DESAFIOS DA TRADUÇÃO CRIATIVA:
INVENÇÃO, “TRANSFINGIMENTO” E CRUZAMENTOS CULTURAIS
Maria Esther Maciel
Traduzir uma obra que admiramos é penetrar nela mais profundamente do que o podemos fazer pela simples leitura, é possuí-la mais completamente, de certa forma é apropriar-nos dela. (Valéry Larbaud)
1. A tarefa moderna do poeta-tradutor
Desde Novalis – que associava o “alto espírito poético” à tarefa do tradutor – a tradução, vista como um trabalho também criativo, ocupou um topos especial na história da moderna poesia ocidental, tendo sido exercitada por vários representantes do cânone poético da modernidade, como Charles Baudelaire, Paul Valéry e Ezra Pound. Uma prática, aliás, que se intensificou ao longo de todo o século XX também na América Latina, graças sobretudo a poetas-tradutores como Octavio Paz, Jorge Luis Borges, Augusto e Haroldo de Campos, dentre outros.
Paz, como um dos primeiros poetas-tradutores latino-americanos a marcar a importância das traduções para o contexto poético e cultural de nossa modernidade, chegou a definir o século XX como o século das traduções. “Não somente de textos” – ele diz – “mas também de costumes, religiões, danças, artes eróticas e culinárias, modas e, enfim, de toda espécie de usos e práticas, do banho finlandês aos exercícios de ioga” (PAZ, 1993, p. 165). Mesmo reconhecendo que outros povos, em outras épocas, dedicaram-se à tradução de textos com paixão e esmero (a exemplo da tradução dos livros budistas por chineses, japoneses e tibetanos), ele atribui aos modernos a consciência de que traduzir é alterar, reafirmar o mesmo como outro, como diferença. A era moderna, segundo ele, permite-nos dizer que, se por um lado, a tradução suprime as diferenças entre as línguas, por outro, as explicita, convertendo-se em um exercício de “otredad”.
É nesse sentido que Paz também trata o conceito moderno de tradução como um operador também eficaz no trato de várias questões, como a da relação dos poetas modernos com a tradição, a do diálogo e entrecruzamento entre as culturas do planeta e, mais especificamente, da cultura latino-americana com as culturas estrangeiras. Traduzir passa a ser também uma maneira de assegurar a continuidade de nosso passado ao convertê-lo em diálogo com outras civilizações, e de sustentar o fluxo de uma tradição, na mesma proporção em que a transforma.
Dentro dessa lógica, a tradição ou as tradições devem ser vistas em sua condição de mobilidade ou, como diz Haroldo de Campos, como uma “partitura transtemporal” (CAMPOS, 1993, p. 258) , nunca de cristalização. Do que se depreende que toda tradição viva é sempre outra e só tem assegurada a sua permanência no processo da memória (que, para Paz, é também criadora) e da recepção presentificada que, no caso, funciona também como uma tradução feita simultaneamente de desvios, repetições e transgressões. Como acrescenta Paz, “ao negar a tradição, a prolongamos; ao imitar a nossos predecessores, os transformamos. A imitação é invenção; a invenção, restauração” (PAZ, 2003, p. 147). Em outras palavras, toda tradição sobrevivente ou rediviva o é também em condição de novidade.
Já no âmbito específico da tradução textual, Paz também elaborou toda uma poética do traduzir, assentada nas noções de analogia e de criação poética. Para ele, traduzir e criar são práticas que inevitavelmente se conjugam, visto que “a atividade do tradutor é paralela à do poeta”, embora com uma finalidade diferente: “não se trata de construir com signos móveis um texto singular, inalterável, mas desmontar os elementos desse texto, pôr de novo os signos em circulação e devolvê-los à linguagem” (PAZ, 1992, p. 77). Nesse sentido, em consonância com Paul Valéry, Paz afirma que o ideal da tradução poética “consiste em produzir com meios diferentes afeitos análogos” (PAZ, 1992, p. 77).
