O VÔO SUSPENSO DO TEMPO:
ESTUDO SOBRE O CONCEITO DE IMAGEM DIALÉTICA
NA OBRA DE WALTER BENJAMIN
Maria João Cantinho
Plus il avançait vers cette image trompeuse du rivage de
l'île, plus cette image reculait; elle fuyait toujours devant
lui, e il ne savait que croire de cette fuite
Fénelon, Télemaque, IX.
Elas, as imagens, podem convocar os nossos sentidos, a nossa
imaginação ou o nosso pensamento. Muitas vezes, convertem-se
no próprio alimento do pensamento, tal a sua pregnância. Isso
não faz delas personagens secundárias, mas antes e pelo
contrário, são personagens centrais, aglutinadoras do sentido,
concentrando em si a potência do pensamento. Por vezes
enigmáticas, ambíguas, mas também podem ser metáforas
luminosas, guiando-nos através da obscuridade da razão. No
caso de Walter Benjamin, a imagem desempenha um papel
fundamental, um fio condutor e tem inúmeras repercussões nas
mais diversas áreas, desde a fotografia ao cinema e à pintura,
da questão da linguagem até à concepção da história, do tempo
e da modernidade.
A cada momento, na sua escrita e obra, confrontamo-nos com
essa evidência e, ao mesmo tempo, com o embaraço que é próprio
da relação entre a palavra e a imagem. À medida que se adensa
a leitura e a tentativa de compreensão dessa relação, tanto
maior o número de paradoxos e dificuldades que daí ressaltam.
Atesta-se, assim, a presença de aporias, mas também a
fecundidade polémica que nos permite avançar no pensamento,
questionando a evidência e a pertinência do olhar, bem como a
possibilidade de constituição da imagem, enquanto princípio
dinâmico e potenciador do seu pensamento. Mais do que isso,
como tentarei demonstrar, a imagem dialéctica revela-se como a
preciosa chave capaz de abrir a compreensão da concepção da
história e do tempo
em Walter Benjamin.
A imagem, mesmo tomada no seu contexto mais genérico - não
falando ainda especificamente da "imagem dialéctica" -
"possui, ao mesmo tempo, uma virtude de concretude imediata e
a capacidade de suscitar a prática",
de acordo com o autor.
Se, por vezes, a relação entre a palavra/pensamento e a imagem
nos aparece, na sua obra, como a mais cristalina evidência (e
raros são os casos), que se adequa à expressão de uma ideia, a
título de exemplo, todavia, na maior parte dos casos, vibra
asperamente a estranheza no seu interior, obrigando-nos a uma
concentração do olhar. No entanto, o que nos é desde o início
anunciado, no seu pensamento, é esse compromisso incontornável
com a imagem. E, se por um lado, essa contaminação se revela
muito sedutora, por outro, pode revelar-se perigosa, pela
ambiguidade que comporta.
Procurei circunscrever a minha análise da imagem no pensamento
benjaminiano e focar-me na questão da imagem dialéctica e
crítica, enquanto instrumento de cognoscibilidade e que é, ao
mesmo tempo, condição e fruto da legibilidade da história. A
partir deste nó, tento levar a cabo uma compreensão do
conceito, tanto como instrumento, como enquanto condição
operatória, que muitos autores (sobretudo os que se encontram
ligados ao pensamento da história de arte e da comunicação)
consideram ser um pensamento imagético por excelência,
mantendo uma intensa familiaridade com o pensamento de Aby
Warburg como igualmente das concepções surrealistas da imagem,
pelas quais o autor se interessou vivamente, nomeadamente o
conceito de Warburg, da "imagem em movimento" e as técnicas de
montagem tão utilizadas pelos artistas do movimento
surrealista. O surrealismo já havia mostrado a Walter Benjamin
de que maneira a imagem poderia preencher uma função
revolucionária.
