entretanto, ao se colocar em questão o caráter de novidade desse esclarecimento, voltou a estar lado a lado com a razão, e a superá-la, quando, pela arte performática de Dionísio, ganhou novamente ares de culto e o poder de reconciliar com o mundo e a natureza esse homem absurdo da modernidade, também ele passível de ser representado pelo Mito: “Embora o mito possa inicialmente aparecer como o extremo oposto para a modernidade, ele é também o paradigma sobre o qual a humanidade tem repetidamente se reconstruído, ou pelo qual tem conseguido compreender suas formas de vida.”[4] (BELL, 1998:02)

 

É, mais uma vez, negando-se como Ninguém que o Mito se proclama como herói e retorna ao conforto sem igual da Ítaca que, na realidade, nunca abandonou.

 

 

NOTAS

 

[1] Para tal afirmação, toma-se por base a Escola Ritualística, representada principalmente pela Escola de Cambridge, e influenciada por Frazer e Durkheimer.

[2] Tradução livre.

[3] Tradução livre.

[4] Tradução livre.

 

           

 

Referências bibliográficas

 

ADORNO, Theodor, HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

 

BELL, Michael, POELLNER, Peter. Myth and the Making of Modernity. Amsterdam – Atlanta, GA, 1998.

 

CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. 4 ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Record, 1999.

 

_____________. O Mito de Sisifo. 3 ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Record, 2006.

 

DUARTE, Rodrigo. Adornos: nove ensaios sobre o filosofo frankfurtiano. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.

 

______________.  Mimeses e racionalidade: a concepção de domínio da natureza em Theodor W. Adorno.São Paulo: Loyola, 1993.

 

GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

 

HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

 

VERNANT, Jean-Pierre. Mythe et Religion en Grèce Ancienne. Éditions du Seuil, 1990.

 

PAIVA, Rita. “Consciência humana e absurdidade em Camus”. In: Revista Discurso, nº 33. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003. p.153-72

 

PINHEIRO, Marcus Reis. “Formas de interpretar ‘Mito’ em Platão e na contemporaneidade.” In: Boletim do CPA, Campinas, nº 15, jan./jun. 2003, p.121-31

 

 

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