Embora tal concepção do ato de traduzir como um duplo da atividade poética esteja vinculada ao ideário moderno, não se pode dizer que ela tenha nascido com o que se convencionou chamar de modernidade. É certo que, após o romantismo alemão, a aliança criação/tradução converteu-se em um princípio para os poetas da tradição da ruptura, mas a primeira notícia que se tem de uma experiência nesse viés, no campo da tradução criativa, remonta à antiguidade, mais especificamente ao século IV d.C., com São Jerônimo, cuja tradução do Antigo Testamento diretamente do hebraico para o latim alterou sensivelmente os rumos da poesia e da cultura ocidental dos séculos subseqüentes. Isso, pelo fato de ele ter tido que inventar, como bem mostrou Valéry Larbaud, não apenas uma sintaxe e um estilo, mas também uma língua ao mesmo tempo “muito popular e muito nobre”, que acabaria por exercer um papel fundamental na constituição das línguas românicas. (LARBAUD, 2001, p. 50.)
Como lembra J. Leslie Hoppe, na época de Jerônimo a língua falada pelos romanos começou a substituir o grego na parte ocidental do Império, o que acabou causando um considerável impacto para a Igreja, pois o Novo Testamento ainda se preservava no idioma original, o grego (HOPPE, 1996, s/p). Como a versão oficial do Antigo Testamento era a tradução grega do hebraico, conhecida como A Septuaginta, os textos sagrados começaram a se tornar cada vez menos compreendidos à medida que o latim se impunha como língua predominante. Assim, a necessidade de uma versão latina da Bíblia foi inevitável. Traduções deficientes e diferenciadas do livro sagrado, feitas a partir do grego com uma função meramente doutrinária, começaram a proliferar, levando o papa a solicitar que Jerônimo fizesse uma revisão rigorosa dos Evangelhos traduzidos, de forma a conferir-lhes confiabilidade e dotar-lhes de uma elegância compatível com a da versão original.
Consta que os textos revisados e os que Jerônimo traduziu do Novo Testamento compuseram apenas a primeira parte da árdua tarefa a que o santo tradutor se entregou e que resultaria na Vulgata, um dos livros formativos da cultura ocidental. A segunda fase desse trabalho deu-se um tempo depois, quando após o exílio no deserto – onde estudou a língua hebraica com a ajuda de um rabino de nome Baranina e se preparou espiritualmente para enfrentar o grande desafio da reescrita do texto bíblico – passou a verter do hebraico para o latim todo o original do Antigo Testamento, contra a orientação oficial que privilegiava a Septuaginta como referência indiscutível para qualquer tradução.
Hebraizar o latim, inscrever a diferença no mesmo, reconfigurar uma língua a partir da estranheza da outra, desviar-se da literalidade e arriscar-se na interpretação dos sentidos do texto foram algumas das diretrizes da obra de Jerônimo, como mostra Júlio Bressane em dois ensaios sobre o santo (BRESSANE, 2000)i. Como um bom precursor dos modernos, ousou na invenção de neologismos, reimaginou metáforas, recusou as regras e os artifícios da retórica do tempo, experimentou novas dicções, aliou o rigor à transparência do dizer. Além disso, interpretou com acuidade teológica os textos sagrados e teorizou o próprio ato de traduzir.
Não se deve esquecer, entretanto, que Jerônimo era um homem de fé religiosa, que tomou sua tarefa como missão e que, ao buscar a beleza da escrita sagrada, o fez em nome da verdade da palavra divina. Nesse sentido, a tradução para ele tinha uma função salvífica, de transportar para a língua dos homens a língua pura de Deus, como mais tarde Walter Benjamin também defenderia em sua metafísica da tradução.
Entretanto, como sabemos, toda tradução que escapa à literalidade e busca reconfigurar poeticamente na língua de chegada “o modo de intencionar” da língua original, orienta-se pelo “lema rebelionário do non serviam”, o que traz à cena a hipótese de uma “tradução luciferina”, entendida por Haroldo de Campos como “a transgressão dos limites sígnicos, no caso o transgredir da relação aparentemente natural entre o que dicotomicamente se postula como forma e contudo” (CAMPOS, 1981, p. 180). E, curiosamente, o nome Lúcifer foi uma contribuição de São Jerônimo para o léxico religioso, aparecendo, pela primeira vez, nessa acepção, na Vulgata.
No âmbito das letras ocidentais do século XX, Jerônimo permaneceu vivo, se considerarmos as já mencionadas poéticas modernas da tradução, voltadas para a ênfase do trabalho criativos. No Brasil, temos o caso exemplar do próprio Haroldo de Campos, que traduziu passagens da Bíblia, em busca do “alto espírito poético”, ao qual se somam os trabalhos de Augusto de Campos e, mais recentemente, o de Donaldo Schüler, que traduziu integralmente o Finnegans wake, de Joyce.