Não podemos afirmar a existência de um pensamento sistemático
da imagem em Benjamin, mas antes um tecido complexo de
reflexões, em torno das infinitas relações entre imagem e
pensamento que, de forma imprevisível, determinaram e
influenciaram as mais variadas disciplinas, indo da técnica e
da arte até à fotografia, à pintura, ao cinema, tendo tido o
seu impacto determinante da história de arte, na história, na
crítica literária (a multiplicidade de estudos literários e
críticos que tomam por base os pressupostos benjaminianos da
linguagem e da tradução é imensa). E são essas consequências,
que geraram novas formas de pensar a arte e a crítica, a
compreensão das modalidades artísticas, que nos permitem
avaliar a importância do seu pensamento na actualidade e na
reflexão contemporâneas.
Se, como o disse anteriormente, não existe em Benjamin um
pensamento sistemático acerca da imagem - o que de resto
podemos afirmar relativamente aos vários domínios por ele
abordados, desde a linguagem à história, da arte à técnica -
ateste-se, no entanto, uma reflexão incontornável sobre o
olhar, sobre a natureza e as funções da imagem, que perpassa
todo o seu pensamento e chega até aos nossos dias de uma forma
inesgotável.
Não é possível falar de modernidade sem referir a reflexão
benjaminiana acerca do pensamento da aura e do seu
afundamento, da experiência do choque como descoberta do
desaparecimento da aura e da familiaridade do olhar,
tão magistralmente abordada por Baudelaire
e por Benjamin, em Baudelaire.
Tematizando as grandes fantasmagorias do homem do século XIX,
consciente do falhanço da experiência autêntica (Erfahrung) e
da sua dissipação na experiência vazia do choque (Erlebnis),
o autor reconhece o lado saturniano da experiência alegórica,
cuja imagem não é senão a apresentação dessa queda.
A percepção lúcida de uma nova época, a da reprodutibilidade e
da técnica, onde emerge uma nova relação com as coisas, com o
trabalho, com a cidade, passa por uma compreensão das novas
modalidades de relação do homem com a tradição, com a
linguagem, a história, o conhecimento. Essa mutação contamina
toda uma visão absolutamente diferente da história e do
conhecimento e passa, sem dúvida, pela perda da visão aurática
e nostálgica do passado para uma compreensão dialéctica e
crítica (operada pela imagem dialéctica), que é apresentada,
na sua forma mais luminosa, n'O Livro das Passagens e, também
nos últimos escritos de Benjamin, em 1940, nomeadamente Sobre
o Conceito de História.
Importa, pois, perceber que o eixo fundamental dessa revolução
coperniciana - como lhe chamou o próprio Benjamin - se
encontra suportado, não apenas por uma reflexão acerca da
linguagem e da história, mas também da natureza da imagem e da
função da dialéctica no seu pensamento. Arriscaria, mesmo,
dizer que a imagem alberga em si, pela polaridade e tensão que
comporta, pela sua natureza interruptora, desconstrutiva e
violenta, toda a possibilidade de acesso ao conhecimento da
história e da temporalidade messiânica que nela se encontra
alojada. Para ele, a imaginação é uma faculdade que percebe as
relações íntimas e secretas das coisas, as correspondências e
as analogias. Ela é que realiza a montagem, por excelência e
não desfaz a continuidade das coisas senão para fazer surgir
melhor as "afinidades electivas". Entre o conceito goethiano
de imagem e a noção de correspondência baudelaireana, Benjamin
vê na imagem o modo de dar a ver o conteúdo histórico das
coisas. Como veremos, existe na imagem uma componente de
violência, que antecipa a apresentação do conteúdo histórico.
A Imagem Dialéctica
Como Aby Warburg,
historiador de arte e antropólogo de imagens (como ele próprio
se intitulava), Benjamin pôs a imagem no centro nevrálgico da
vida histórica. Como ele, compreendeu que um tal ponto de
vista exigia a elaboração de novos modelos de tempo, levando a
cabo uma crítica da visão positivista e progressista da
história. A imagem não está na história como um simples ponto
sobre uma linha. Ela possui uma temporalidade de face dupla:
precisamente como imagem dialéctica, como se verá
posteriormente, em toda a sua equivocidade.
