ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O PARATEXTO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL

 

 

Maria Aparecida Barbosa

 

 

Num ensaio chamado “Aussicht ins Kinderbuch”, (Visão no livro infantil), de 1926, Walter Benjamin inicia mencionando uma história de Andersen que trata de um livro cujo valor era meio reino, pois nele os pássaros de fato gorjeavam e os personagens saíam das páginas. Tudo isso enquanto aquela página estivesse aberta, em seguida tudo voltava aos lugares. E Benjamin, que dedicou muitos textos às reflexões sobre os livros destinados ao espírito humano ingênuo e infantil, exclama então: justamente disso eu não falarei!

 

Em seguida explora as origens da ilustração do livro infantil alemão, destacando alguns nomes de ilustradores dos meados do século XIX. Ao estilo artístico que comungavam vários desses artistas, é atribuído a partir de 1900 o adjetivo biedermeier em alusão a um personagem de ficção que surgiu na época, um bedel pobre de espírito e de comportamento apolítico. Hoje em dia, o mais conhecido ilustrador dentro do estilo biedermeier é Karl Spitzweg (1808-1885) que pintava o cotidiano sempre desprovido do elemento mesquinho ou difamador, exclusivamente o belo pleno de cores exuberantes. Em detrimento das cores opacas e fortes empregadas nos livros a que se refere, Benjamin destaca em sua reflexão as diáfanas e transparentes cores que teriam a faculdade de apelar à sensibilidade da intuição, da imaginação, bem como aos jogos infantis; e cita o exemplo do efeito na brincadeira com bolhas de sabão. No final descreve, então, como outro ilustrador, Johann Peter Lyser (1804-1870), lançou mão dessas nuanças para pintar como rotunda uma imagem crepuscular, cujo fogo avermelhado se refulge em primeiro plano nas feições e faces de uma criança debruçada sobre o livro de histórias.

 

A imagem da criança lendo e se inserindo na história através da imaginação, é somente uma representação simbólica do público desses textos literários escritos e ilustrados para todas as pessoas independente da idade.

 

Pretendo apresentar uma série de publicações recentes no mercado editorial brasileiro que auxiliam, por trazerem informações adicionais preciosas, a leitura mais sistemática e acurada da literatura que se convencionou chamar infanto-juvenil. São publicações sobre assuntos imbricados na literatura sem constituírem o texto literário diretamente.

 

No livro de 1982, um estudo que Gérard Genette muito sutilmente denominou palimpsestos, ele se detém na teoria das transtextualidades, entre elas a da paratextualidade: une mine de questions sans réponses (GENETE: 1982. P. 10).  Segundo ele, seriam elementos do paratexto: título, subtítulo, notas de rodapé, epígrafes, ilustrações, sinais acessórios de erudição, que podem até desorientar o leitor purista – é o contexto.

 

Os livros sobre os quais me refiro abordam três desses elementos, respectivamente, a tradução, a ilustração e a capa.

 

Reporto-me primeiramente ao livro Metamorfoses de Kafka, de Celso Cruz, editado pela FAPESP e Annablume em 2007. O autor, estudioso do âmbito dos estudos tradutológicos, esclarece que a pesquisa adota uma linha de investigação aos moldes postulados pelo Centro de Estudos Avançados da Universidade de Göttingen, cujas premissas tornaram-se conhecidas através das conferências “Translating literatures, translating cultures”, que foram realizadas em Stanford e compiladas posteriormente em livro (1998). Dentro dessa concepção, a tradução deixa de ser “prescritiva-produtiva” e passa a incluir informações “histórico-descritivas”, metodologia pela qual se pautam grupos de trabalho da tradução em Tel-Aviv e Göttingen.

 

Diferentemente da tradição mais consagrada e centrada no texto escrito, portanto, é essa proposta mais abrangente que norteia a pesquisa de Cruz sobre a recepção da literatura de Franz Kafka no Brasil. Após sua palestra sobre o assunto, ministrada no último dia 13 na UFSC, testemunhamos o impacto que a macro-visão da perspectiva provoca nos estudantes do assunto.

 

No livro, Cruz aproxima a estratégia de leitura da “sociologia da literatura” cujas atribuições Antônio Cândido arrolou: “pesquisar a voga de um livro, a preferência estatística por um gênero, o gosto das classes, a origem social dos autores, a relação entre as obras e as idéias, a influência da organização social, econômica e política, etc..”

 

Outro paratexto essencial a ser considerado pelo leitor, sobretudo na recepção da literatura destinada à faixa de público específica é o tema do livro o que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil – com a palavra o ilustrador, organizado por Ieda de Oliveira e publicado pela Editora DCL. Por si, o artigo introdutório sobre a história da ilustração entre o século XIX e a década de 1930 equivale a uma dissertação sobre a matéria e transcende o propósito do autor Rui de Oliveira de brevidade, pois fornece ampla gama de informações.