2. Do fulgor da linguagem ao “transfingimento” poético: Haroldo e Augusto de Campos
É sabido que Haroldo de Campos sempre tomou a tradução enquanto um trabalho de “inscrição da diferença no mesmo”. Para ele, cabe ao tradutor criar uma nova linguagem dentro da língua de chegada e interferir radicalmente no próprio fluxo da produção poética do presente, num viés que poderia ser aproximado ao de Jerônimo. Tendo traduzido textos de vários idiomas ocidentais, ousou também a estudar línguas orientais, dentre elas o japonês e o chinês, com o propósito de trazer para a língua portuguesa a visualidade concentrada das formas poéticas orientais – e nisso, pondo em prática os ensinamentos poundianos incorporados pelo concretismo. Além disso, dedicou-se ao estudo do hebraico para reescrever a Bíblia, ou partes dela, à luz dos experimentos poéticos da modernidade. Buscou reeditar assim, ainda que movido por um impulso em nada compatível com o pathos religioso ou com os propósitos de acessibilidade que moveram o empreendimento de São Jerônimo, o gesto criativo do santo, que como disse Bressane, foi o primeiro “a visionar o valor e mastigar (‘limando os dentes’) a hebraica veritas”, a partir de uma concepção inteiramente nova do ato de traduzir (BRESSANE, 2000, p. 7).
Entretanto, enquanto Jerônimo fazia da interpretação uma busca exegética da “verdade” escondida sob as palavras, Haroldo toma a interpretação como uma leitura ao revés, que muitas vezes culmina no deslocamento dos enunciados do original. Se o primeiro traduz em nome do Pai, o outro o faz em nome do que chamou de “desmemória parricida” (CAMPOS, 1981, p.209). Um conduz o trabalho como uma missão; o outro, como um projeto. Onde Jerônimo vê o fulgor de Deus, Campos vê o esplendor da forma.
Esses traços haroldianos pertencem, com certeza, a todo um projeto desenvolvido por ele ao longo da segunda metade do século XX. Desde meados dos anos 50, quando foram definidas as diretrizes do concretismo, ele e os demais adeptos do movimento deram-se a tarefa de, em nome da materialidade da linguagem, traçar as diretrizes de um projeto no qual o trabalho de tradução, este concebido – à luz dos ensinamentos de Ezra Pound e do conceito de “antropofagia” extraído de Oswald de Andrade – como um método de leitura, crítica e criação simultaneamente. E foi dentro dessa proposta tradutória, pautada na ênfase das potencialidades sonoras e visuais da linguagem, e ainda numa espécie de “desconstrução maxilar” da tradição estrangeira, que o poeta se dedicou a converter não apenas alguns textos bíblicos diretamente do hebraico, como também cantos de Dante e Homero, poesia moderna francesa, anglo-americana, espanhola, hispano-americana, italiana, alemã, russa, chinesa e japonesa. Como Octavio Paz, mas de maneira mais radical, Campos atribuiu ao tradutor a tarefa de inventar poeticamente, considerando que ao tradutor cabe “transcriar, excedendo os lindes de sua língua, estranhando-lhe o léxico, recompensando a perda aqui com uma intromissão inventiva acolá, (...) até que desatine e desapodere aquela última húbris (culpa luciferina, transgressão semiológica?) que é transformar o original na tradução de sua tradução” (CAMPOS, 1998, p. 82).
Tal diretriz também se dá a ver, de forma incisiva, no trabalho tradutório de Augusto de Campos, a exemplo do livro Invenção – de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti (CAMPOS-2, 2003), que reúne em um mesmo volume as traduções dos trovadores provençais Arnaut Daniel e Raimbaut d’ Aurenga publicadas no livro Mais Provençais, em edições de 1982 e 1985, e traduções inéditas de seis cantos da Divina Comédia (4 do Inferno e 2 do Purgatório) e de poemas líricos de Guido Cavalcanti e do próprio Dante.
Interessante que, ao elaborar uma justificativa para o seu trabalho criativo, Augusto de Campos tenha buscado, no livro Verso reverso controverso, de 1988, uma base na poesia de Fernando Pessoa, ao afirmar: “Tradução para mim é persona”. “É quase heterônimo. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor” (CAMPOS-2, 1988, p. 7).