No Livro das Passagens, onde Benjamin projecta, de uma forma
fragmentária e ambiciosa, a reflexão sobre a modernidade, o
desenvolvimento do conceito de imagem atingiu o seu brilho
mais intenso. É o clarão irradiante que se constitui como o
que melhor define a natureza da imagem dialéctica, como o
afirma o próprio autor em [N 9 7]: "A imagem dialéctica é uma
imagem fulgurante. É então como imagem fulgurante no Agora da
cognoscibilidade que é preciso reter o Outrora". Esta
fulguração, que é intrínseca à imagem dialéctica é também o
sinal ou o sintoma que indicia a salvação da história, pois
"toda a concepção autêntica do tempo histórico repousa
inteiramente sobre a imagem da redenção". V. Livro das
Passagens, [N 13 a, 1].
Todo o conhecimento da história, de acordo com o próprio
autor, não pode ser senão fulgurante
condição que evoca claramente a dimensão judaica e teológica
da interrupção,
sincopando e rasgando a continuidade da temporalidade
histórica. É, pois, à luz desta concepção messiânica da
história e do seu conhecimento, que deve ser compreendida a
noção de imagem dialéctica, enquanto apresentação da história
no seu clímax. Palpitando no coração da história, é ela que
rompe, desmonta a "falsa historicidade" e permite que o
autêntico fenómeno da história, arrancado ao seu anonimato,
seja devolvido ao seu "lugar pleno", enquanto fenómeno
originário que contém em si a sua pré e pós-história, numa
imagem síncrona.
Como o afirma Walter Benjamin, a imagem dialéctica é uma
imagem crítica, pois constitui-se como a interpenetração
"crítica" do passado e do presente, sintoma da memória
colectiva e inconsciente - é isso mesmo que produz a história.
Como ele o diz, na passagem [N 2 a, 3], "Não é preciso dizer
que o passado esclarece o presente ou que o presente esclareça
o passado. Uma imagem pelo contrário, é aquilo em que o
Outrora encontra o Agora num clarão para formar uma
constelação". E acrescenta: "só as imagens dialécticas são
imagens autênticas (ou seja, não arcaicas); e o lugar onde as
encontramos é na linguagem".
Se atendermos ao texto benjaminiano das teses Sobre o Conceito
de História, como se sabe, o último texto que o autor
escreveu, em 1940, podemos confrontar alguns excertos com O
Livro das Passagens, cruzando-os para obter uma leitura mais
clara e significativa. Quando Walter Benjamin afirma que "o
mundo messiânico é o mundo da actualidade integral e, de todos
os lados, aberta",
refere também que este é um "espaço de imagens" (Bildraum)
"que nós procuramos", acrescentando que esse é o lugar da
história universal. Essa actualidade "supõe uma língua
universal, não uma língua como outra qualquer, mas a própria
língua, celebrada e festejada, purificada". Ela "é a ideia da
prosa, que é compreendida por todos os homens, como a língua
dos pássaros é compreendida pelas crianças nascidas num
domingo". Esta passagem, que foi tematizada admiravelmente por
Agamben, no ensaio "Langue et Histoire",
parece concentrar o que de mais íntimo caracteriza o
pensamento benjaminiano: a relação indissociável entre a
imagem dialéctica, a história - e a possibilidade do seu
conhecimento - e a linguagem, enquanto lugar por excelência da
apresentação da sua visão messiânica, visão que reclama a
total "abertura de todos os lados, integral", retomando uma
tradição vasta do judaísmo, que se alarga à actualidade.
A necessidade de redimir a história da humanidade é o desejo
que sustém a tarefa benjaminiana de romper com uma visão
tradicional da história, insuflando-a de utopia. A imagem
dialéctica, à luz desta concepção, aparece também como imagem
de desejo,
na sua condição equívoca e dialéctica; por um lado, de ver
destruir o fio da continuidade, por outro, o desejo de um
tempo que há de vir. O desejo utópico, tal como ele se
apresenta na imagem dialéctica, vive nessa dilaceração íntima
e que ganha a sua configuração na dialéctica em suspensão.
