O mundo não posso mudar –
Deixa-me sacudir a areia
Das tuas sandálias
(Casimiro de Brito, “Através do Ar”, ed. Schichigatsudo, 23, Tóquio, 2008, p. 28.)
Muito jovem, Casimiro de Brito parte para Londres, onde acabou por viver até 1968. Tendo ficado alojado no apartamento de um professor de estudos orientais, tomou contacto com a poesia japonesa pela primeira vez. E essa presença iria marcar, em definitivo, a sua própria poética. A extrema condensação do haiku e o choque que esta poética teve sobre si marcar-lhe-iam decisivamente o rumo poético. Numa entrevista que Casimiro deu a Andreia Brito, em 2005, “O essencial ainda está por vir”, explica assim o poeta à entrevistadora:
Conheci uma poética que hoje considero ser a mais bela de todos os tempos (comparável só às nossas cantigas de amigo); entrei num campo de trabalho como eu gosto, a longo prazo, para sempre; entrei na vida (física, mental, sensível) de um ser celestial, a minha amiga japonesa, enfim, coisas bonitas que mudaram o meu caminho. Nunca mais deixei de respirar essa poesia e, sobretudo, nunca mais deixei de pensar (e de fazer) que é preciso conhecer mais do que a nossa tradição poética.
Essa presença da poesia japonesa e das suas musas poéticas prolongou-se no tempo (e ainda continua viva pelos contactos de Casimiro de Brito com a poesia japonesa) e lembro duas obras fundamentais: “À Sombra de Bashô: Renga com Matsuo Bashô” (2001) e o livro “Através do Ar”, escrito em colaboração com Ban’ya Natsuishi, composto de haikai que são traduzidos, simultaneamente em inglês, francês e português.
O haiku, que no plural se designa por haikai (um termo que significa “versos de diversão”), constitui a forma lírica japonesa por excelência. Tradicionalmente o haiku consta de dezassete sílabas, divididas em 3 versos, seguindo o esquema 5/7/5, para descrever qualquer cena natural ou objecto, concentrando um sentimento, uma ideia ou um aforismo, tal como nos ensina Martin Gray, in “Haiku”, na página 132 da sua obra. Ainda de acordo com o tema dominante, multiplica-se em quatro subgéneros: wabi (frugalidade), sabi (isolamento), aware (impertinência) e yugen (mistério). Continua, ainda, Jorge Sousa Braga, na mesma página, a explicar-nos a estrutura do haiku, dizendo que “do ponto de vista puramente retórico, o haiku divide-se em duas partes, separadas por uma palavra-chave: Kireji.” A primeira parte, segundo o autor, “dá a condição geral e a ubiquação temporal ou espacial do poema (o outono ou a primavera, uma árvore ou uma rocha…); a outra, explosiva, deve conter um elemento activo. Uma é descritiva e quase enunciativa; a outra, inesperada. A percepção poética surge da colisão entre ambas.”
A estética do haiku tem, ainda, vários pontos de afinidade com o aforismo, pela mesma retórica, pelo mesmo sentido de economia e de rigor poético, daí que ela tenha entrado na literatura ocidental pela estética do fragmento, tão cara aos poetas alemães românticos, tendo como cultor máximo do género o poeta Novalis. E o poeta Casimiro de Brito foi, também, ao longo da sua obra, um exemplo maior da escrita aforística. Cito aqui, a título de exemplo, “A Arte da Respiração”, editado pela D. Quixote (1988), “Da Frágil Sabedoria”, das edições Quasi (2001), “Fragmentos de Babel” (2007) e “Arte de Bem Morrer”, pela Roma Editora (2007). A peculiaridade e o próprio sentido desta estética do fragmento nasce do próprio instante e da concentração temporal nele existente, do Aqui e do Agora que se abrem na sua leitura. Isto é, o poema conquista a sua plenitude à luz da organicidade e da estruturação que dele irradia, da sua própria concentração temporal e espacial. Por isso e, como me disse um dia o poeta, cada poema deve ser lido ao centro, para que, da concentração do olhar, surja também a contemplação da origem e do fim do poema, da palavra e da coisa. Cada aforismo, cada haiku, cito Casimiro de Brito, é “simultaneamente um ovo e uma pedra”. Na entrevista que deu a Andreia de Brito, Casimiro diz, sobre o haiku:
(…)Tem a forma de um ovo, de onde pode nascer um pássaro. É um texto mínimo que, começando por surpreender, vai transformar-se em coisa do outro, do leitor, uma vez que a sua estrutura enigmática se presta à interpretação. Deve ser perfeito como um ovo ou uma pedra: não há nele uma sílaba a mais, mas tudo o que lá está é muito mais. A única comparação possível é com a forma mais bela de poema que existiu: o haiku.