Com essa alusão pessoana, Augusto de Campos não deixa de conferir ao ato de traduzir poemas também um caráter ficcional, tomando a tradução como uma espécie de simulação criativa do próprio fazer poético. O que o aproxima também, por vias transversas, de Jorge Luis Borges, outro mestre do fingimento, que ao percorrer as várias traduções feitas ao longo dos séculos de As Mil e uma Noites, Borges comenta que Galland, o tradutor francês da obra, nela insere o conto “Aladim e a lâmpada maravilhosa”, inexistente em outras versões. E questiona as acusações de que o tradutor teria falsificado a narrativa, afirmando que Galland tinha tanto direito de inventar um conto quanto os criadores do livro. E pergunta: "¿Por qué no suponer que después de haber traducido tantos cuentos, quiso inventar uno y lo hizo?" (BORGES, 1989 p. 240). Ao repensar, pela via ficcional, o trabalho do tradutor como um exercício também autoral, Borges aniquila “as pretensões de paternidade literária" (MONEGAL, 1980, p. 69), privilegiando a recepção em detrimento da produção e, consequentemente, minando as próprias noções de original e de originalidade, tão cara às teorias tradicionais da tradução.
Creio que essa idéia de tradução como “refingimento”, ou “transfingimento” (no dizer de Haroldo de Campos), permite-nos pensar no processo de transposição do texto de uma língua para outra também enquanto um jogo de justaposição de subjetividades (ou máscaras) poéticas. De quem é o “eu” que fala no poema traduzido? Onde se inscrevem os limites entre a voz do poeta e a voz do tradutor? Em que medida este dá à sua língua um poeta inventado? É nesse sentido que traduzir é também um exercício de “outridade”: inserir-se no outro e, ao mesmo tempo, atraí-lo para fora de si mesmo; assumir uma identidade postiça no ato de fazer seu um dizer alheio. Um solo a duas vozes, como diria Octavio Paz, que acaba por exigir uma relação de afinidade/identificação do tradutor com o poeta traduzido, mesmo estando eles marcados pela diferença.
No que se refere especificamente a Augusto de Campos, essa relação de afinidade/identificação com os poetas que traduz não se inscreve apenas no âmbito da afinidade pessoal (traduzir como forma de exercitar uma admiração), mas, como já se disse, também se vincula a um projeto estético bastante específico, que remonta às próprias bases do movimento da Poesia Concreta. Ou seja, mesmo admitindo que sua maneira de amar um poeta estrangeiro é traduzi-lo, Augusto o faz também com propósitos de estabelecer um paideuma, um catálogo de nomes que considera medulares para justificar sua própria poesia e a linhagem poética em que se insere. Não bastasse isso, ainda associa o trabalho de tradução ao ato de deglutir o outro, numa óbvia alusão à noção de antropofagia oswaldiana e à poética de tradução haroldiana. Mas, como lembra Else Vieira, não se trata apenas de uma “citação verbatim do Manifesto antropófago (‘Só me interessa o que não é meu’)”, visto que Augusto de Campos “se nutre também de dos próprios textos traduzidos para criar sua metalinguagem tradutória” (VIEIRA, 1996, p. 73).
Isso é bem notável no referido livro Invenção, haja vista que essa coletânea de poetas e poemas constitui um conjunto rigorosamente pensado, no que tange tanto às afinidades que cada poeta mantém com o outro no âmbito da textura sonora da linguagem, quanto às relações de ordem “genealógica” entre eles e com a própria obra poética do tradutor. Pela lógica dos parentescos que atravessa o livro, Raimbaut foi precursor de Arnaut – dentre os poetas da Provença, “o mais ousado, o mais moderno, o que experimentou com formas menos convencionais e ousou as linguagens menos previstas” segundo Augusto (CAMPOS, 2003, p. 159) – cujo “artesanato furioso” foi admirado/revitalizado por Dante que, por sua vez, manteve com seu contemporâneo Cavalcanti uma espécie de cumplicidade no uso de sofisticadas “reverberações vocálicas”, as quais “encantaram o ouvido sensibilíssimo” de Ezra Pound que, por seu turno, é o mais lídimo precursor, em termos do amálgama tradução/crítica/criação, do próprio Augusto de Campos. Uma linhagem de poetas construída, portanto, com base na função poética da linguagem, no princípio moderno da invenção e nas preferências estéticas do tradutor.