Por outro lado, subjacente ao estudo da transversalidade entre
história, imagem dialéctica e linguagem, esteve sempre
latente, também, o desejo de compreensão do fenómeno
originário, à maneira goetheana,
intenção aliás claramente expressa no livro das Passagens:
"Apareceu-me de forma clara e nítida, ao estudar a
apresentação de Simmel do conceito de verdade em Goethe, que o
meu conceito de origem no livro sobre o drama barroco é uma
transposição rigorosa e concludente do conceito de Goethe do
domínio da natureza para este da história. A origem (.) Ora,
eu empreendo também no trabalho sobre as Passagens um estudo
sobre a origem. Procuro reencontrar a origem das formas e das
transformações das passagens parisienses, do seu nascimento ao
seu declínio (.)".
Como se pode ver, a noção de imagem dialéctica condensa,
tomada enquanto categoria/condição de apresentação, a mais
complexa significação na obra de Benjamin. Ela não é somente
uma imagem, no sentido vulgar do termo, mas a absoluta
concentração de todas as categorias benjaminianas. Fulgurante,
ela é expressão de um tempo desformalizado e qualitativo,
messiânico, como é, também, potência originária, imagem de
desejo, no seu sentido mais amplo, isto é, converte-se na
máxima expressão da possibilidade de conhecimento da história,
ao transformar-se numa síntese autêntica e única, irrepetível.
Trata-se, assim, do fenómeno originário da história, cuja
potencialidade da síntese é elevada ao seu mais elevado grau.
A imagem dialéctica não pode conceber-se senão como "imagem
fulgurante". Mas como é que procede uma tal imagem? A que
nível ela opera? A ambiguidade paira sobre o texto de
Benjamin. É verdade que a imagem dialéctica permanece aberta e
inquieta, instável. É como se nela se configurasse a
possibilidade de uma cesura, cujo sintoma é o clarão do
reencontro entre o Outrora e o Agora, projectando a sua luz
para uma dimensão a que poderemos designar por aquilo que há
de vir. Se a possibilidade do conhecimento histórico acontece
no acto imediato da visão deste clarão, a leitura da imagem
dialéctica configura-se então como o gesto absolutamente
incontornável para a cognoscibilidade da história.
Neste sentido, a possibilidade da leitura da imagem dialéctica
configura-se como o seu motor fundamental ou condição
operatória que gera o conhecimento histórico verdadeiro. Se,
por um lado, ela é capaz de, por um efeito destrutivo, operar
uma cesura na continuidade da história, por outro, ela leva a
cabo a descoberta de uma pertença, que lhe permite a
elaboração de uma síntese autêntica. Por isso a imagem
dialéctica e crítica contém em si uma dimensão monadológica,
que lhe descobre o próprio autor:
"Que o objecto da história seja arrancado, por uma explosão,
ao continuum do curso da história: é uma exigência que decorre
da sua estrutura monadológica. Isto não aparece senão quando o
objecto é destacado por explosão (.) O objecto histórico, em
virtude da sua estrutura monadológica, encontra representado,
no seu interior, a sua própria história anterior e posterior."
Como podemos claramente deduzir, a "destrutibilidade" é uma
característica absolutamente fundamental na constituição do
objecto histórico. Ela é a condição sine qua non daquilo que
nos parece ser a possibilidade da construção de um novo olhar
histórico, numa visão da história a contrapêlo.
É através dela que se opera a desformalização do tempo e se
rompe a "falsa continuidade" da história, para dar lugar à
verdadeira síntese que constitui o objecto histórico. Como o
próprio autor o afirma:
"O momento crítico ou destruidor, na historiografia
materialista, manifesta-se pela desintegração da continuidade
histórica, desintegração que permite ao objecto histórico a
sua constituição. De facto, é absolutamente impossível visar
um objecto no curso contínuo da história. (.). Do mesmo modo
que Heisenberg enunciara a lei da incerteza da física
quântica, lançando-nos no desconcerto, dada a impossibilidade
de observar o electrão na sua trajectória sem que o próprio
olhar do observador interferisse nela, também Benjamin percebe
a vertigem autofágica a que sucumbe a teoria do progresso,
tornando impossível ao historiador seguir a "trajectória do
objecto histórico na continuidade do tempo".
