ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

MANIFESTAÇÕES DA IDENTIDADE FRAGMENTADA: PRESENÇA DA DUALIDADE DO FEMININO NO CINEMA E NA LITERATURA

 

 

Mayara Costa Pinheiro

 

 

Pretende-se neste estudo desenvolver uma análise pelo viés do dialogismo entre dois gêneros diferentes: o literário e o fílmico. Para isso, utilizaremos os estudos de Brait (1997) sobre o dialogismo, em Zecchin (2004) sobre a representatividade dual do seio e Tomaz (2007) no que diz respeito fragmentação identitária do feminino, como fonte de subsídio teórica.

 

Esta análise estabelecerá pontes com relação à dualidade de mãe-mulher que unem tematicamente os dois gêneros: o filme O curioso caso de Benjamin Button,  produzido nos Estados Unidos, em 2008, sendo que esta história é baseada num conto de F. Scott Fotzgerald, produzido em 1920; e no poema Teus seios, que é de autoria do poeta norte-rio-grandense Manoel Virgílio Ferreira Itajubá. Este poeta publicou poemas nos jornais do estado do Rio Grande do Norte entre os fins do século XIX e início do século XX.

 

Os temas que se assemelham permitem o estabelecimento de relações entre diversas áreas, como, por exemplo, entre a Literatura e o Cinema. Nestas relações, percebemos o diálogo existente entre estas duas áreas, podendo assim, falar em dialogismo, pois os elementos presentes nos dois textos, de diferentes naturezas, o literário e o fílmico, dialogam-se e consignam num mesmo tema.

 

Seguindo a perspectiva de Bakhtin, Brait (1997) compreende que “o dialogismo diz respeito ao permanente diálogo nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade.” (p. 97) Dessa forma, pode-se perceber que os textos produzidos estão dialogando e se relacionando constantemente, independentemente de tempo, espaço e até a mesmo a natureza destes. Daí, a possibilidade de identificar o diálogo existente entre textos de natureza diferentes como o fílmico e o literário, que se desenvolve nesta exposição.

 

Esse diálogo, como disse Brait (1997) “nem sempre simétrico e harmonioso”, pode ser de concordância ou discórdia, mas é necessário que haja um entrelaçamento de idéias que se unam num único conjunto por um viés temático em comum. A capacidade do dialogismo, de independer da cultura que se originou o texto, permite que um filme produzido no início do século XXI, nos Estados Unidos, se relacione com um poema produzido no início do século XX no Brasil, especificamente, no estado do Rio Grande do Norte.

 

Além do diálogo, os textos apresentam inúmeras vozes em sua constituição, fato que permite o subsídio para os estudos da Literatura Comparada, que tem como principal objeto de trabalho a intertextualidade e o caráter sociológico inter-relacional dos discursos.

 

Essas várias vozes, presentes nos textos, designam outro elemento da teoria bakhtiniana, nessas relações intertextuais, que é a polifonia. Podendo esta ser concebida como a variabilidade de vozes que permeiam num único texto, que subsidiam a sua constituição e permitem o entrelaçamento de idéias.

 

Daí o pensamento que nenhuma linguagem é individual, e sim plural, constituída pela multiplicidade, num eu que se configura ao mesmo tempo num nós, coletivo e variante que integra concepções diversas.

 

O diálogo estabelecido entre o Cinema e a Literatura materializa-se, nesta análise, através da dualidade feminina de mãe e mulher, que simultaneamente é representada pela personagem Daisy, do filme O curioso caso de Benjamin Button e no poema Teus seios, de Ferreira Itajubá, sendo que neste, o seio é o símbolo representativo da dualidade feminina presente no filme.

 

Sendo assim, pretende-se nesta exposição estabelecer uma distinção entre mulher e mãe, entendida como sendo a dualidade feminina. A primeira entidade, mãe, liga-se ao aspecto da maternidade, tendo como seres que se aproximam a mãe e seu o filho, numa relação de carinho e afetividade; e a segunda entidade, a de mulher, que se equaciona num relacionamento com o homem, tornando-se uma espécie de amante, que desperta desejos não só sexuais, como também o da construção de uma vida em comum.

 

Para estabelecer o diálogo dessa dualidade presente no filme, selecionou-se o poema Teus seios que também apresenta esta dualidade, mas só que a partir do símbolo seio, parte do corpo feminino, que tanto está presente na relação de mãe, como na de mulher. Essa idéia sobre os seios pode ser asseverada pelo pensamento de Goltbliatas (2009) “As mamas sempre representaram a sexualidade e a maternidade, é um órgão de contato de atração, é também um símbolo extremamente narcísico”.