Na escolha dos cantos dantescos, por exemplo, Augusto conseguiu dar corpo a um Dante que só poderia ser o seu. Atento não apenas aos rigores da métrica e da terza rima, mas também à imaginação visual do poeta toscano, explorou as condensações imagéticas dos Cantos I e V, do Inferno, o “desesperanto interlingüístico” que marca o enigmático Canto VII e as cenas do encontro de Virgílio com poetas provençais, descritas no Canto XXVIII do Inferno e nos Cantos VI e XXVI do Purgatório. Cada texto traduzido traz, em sua nova pele, um acento particular do tradutor, visto que este se empenhou em realizar uma espécie de “operação poética de rejuvenescimento lingüístico” (CAMPOS, 2003, p. 184) da poesia dantesca, assumindo todos os riscos dessa aventura tradutória. Marca, dessa maneira, a presença de Dante no seu repertório poético particular e o articula, sob o signo da invenção, com os demais integrantes desse paideuma.
Assim, sob o influxo do lema poundiano do make it new, Augusto de Campos dá seqüência, nesse livro, ao seu zeloso trabalho de reconfigurar a tradição segundo as diretrizes de um projeto poético e teórico. Ao entrar na pele dos poetas escolhidos, reinventa-os, torna-os seus e outros de si mesmos. Converte-os em heterônimos pela força de um idioma que lhes é estranho e constrói um teatro (no sentido pessoano) de subjetividades fingidas, que se justapõem dentro de sua própria voz de poeta-tradutor.
De um modo geral, creio que os irmãos Campos, com sua poética de tradução criativa, contribuíram para o nível das traduções de poesia que têm sido feitas hoje no Brasil. Mesmo que muitos tradutores contemporâneos recusem a proposta “haroldiana” de transcriação, sob a alegação de que ela estaria mais a serviço da produção criativa do tradutor do que para a sobrevivência da voz do autor traduzido; mesmo que nela encontremos uma tendenciosidade estética (e certamente ideológica), cuja meta principal é reforçar as diretrizes de um projeto específico de vanguarda, não dá para negar a importância dessa proposta para a reconfiguração dos rumos da prática de tradução no cenário cultural do Brasil das últimas décadas.
3. Finnegans wake em tradução
No horizonte brasileiro da tradução criativa, destaca-se ainda a tradução do Finnegans wake (1939), de James Joyce, publicada em cinco volumes pelo professor, ensaísta e escritor Donaldo Schüler, entre 2000 e 2003.
Embora se perceba nesse admirável trabalho um certo influxo dos poetas concretos, tal influência se apresenta filtrada, digerida, visto que Schüler aproveita desse legado sobretudo aquilo que lhe interessa do ponto de vista da linguagem: o cuidado formal, o rigor criativo, a atenção à função poética. Mas não se coloca a serviço do projeto a que esses princípios estão vinculados. Ele acaba, por nos trazer, por isso mesmo, um outro Joyce, um Joyce mais dado às impurezas, híbrido, atravessado de humor, referências mitológicas, místicas, históricas e filosóficas. E está aí, certamente, o maior mérito desse impressionante trabalho.
Impressionante porque é com uma certa perplexidade que nos colocamos diante de tal empreendimento. Afinal, Donaldo Schüler ousou enfrentar o desafio de levar até o fim a quase impossível tarefa de traduzir para outra língua todo o labirinto que constitui o romance (ou anti-romance) de Joyce. Um trabalho de tradução que, não bastasse reconfigurar em um novo contexto a intrincada rede ficcional que compõe o livro de Joyce, revela como o tradutor arriscou-se a inventar uma outra língua dentro da língua portuguesa. Ou sonhar uma outra língua portuguesa, num gesto analógico ao do próprio autor, que criou um inglês onírico, labiríntico em sua própria estrutura, no qual emergem e se misturam fragmentos de mais de 60 línguas, algumas delas esquecidas, recalcadas, reprimidas, inventadas, imaginadas e exiladas.