Se Heisenberg traçara o grande paradoxo da física, ao enunciar
a lei da incerteza, o impacto da afirmação benjaminiana
relativamente à visão da história é igualmente importante para
a sua compreensão. Ao dizê-lo, Benjamin declara o fracasso da
visão positivista, reclamando um novo paradigma para o
conhecimento histórico. Aos seus olhos, apenas a visão
materialista
alcança o fenómeno histórico. E, se a imagem dialéctica é a
expressão final dessa desintegração, enquanto momento
desconstrutivo, ela constitui-se simultaneamente como crítica,
na medida em que a sua legibilidade é a sua condição
essencial. Que a legibilidade da imagem seja considerada como
um momento da dialéctica da imagem, isso tem um significado
duplo: se, por um lado, a imagem dialéctica produz, ela
própria, uma leitura crítica do seu próprio presente, na
conflagração que produz com o seu Outrora, ela produz, então,
um efeito de cognoscibilidade, no seu próprio movimento de
choque, onde Benjamin via a "verdade carregada de tempo até à
sua explosão".
Por outro lado, esta nova concepção da imagem coloca, como já
vimos, uma nova concepção do tempo, não apenas material, como
também espectral (função que é admiravelmente explicada por
Huberman e, antes dele, por Mário Pezzella).
Ela visa a pré-história (Urgeschichte) das coisas sob o ângulo
de uma arqueologia que não é somente material, mas também
psíquica,
como um sintoma da própria vida psíquica e da memória. Isto é,
a história é perspectivada na sua dimensão mais espectral,
numa dialéctica da consciência e do inconsciente: numa
dialéctica do sono e do sonho, do sonho e do despertar. Cada
época histórica e cada objecto histórico se constitui
dialecticamente como um "espaço de tempo"(Zeitraum) e como um
"sonho de tempo" (Zeittraum).
Isto significa que a imagem dialéctica é, ela própria, sintoma
desta espectralidade do tempo, imagem "onírica". Ela concentra
o momento da cognoscibilidade histórica, que se constitui
nessa dobra do sonho e do despertar, ou seja, no instante
biface do despertar, como que suspenso nessa ambiguidade. Este
despertar (gesto que convém ao historiador, como uma decisão a
levar a cabo), como o afirma Benjamin, é "a revolução
coperniciana, dialéctica da rememoração",
evocando a experiência proustiana da rememoração.
Do mesmo modo que Proust começa a história da sua vida pelo
despertar, cada apresentação da história
(Geschichtsdarstellung) deve começar pelo despertar,
insistindo Benjamin
nesta viragem como a revolução coperniciana. Esta constante
interrelação entre o despertar e a configuração da imagem
dialéctica aparece frequentemente no Livro das Passagens. A
analogia entre o momento do despertar [N 3a, 3] e o Agora da
cognoscibilidade (Jetzeit) remete-nos para a ideia de
"iluminação profana", que os surrealistas levavam a cabo.
Do mesmo modo que "Proust começa a história da sua vida pelo
despertar, cada apresentação da história deve começar pelo
despertar, ela não deve mesmo tratar-se de outra coisa" [N 4,
3]. Paradigma da dialéctica, o despertar convoca o presente
para o passado, faz com que a luz do presente ilumine o
passado, na sua forma descontínua. Aquele que desperta é o que
sai do sonho, que também poderíamos chamar o pesadelo da
história (vista à luz do paradigma historicista). É o que
desperta de uma visão mítica da história, arcaica.
Aquilo que surge nesta dobra dialéctica - entre o sonho e o
despertar - é a imagem. Cada apresentação da história deve,
assim começar pela imagem porque é precisamente uma imagem, o
que é libertado pelo despertar, como bem o reconhece Huberman.
A imagem é colocada, antes de tudo, no próprio centro da
história, enquanto fenómeno originário,
mónada ou objecto histórico.
É através dela que o ser se desagrega e explode.