 

Nesse artigo, o autor parte do pressuposto de que é difícil apregoar a autonomia da imagem narrativa nos livros, quando poderosas linguagens de alcance planetário influem no olhar dos jovens leitores, sobretudo na formação de seus valores estéticos. Na torrente implacável e naturalmente irreversível, Oliveira sugere a reversão do processo: o resgate de imagens originais talvez mais puras. E descreve uma trajetória desde os primórdios da ilustração, com o advento da revolução industrial passando pela era vitoriana, até o estabelecimento da ilustração de livros como arte e linguagem própria. Ele evoca raízes remotas como as gravuras para os contos da Mãe Ganso, de Perrault, de 1695, e os contos de fadas do italiano Francesco Straparola, publicados em 1550 e 1553. Desse mesmo Straparola é o conto da carochinha “Teobaldo” que inspirou o célebre conto “Pele de Asno”.

 

Na seqüência de seu artigo, Oliveira traz um estudo muito instigante sobre os trabalhos litero-visuais. Esclarecendo que alguns pintores italianos do cuatrocento, como o dominicano Fra Angélico (c. 1400-1455) já incluíam legendas em seu trabalho com o fim de explicitar imagens do Evangelho que retratavam, ele destaca dois artistas do século XIX, cujas obras contendo desenho e texto estariam na gênese da arte de ilustrar para crianças: William Blake (1757-1827 e Edward Lear (1812-1888).

 

Identificado com assuntos bíblicos, místicos e espirituais, Blake escreveu e desenhou Canções da inocência, nas quais a palavra e a as ilustrações se entrelaçam harmoniosamente, segundo Oliveira, e o livro tornou-se uma obra de referência fundamental da ilustração para crianças, mesmo que o propósito de encontrar uma linguagem infantil não seja evidente.

 

A obra de Edward Lear compõe-se do jogo de rimas e ritmos das parlendas e dos trava-línguas que ele designou “limericks” aliado a imagens.

 

O artigo menciona a angústia e a crise de identidade que comumente atormenta artistas impossibilitados de se dedicarem integralmente à pintura e desapontados trabalham como ilustradores. Crise similar acometeu, por exemplo, o francês Gustave Doré (1833-1883), um dos maiores ilustradores de todos os tempos. São as vogas de valorização de uma ou outra expressão artística que provocam em determinadas épocas descaso ou enaltecimento de uma expressão artística. Essa intermitência explica a razão pela qual Leonardo da Vinci (1452-1519), ao oferecer seus serviços ao duque de Bari em Milão, arrolou suas qualidades, entre elas a de engenheiro militar, e omitiu seus atributos como músico e pintor.

 

Com a palavra o ilustrador contempla na sequência diversos vieses da arte do design, por meio de artigos de Odilon Moraes sobre projeto gráfico, o de Renato Alarcão sobre técnicas, o de Cristina Biazetto falando de cor, o de Ciça Fittipaldi sobre a concepção do espaço, da luminosidade, enfim, das manipulações feitas no interstício entre a leitura do texto escrito e a criação/composição da cena. De cunho semiótico, o livro traz o artigo de Marcelo Ribeiro e, enfim, o delicioso e mágico artigo de Marilda Castanha sobre a maneira como compreende o ilustrador dando visibilidade e voz às imagens muito particulares do pensamento e da imaginação do homem.

 

Além dos artigos, esse livro inclui no final uma série de depoimentos dos ilustradores brasileiros mais conhecidos. Cada um se pauta em um assunto ou questionamento corriqueiro de seu trabalho, mas para o leitor, as informações adquirem funções-chave na decifração do paratexto ilustração da literatura infanto-juvenil.

 

Encerro os comentários sobre a publicação, convocando a imagem com a qual Castanha introduz sua reflexão a respeito da linguagem visual:

 

Em uma das sete histórias do filme Sonhos, de Akira Kurosawa, um japonês visita um museu ocidental e observa atentamente um quadro de Van Gogh. Ele contempla demoradamente a pintura. Num certo momento, entra no quadro e passeia sobre os caminhos pintados por Van Goh. É de uma beleza plástica impressionante essa imagem que ocupa toda a tela, com um homenzinho andando entre os desenhos. Além dessa mistura de realidade e fantasia e da possibilidade de entrar no universo de um artista e de sua pintura, essa história do filme, ou esse sonho, nos mostra como a imagem seduz e consegue fascinar pessoas de culturas e vivências diferentes. Sem as barreiras da língua, o entendimento da imagem torna-se universal, porque o idioma da imagem é a própria imagem.

 

Para me referir ao terceiro elemento paratextual anunciado no início da comunicação, à capa, debruço-me sobre o livro de Alan Powers recém-lançado pela Cosac Naify. A tradução de Otacílio Nunes foi feita a partir de Children’s Book Cover, edição londrina do ano 2003: Era uma vez uma capa – história ilustrada da literatura infantil.