Ao tentar reinventar seu próprio idioma no ato de traduzir essa língua estranha, Donaldo Schüler veio, sem dúvida, evidenciar – à feição de Haroldo de Campos – que traduzir é uma tarefa de acréscimos à civilização. Não apenas sob o ponto de vista da experimentação da linguagem, mas também no plano mais amplo das relações culturais. Isso, porque ao rigor artesanal que uma tradução como esta exige, Schüler buscou aliar uma minuciosa pesquisa dos mitos, dos textos literários e das referências histórico-geográficas que servem de solo para a anti-narrativa de Joyce. Pesquisa esta que se desdobrou na não menos árdua investigação de várias dessas referências no âmbito da cultura brasileira e na paciente elaboração das “notas de leitura” que acompanham e elucidam cada capítulo traduzido.
Se, como vimos, na modernidade o legado de Jerônimo se reinventa nos vários trabalhos de tradução criativa daqueles que o elegem como precursor (ou santo protetor), pode-se dizer que, no empreendimento tradutório de Schüler, ele também se realiza com vigor, à medida que traduzir Finnegans Wake não deixa de ser um desafio quase bíblico – retomando aqui uma narrativa de Ricardo Piglia, que vê o livro como uma Bíblia do futuro (PIGLIA, 1992, p. 118-134). Um exercício que demanda exegese, sacrifício, rigor e invenção. Mas, à diferença do desafio assumido por Jerônimo, demanda também um impulso lúdico e quase sempre “joycoso”, do tradutor. Esse impulso Donaldo explora com grande liberdade, convertendo a aridez e o esforço quase penitencial do trabalho em um jogo bem humorado, em um regozijo intelectual.
É nesse sentido que ele traz ao cenário brasileiro um outro Joyce: um Joyce híbrido, carnavalizado, ainda que não deixe de apresentar também os traços formalistas do Joyce que a tradução de excertos do livro feita pelos irmãos Campos, em Panaroma de Finnegans Wake (CAMPOS, 1971), nos legou. Em outras palavras, as impurezas, as mesclas culturais, o humor rabelaisiano, as cosmogonias erótico-cômicas, as dimensões mítica e mística, os conflitos de ordem política também são explorados pelo tradutor, nos ofereceu um autor multifacetado e transcultural.
Para concluir, evoco mais uma vez São Jerônimo, que mais do que nunca parece estar presente no nosso tempo através de seus ensinamentos tradutórios, como signo da experimentação, do rigor e do entrelaçamento de culturas. Seu legado continua alimentando, explícita ou implicitamente, os tradutores que tomam o exercício da tradução como uma experiência também criadora.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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JOYCE, James. Finnegans Wake / Finnicius Revém (5 vols.) Trad. Donaldo Schüler. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999-2003.
JOYCE, James. Finnegans Wake /Finnicius Revém (5 vols.) Trad. Donaldo Schüler. São Paulo: Ateliê, 2000-2003.
LARBAUD, Valéry. Sob a invocação de São Jerônimo. Trad. Joana Angélica. São Paulo: Mandarim, 2001.
MONEGAL, Emir R. Borges e Paz: um diálogo de textos críticos. Borges: uma poética da leitura. Trad.Irlemar Chiampi. São Paulo: Perspectiva, 1980.
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PIGLIA, Ricardo. La ciudad ausente. Buenos Aires: Seix Barral, 1992.
VIEIRA, Else Pires. Fragmentos de uma História de Travessias: Tradução e (Re)Criação na Pós-Modernidade Brasileira e Hispano-Americana. Revista de Estudos de Literatura. Belo Horizonte, v. 4, out.1996. pp. 61-80.
Notas
O cineasta brasileiro Júlio Bressane, antes da publicação dos dois ensaios sobre São Jerônimo, realizou um filme longa-metragem sobre o santo tradutor, em 1999. A ênfase dada nos ensaios é exatamente aos aspectos criativos da tradução bíblica feita por Jerônimo. Uma análise desse filme, bem como uma abordagem mais demorada do trabalho de São Jerônimo podem ser encontradas no livro: MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas – ensaios sobre literatura, cinema e artes plásticas, de 2004, pp. 61-69.
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Maria Esther Maciel, poeta, ensaísta e ficcionista, publicou o livro de poesia Triz e os de prosa O Livro de Zenóbia e O Livro dos Nomes, entre outros títulos.
Leia também uma entrevista com Maria Esther Maciel, poemas da autora e os ensaios Poesia à flor da tela e David Lynch e a estética do pesadelo.
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