Ao desintegrar-se, mostra aquilo de que é feito, através da
imagem e nela própria. Deste modo, a imagem não se reduz a uma
representação mimética, mas é "o intervalo tornado visível, a
linha de fractura entre as coisas",
a fissura que torna possível a abertura.
A imagem autêntica será então pensada como uma imagem
dialéctica,
pensada, como Benjamin o faz, como uma fulguração. Esse clarão
constitui-se como a marca da historicidade, comportando em si
o momento crítico e perigoso da sua legibilidade. As
potencialidades da imagem são, por um lado, a da explosão; no
sentido em que se desagrega, pelo seu carácter destrutivo, a
continuidade e a homogeneidade do tempo; a do clarão, pois é
essa luz que permite, na imagem, a leitura do autêntico
fenómeno originário da história, permitindo a sua
apresentação. A actualidade da imagem nasce da relação entre o
Agora (instante, clarão) e o Outrora (latência, fóssil),
relação de que o futuro (tensão, desejo) guardará os traços. É
pois neste sentido que Benjamin definiu a imagem como
dialéctica em suspensão: (.) Não se trata de dizer que o
passado esclarece o presente ou que o presente esclarece o
passado. Uma imagem, pelo contrário, é aquilo no qual o
Outrora encontra o Agora num clarão, para formar uma
constelação. Por outras palavras: a imagem é a dialéctica em
suspensão. Porque,
enquanto que a relação do presente ao passado é puramente
temporal, a relação do Outrora com o Agora é dialéctica: ela
não é de natureza temporal, mas de natureza figurativa
(bildlich). Só as imagens dialécticas são imagens
autenticamente históricas, ou seja, não arcaicas (.)"
.
Que tempo opera sobre a imagem no seu trabalho dialéctico? A
suspensão faz-nos pensar numa ruptura. É a imobilização
instantânea, num movimento ou num devir. "Quando o pensamento
se imobiliza numa constelação saturada de tensões aparece a
imagem dialéctica. É a ruptura na continuidade do pensamento",
fazendo emergir um contra-ritmo: o ritmo dos tempos
heterogéneos, marcando o verdadeiro compasso da história. A
história, ao fissurar-se, desagrega-se em imagens,
e não
em histórias. Rompe-se
a narrativa da história, marcada pelo fio da sua continuidade.
Do mesmo modo que, na linguagem, a modernidade é marcada pela
desagregação da narratividade, correlato da perda da
experiência autêntica, também a história é sincopada por
imagens, rompendo o fio narrativo da história contínua. A
lucidez do olhar recusa a totalidade, a "bela ilusão", é antes
atraída pela errância do fragmento que dá a ver em si a sua
essência. Tal como Aby Warburg, também Benjamin acredita que
"Deus se encontra nos detalhes", que o ínfimo permite a
intimidade e a descoberta da pertença recíproca.
A imagem dialéctica contém o poder de desmontar ou
desconstruir a história. Didi-Huberman estabelece uma analogia
com a metáfora do relojoeiro que desmonta o relógio para ver
como ele funciona.
No momento em o faz, este deixa de funcionar. Esta paragem,
síncope na continuidade da história, é a dialéctica em
suspensão, que abre a possibilidade ao relógio para funcionar
de outro modo, acertando-o pelo compasso de uma outra
temporalidade. Assim, como Huberman o afirma, "pode-se
desmontar um relógio para aniquilar o insuportável do tempo,
mas também para se compreender melhor como funciona, para
reparar o relógio defeituoso. Tal é o duplo regime do verbo
desmontar". É por isso que é preciso entender o que Benjamin
diz, quando afirma que a imagem dialéctica não é qualquer
coisa que se desenrola, desenvolve e cresce, mas uma imagem
suspensa. Um salto, uma ruptura no fio da continuidade, uma
cristalização imagética, para que tudo volte a integrar uma
outra dimensão da temporalidade - a do tempo messiânico.