 

Empregando como fio condutor a capa, e apresentando mais de 400 ilustrações, o livro propicia um panorama das épocas e dos gêneros, desde o início do século XIX até os dias atuais. Os breves capítulos estão distribuídos em cinco partes:

 

- dos chapbooks aos livros-presente (os chapbooks tinham uma única folha impressa dobrada em doze ou dezesseis páginas),

- crianças preciosas: as décadas de 1920 e 1930,

- guerra e reconstrução: as décadas de 1940 e 1950,

- a época em que usamos a fantasia: as décadas de 1960 e 1970 e, finalmente,

- da guerra fria à globalização: as décadas de 1980 e 1990.

           

Pela relevância como centro fulcral de repercussão na produção editorial de outros países, os exemplos da literatura infantil de língua inglesa prevalecem. Todavia, capas das fábulas de La Fontaine, de Esopo, dos contos de Hans Christian Andersen e dos Irmãos Grimm, da história de Max e Moritz de Wilhelm Busch são também incorporadas ao conjunto da edição.

 

O desobediente Struwwelpeter que foi castigado tragicamente pelo mau-comportamento, mereceu um capítulo especial. Lembrando que strubbelig significa esgaforinado. Em inglês às vezes o adjetivo foi traduzido para shock-headed Peter ou mantido em alemão no nome do menino. Mantendo o desenho original ou não, o destaque são as versões inglesas, como a primeira-edição de 1848: The English Struwwelpeter or pretty stories and funny pictures for little children. Várias edições mencionam a história da origem do clássico personagem do horror infantil e Powers também a narra. No outono de 1844, o Dr. Heinrich Hoffmann, um especialista em distúrbios mentais, procurou nas lojas de Dresden um livro ilustrado que agradasse o filho de três anos. Não encontrando nada atrativo que o satisfizesse, resolveu criar ele próprio os versos e os desenhos para oferecer ao filho no Natal. Assim surgiu em 1845: Lustige Geschichte und drollige Bilder (histórias alegres e desenhos engraçados).

 

O conto italiano “Pinocchio”, que do mesmo modo aponta às crianças mentirosas uma lição de moral, é mostrado através da capa de uma edição de 1938 ilustrada pelo germano-americano Kurt Wiese. Nessa capa, o desenho apresentava-se independente da transformação e padronização a que se submeteu a imagem do boneco de madeira dois anos mais tarde com o lançamento do filme de animação dos estúdios Walt Disney.

 

A conhecida capa de Emil und die Detektive (Emil e os detetives), de Erich Kästner, está presente no livro devido à imagem muito arrojada para o ano de 1929, por assemelhar-se a um quadrinho de gibi bem pop. O desenho de Walter Trier tem um design límpido, uma pintura com parcos elementos como na pintura do americano Hopper, sombras alongadas vistas da perspectiva de sobrevôo.

 

No ensaio referente às capas da atualidade, Powers explica como algumas condições passaram a favorecer a edição de livros infantis com as facilidades e o barateamento das inclusões de imagens coloridas nas edições, e como isso se deveu à evolução dos recursos computadorizados.

 

No ramo infanto-juvenil, o autor destaca a atuação da Editora Walker Books, fundada em 1978 com foco voltado às vendas (com ponto-de-venda numa grande rede de supermercado inclusive) e às co-edições internacionais visando benefícios advindos das tiragens maiores. Embora perseguisse com objetividade fins lucrativos, a Walker Books privilegiava no catálogo os melhores artistas, ilustradores e autores, entre eles Nicola Bayle e William Mayne.

 

Entre os variados temas das publicações da bem-sucedida editora Walker estava uma temática comum à literatura naquele momento: os problemas emocionais da infância. Segundo o autor, nas décadas de 80 e 90, houve uma inversão dos papéis tradicionais: enquanto os adultos manifestaram predileção por roupas e traços comportamentais infantis, as crianças pareciam crescer mais depressa.

 

Todas essas reflexões são fundamentadas ao longo dessa história ilustrada da literatura infantil com exemplos de capas de publicações consagradas, diga-se de passagem, sobretudo inglesas.

   

Referências bibliográficas:

 

BENJAMIN, Walter. “Aussicht ins Kinderbuch”. In: Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkampf, 1991. IV-2, p. 609.

CRUZ, Celso. Metamorfoses de Kafka. São Paulo: FAPESP e Annablume, 2007.

GENETTE, Gérard. Palimpsestes – la littérature au second degré. Paris: Éditions du Seuil, 1982.

OLIVEIRA, Ieda de (org.). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil - com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008.

POWERS, Alan. Era uma vez uma capa – história ilustrada da literatura infantil. Tradução de Otacílio Nunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

 

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