 

Segundo o pensamento de Zecchin (2004, p. 16) apud Goltbliatas “o seio tem dupla função: uma primordial na estruturação do psiquismo, na dinâmica relacional entre a mãe e seu filho, e a outra, na construção da sensualidade feminina”.

 

Em linhas breves, o filme, em questão, retrata a história de Benjamin que nasce com aproximadamente 86 anos e tem seu processo de crescimento revertido, ao invés de envelhecer, com o passar do tempo, ele rejuvenesce. Após o parto sua mãe falece, ficando nas mãos de seu pai, Thomas Button, o seu destino. Este abandona seu filho num asilo e uma funcionária desta instituição Queenie passa a criar Benjamim. Numa determinada etapa de sua vida, Benjamin conhece Daisy e constrói com ela um relacionamento, mas à medida que ele vai se tornando cada vez mais jovem e ela mais velha,  Daisy passa a se portar como sua mãe, e esta cuida de Benjamin até seu último segundos de vida, até o momento em que ele, já bebê, morre em seus braços.

 

No poema Teus seios a dualidade feminina apresenta-se através do símbolo seio, sendo que no poema, cada face dessa dualidade aparece intercaladamente, e no filme tem-se a seguinte seqüência: primeiramente, o seio é parte do corpo feminino capaz de despertar desejos no homem, sendo esta a faceta feminina de mulher, e logo depois seria a de mãe, tendo o seio como fonte de alimento e lugar de aconchego e segurança que o filho encontra quando está próximo de sua mãe.

 

Sobre essa idéia, Heckert apud Goltbliatas (1995) nos elucida uma concepção sobre os seios: “compõem a estética feminina, pois são símbolos da sexualidade, além de exercerem a função fisiológica da amamentação, que reflete a doação e a necessidade de nutrir”.

 

Na primeira fase da vida, o seio materno é a fonte que nutre o filho nos seus primeiros anos, também sendo visto como símbolo de intimidade entre a mãe e seu filho, como também lugar de refúgio de proteção, amparo, suavidade, como vemos nos seguintes versos:

 

“Ando em busca de um asilo

Onde eu viva sem receio;

Agasalha um peregrino!

Dá-me o calor do teu seio!”

 

Neste trecho do poema, percebe-se que “o calor do seio” é espaço cuidado, tranqüilidade, conforto que traz paz e harmonia ao filho desamparado, protegendo-o dos males mundanos que a vida o expõe. No filme, a cena em que Daisy com o bebê Benjamin nos braços, ilustra este entendimento, mostrando um momento de cumplicidade de mãe e filho, bem envolvo pelo calor do seio quente da mãe.

 

Vejamos outra parte do poema que elucida bem a parte materna dessa dualidade:

 

“Neste desterro em que vivo

Sofrendo mil dissabores,

Só tu podes, lírio santo,

Desterrar as minhas dores!”

 

Nos versos acima, a idéia do refúgio se reafirma, pois apenas o “lírio santo”, a face sublime e tenra da mulher, é capaz de aliviar as dores pelas quais o eu-lírico passa, só assim ele cessa a sua “busca de um asilo”, pois no calor e na ternura feminina encontra a maneira de “desterrar” suas dores.

 

Na puberdade do homem, o seio ganha outra conotação passando a despertar desejos, fantasias, pois é órgão impulsionante ao pecado pela sua carga erógena e sensual que aproxima o homem da mulher. Nesta fase, eles não se comportam como mãe e filho, e sim numa relação de amantes em busca do prazer e gozo mútuo, com fim de saciar uma fome que não é de alimento.

 

No verso “Teu seio oculto nas rendas” possui um tom de sensulidade e erotismo, pois os seios não estão completamente amostra, estão com sua visão neblulosa que incitam ao desejo. Nota-se também que o eu-lírico não toca diretamente no seio, apenas observa e sugestiona: “Deve ter tanto calor!”

 

Noutros trechos do poema observa-se essa outra face feminina, em que o seio “Róseo fruto imaculado/ A mais pura, mais perfeita/ Concepção do pecado” desperta desejos devastadores, que incitam a concretização do pecado e tendem ao gozo “Gozar dos teus doces anelos”.

 

Percebe-se também que a repetição do verso “Dá-me o calor dos teus seios!”, nas três primeiras estrofes, reafirmam e reacende um desejo característico, no ato de pedir ou até mesmo de clamar, como um animal uivando de desejo.

 

A partir da segunda estrofe além do verso “Dá-me o calor dos teus seios!”, percebe-se a presença de outro verso repetido na segunda e terceira estrofe “Dá-me o fulgor dos teus olhos!” reafirmando os anseios do eu-lírico agora por outro ato, o de olhar, que também sugestiona veemente as aspirações.