Desmontar, efectivamente, para que possa voltar-se à montagem
da história. Esta ideia da "desmontagem" está entrelaçada com
a da suspensão, a "dialéctica da suspensão" produtora de uma
visibilidade que é, ao mesmo tempo, originária, arrastando
consigo o turbilhão da história, mas que também é estrutural:
está votada à desmontagem da história como à montagem de um
conhecimento mais subtil e mais complexo do tempo. Uma imagem
que "desmonta" algo, que desintegra e dá a ver o modo como as
coisas "funcionam", nos seus mais ínfimos detalhes, é uma
imagem que faz suspender, que confunde, que problematiza o
real, supondo o desconcerto e o choque. Este princípio do
choque, violento, caracteriza justamente a violência utópica
que emerge na imagem dialéctica.
Mas esta suspensão antecede o método benjaminiano da montagem
dialéctica: a sobreposição dos tempos, a descoberta de uma
nova ordem para o acontecimento histórico, liberto da
continuidade. A montagem supõe, com efeito, a desmontagem, a
dissociação prévia para reconstruir uma nova síntese,
heterogénea. Recompondo assim uma nova estrutura, o trabalho
da montagem define-se como o novo método de conhecimento: O
método deste trabalho: a montagem literária. Não tenho nada a
dizer. Só a mostrar (.).
É preciso, então, dar aos objectos dispersos uma nova ordem,
incrustrando-as numa outra ordem histórica, à maneira do
coleccionador, tal como Benjamin refere, no texto sobre Fuchs.
O historiador procede a essa reinversão da dispersão empírica
resultante da ruptura dialéctica. A montagem dialéctica,
levada a cabo pelo historiador, aparece então como uma
operação de conhecimento histórico. Tudo - sintomas, crises,
imagens, latências, Outroras e Agoras - é integrado, formando
o objecto do conhecimento histórico e que não pode
dissociar-se do método: Um método científico caracteriza-se
pelo facto de que, encontrando-se novos objectos, ele
desenvolve novos métodos. Exactamente como a forma em arte se
caracteriza pelo facto de que, conduzindo a novos conteúdos,
ela desenvolve novas formas. É somente por um olhar externo
que a obra de arte tem uma forma e uma só, e que o tratado tem
uma forma e uma só..
Como vemos, a imagem dialéctica apresenta-se, aos olhos do
historiador, como um paradoxo. Se por um lado ela representa
ao mesmo tempo a sua negatividade (pelo seu teor fantasmático,
o seu anacronismo, etc., ela é, por outro lado, fonte de
conhecimento, a desmontagem da história e a montagem da
historicidade. Algo a que, na sua dupla condição, Huberman
chama a malícia da imagem.
Sem querer cair nas pretensões teológicas do termo, dir-se-ia
que esta malícia se faz insidiosa na imagem e cria um
mal-estar na representação. Como um sintoma da catástrofe da
história, insidiosa e latente, na representação da imagem. O
exemplo mais pungente desse mal estar é precisamente a imagem
do "anjo da história", o Angelus Novus.
O anjo é a mais pura representação dessa malícia do tempo e da
imagem. Concentra a dolorosa condição daquele que se vê
impotente perante a catástrofe.
Mas, ao mesmo tempo, nessa dupla condição, a imagem dialéctica
é também redentora da dispersão empírica, integrando os
destroços da história, tal como Benjamin nos mostra na
metáfora do telescópio, aplicada à história e à sua montagem,
conferindo a esses destroços avulsos a mais bela e simétrica
ordem, que lhe é imposta. Quando o autor fala da imagem
dialéctica como de um processo em que o "o passado [se vê]
telescopado pelo presente"
[N 7ª,3], ele não utiliza certamente essa palavra
(telescopagem) sem a lúcida consciência do paradigma duplo que
aí se encontra contido: por um lado; o valor de choque, de
violência, em resumo o valor de desmontagem que sofre a ordem
das coisas, e, por outro, o valor de visibilidade, de
conhecimento, o valor da montagem de que beneficiam, graças ao
telescópio, a visão ao perto e a visão longínqua. A metáfora
do telescópio aplicada à imagem, trouxe a Benjamin um conjunto
de reflexões que se prende com a multiplicidade de
configurações visuais, com o ritmo plural do tempo, igualmente
com a fecundidade dialéctica. O carácter errático com que se
desmontam e se formam novas imagens, ao mesmo tempo que ocorre
a sua configuração estrutural, a ideia benjaminiana do
historiador como aquele que "apanha os detritos da história",
o Lumpensammler, criando a história, configurando-a a partir
desses mesmos detritos, são os aspectos que se prendem de
forma mais indissociável nesta dimensão da dialéctica
em suspensão. No
caleidoscópio, a poeira dos objectos permanece errática, mas
ela é encerrada numa caixa inteligente, que confere a esses
detritos formas articuladas, orgânicas e simétricas. Os
agregados transformam-se em formas, mas jamais cristalizadas.