Esta compreensão do haiku só pode nascer da articulação do tempo a-histórico com aquele tempo em que vivemos, o tempo quotidiano, onde a outra dimensão temporal se revela e manifesta, em cada uma das partes, reclamando uma pertença antiga. Relembro aqui a bela definição de Edmond de Jabès:
C’est pourquoi j’ai rêvé d’une oeuvre qui n’entrerait dans aucune catégorie, qui n’appartiendrait à aucun genre, mais qui les contiendrait tous; une oeuvre que l’on aurait du mal à définir, mais qui se définirait précisément par cette absence de définition (...) un livre enfin qui ne se livrerait que par fragments dont chacun serait le commencement d’un livre.
A estética do haiku ou do fragmento recusa a ideia de um acabamento ou de uma definição da obra e esta vai-se fazendo à medida que se escreve cada poema, definindo-se precisamente pela ausência da sua definição, avançando contra as evidências e o fechamento imposto pelo formal, recusando o acabamento e a imperfeição, colhendo, em cada verso a imperfeição e o segredo, o inesperado. E, como Casimiro de Brito gosta de nos recordar, “o poeta é aquele que trabalha com o segredo”, habitando o umbral do querer dizer das línguas e do mundo, numa luta perdida contra o emudecimento da matéria.
Esta tensão interna, este “segredo” da matéria e do mundo e que constitui a sua opacidade é o que confere à poesia de Casimiro de Brito esta poderosa imagética, evidente, desde logo, no título “A Boca na Fonte”, que nos remete para essa busca do primordial, do acto de beber directamente da fonte, aqui dupla, pois é no sentido da natureza e simultaneamente da linguagem.
Uma poética que se faz irmã da terra e da água, da escuta e da visão directa. Cito dois haikai, para dar ideia desta proximidade: por exemplo, o número 43, na página 16: “Silêncio. Ouçam/a vida – água correndo/cada vez mais triste” ou o 48, da página 17: “Diante do mar/o meu coração derrama-se/e vai com as ondas.” Cosmos, palavra, coração são rostos de uma mesma realidade, metamorfose incandescente que se fixa no haiku, em que o poema se coagula na forma de imagem, breve e luminosa. Se os elementos e a força da terra e da natureza perpassam a sua poética, sob as mais variadas formas, desde a ínfima gota de chuva ou grão de areia até ao enigmático silêncio das constelações, também o onírico deflagra, a todo o instante, para nos recordar a brevidade da vida e do instante: “Viagem nocturna –/ regresso à origem do sonho/donde nunca saí.”
Morte e vida, sonho, natureza e linguagem são os diversos rostos que constituem a poesia de Casimiro, sempre. Seja na sua forma lírica ou de fragmento, em particular. Desses nomes essenciais dá conta a sua linguagem poética, revelando uma profunda sabedoria que se entrelaça com a simplicidade e o rigor da sua poética. Se, por um lado, Casimiro é dos mais inspirados poetas portugueses e disso nos dá conta a sua “paleta lírica”, por outro, é senhor de uma contenção e de um rigor irrepreensíveis, que nunca o deixam resvalar para o sentimentalismo. Esse é um segredo que poucos detêm na sua poesia, feita de demora e de paciência, o tempo em que o poeta sonha o mundo e o transforma em linguagem e em luz.
Cito um haiku deslumbrante e que resume esse rumo poético: o haiku 6 da página 8: “Na prosa do dia/a rosa alumia. Que prosa/se tudo é rosa?”. É por esta razão que o poeta René Char dizia que a poesia era superior à filosofia e a qualquer metafísica. Na poesia de Casimiro, a filosofia e a sagesse lavram esse sulco, em que a poesia deita a sua semente, onde a concentração da imagem atinge o seu esplendor e um ponto de intensidade raros. Como raros o foram os poetas-pensadores da Antiguidade Grega, guiados pelo rigor e pela claridade enigmática do pensamento. É desta sabedoria e desta humildade que se constrói o poema, desta pobreza essencial da finitude humana, esse magma secreto e indizível do poema, que recusa a beleza e a perfeição. Por isso, diz Casimiro, no haiku 12: “Homem caminhando./Árvore nómada em busca/da mãe obscura.”
Mãe obscura da vida ou da linguagem? Essa é a questão que coloco ao poeta.
|