A disseminação e a reestruturação são os seus princípios
fundamentais, persiste nessas formas a sua condição de
dialéctica negativa.
Esta fenomenologia do caleidoscópio, como lhe chama
Didi-Huberman,
"exprime não apenas a sua estrutura de imagem - a sua
dialéctica e o seu duplo regime - mas ainda a sua própria
condição - condição igualmente dialéctica, duplo regime - do
saber sobre a imagem e sobre a arte
em geral." Assistimos,
assim, com Walter Benjamin, com o surrealismo, com as
tendências estéticas da modernidade, a um estilhaçamento da
harmonia e da bela totalidade que preenchiam o ideal da beleza
do século XIX. As grandes experiências musicais do século XX,
como Schönberg, Boulez, Stockhausen, vieram demonstrar, no
campo da música, como a harmonia já não é palavra de ordem, do
mesmo modo que a pintura e a arte nos mostraram (com Cézanne,
Picasso e os surrealistas, enquanto pioneiros) que a
continuidade, a forma bela e arte figurativa se tornaram
anacrónicas. As imagens, no contexto da modernidade, sofreram
uma mutação profunda da sua natureza. O espaço da arte deu
lugar à representação imagética do movimento, da pluralidade
do ponto de vista, de uma "actualidade vista de todos os
pontos de vista, aberta". Arauto de uma experiência em
declínio (e notemos como Benjamin foi porta-voz de uma
modernidade emergente e em vertiginosa mutação), de uma
captação lúcida de uma nova época da reprodutibilidade e da
técnica, que foi a do nosso século passado, o seu pensamento
inquieto tentou traçar uma arqueologia da modernidade, uma
arqueologia das imagens que ainda hoje perdura, enquanto marco
fundamental do pensamento estético, da história e da
linguagem.
Como podemos concluir, para Benjamin a imagem foi
constantemente um veículo da reflexão e da comunicação.
Expressão da metamorfose do seu pensamento, ela foi-se
adaptando à evolução das suas ideias e pode-se dizer que a
cada uma das suas fases corresponde ao nascimento de uma
concepção diferente da imagem. Tome-se, em primeiro lugar, o
conceito de imagem alegórica que aparece na sua obra A origem
do Drama Barroco Alemão, ou o conceito controverso (e
original) das imagens-pensamento (Denkbild), mais ligadas à
linguagem de carácter fragmentário e frequentemente
aforístico. Veja-se a evolução do conceito da imagem sob a
forte influência do surrealismo, na qual Benjamin bebe a
técnica da montagem. Durante o período do marxismo, a imagem
sofre uma dupla metamorfose; por um lado, a reflexão sobre a
fotografia, que reforça a teoria do choque e a sua oposição à
aura; por outro, a imagem dialéctica.
Esta dinâmica constante, no seio do próprio conceito, faz com
que perseguir o conceito nos deixe no embaraço, como a
personagem de Fénelon. Quanto mais nos aproximamos, mais ela
nos foge, como um animal selvagem e esquivo, indiferente ao
nosso apelo. A sua bravia beleza fascina-nos. Mas são em vão
os nossos esforços, restam-nos os traços, a enigmática
presença do que nos escapa.
(Conferência proferida em 5 de dezembro de 2007 no Centro
Cultural de Belém para o Congresso Imagem e Pensamento da
Universidade Nova de Lisboa.)
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