 

Em O curioso caso de Benjamin Button, quando Benjamin atinge determinada idade ao conhecer Daisy ele a enxerga como mulher, que desperta desejos nele, de beijar, tocar, sentir seu corpo, dessa forma percebemos a face da mulher sensual, aquela que incita o homem a desejá-la sensualmente.

 

Mesmo diante de palavras instigantes que expressam a sensualidade feminina, notamos, no poema, a presença de palavras que não quebram com a concepção de delicadeza e nobreza da mulher: a maciez “Macio assim como as penas/ das asas de um beija-flor”; a denominação de lírio santo “Só tu podes, lírio santo” exprimindo o ser sublime que o eu-lírico considera, além de ser uma flor santa referencia aos ideais atrelados a santidade, a pureza feminina (ver grifos).

 

A respeito deste aspecto da dualidade ressalva-se outro ângulo, além santa, a mulher é vista como sensual, sendo que nestas duas faces há uma oposição semelhante a referência bíblica, em que a mãe é sempre atrelada a visão da Virgem Maria, que cuida com carinho de seu filho e que se abstém dos prazeres carnais; e da mulher sensual, representada por Madalena, que incita aos desejos, é madura e segura de si:

 

A mãe, Virgem Maria (como a nomeação comprova, nossa fantasia sustenta e os dogmas da Igreja atestam: a mãe é sempre virgem) se contrapõe à Madalena, mulher sensual, com uma sexualidade madura e atuante, mulher de desejo. (HOMEM, 2005, p. 59)

 

 

No poema, além da expressão lírio santo “Só tu podes lírio santo”, pode-se estabelecer a relação com  a “face santa” da mulher em “Róseo fruto imaculado” que expressa à idéia da pureza, a distância do pecado e a inocência que são atribuídas a Virgem Maria, e conseqüentemente a mãe.

 

Outro aspecto que se observa é desvelo que o eu-lírico tem para com o seu “lírio santo”, pois ele invoca a proteção divina para sua querida “Deus te proteja, querida!/ Deus te abençoe, lírio santo!”, expressando o apreço que possui para com ela.

 

Estabelecendo um paralelo entre as duas análises, do filme e do poema, percebe-se uma questão que deve ser ressaltada pela sua grande relevância, a questão da identidade fragmentada do feminino de mãe e mulher, além de outras não abordadas neste estudo, mas mencionadas por Tomaz (2007) “cisão/ duplicidade humana, ostentando essas problemática através de uma escrita que testemunha os olhares fragmentados do feminino – mãe, filha, esposa, amante, profissional.” (p.21)

 

Sendo assim, percebe-se que o mesmo ser unificado, tende a ter sua identidade fragmentada pela diversidade de relações sociais as quais está constantemente participando, o que o faz possuir diversas identidades dependendo com quem se relaciona. Fato que ocasiona o constante desmembramento do “eu feminino” em várias facetas, de acordo com a relação social na qual se está inserida.

 

Especificamente no filme O curioso caso de Benjamin Button  e no poema Teus seios a identidade feminina se fragmenta em mãe, na relação mãe-filho, e em mulher, na relação mulher-homem. A relação foi possível porque no filme tem-se a própria relação materializada, enquanto no poema tem-se uma parte do corpo feminino, que é símbolo mútuo nas duas relações, dessa forma houve a possibilidade de aproximá-los.

 

Dessa maneira, conclui-se não só a rede textual em que os textos estão inseridos, o que permite estabelecer interpretações comparadas como esta, e desse modo os diálogos existentes entre textos de diferentes naturezas podem se relacionar tematicamente e possibilitar o desenvolvimento de diversos estudos com o mesmo material, como também mostrar como se materializam esses diálogos.

 

A análise possibilitou a percepção acerca do entrelaçamento existente entre duas áreas que se assemelham e diferenciam-se em determinados aspectos. O que definiu a relação existente entre o Cinema e Literatura seja por meio da adaptação, da Literatura para o Cinema, ou então, seja pela proximidade temática que permite uma interpretação conjunta das duas.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BRAIT, Beth. (org.) Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997

 

GOLTBLIATAS, Renata. Aspectos emocionais do cancêr de mama. Disponível em: <http://www.clinicaceaap.com.br/ceaap/index.php?option=com_content&task=view&id=69&Itemid=124>. Acesso em: 18 jan. 2009.

 

HECKERT, U. Reações Psíquicas à Mastectomia. Revista Juiz de Fora. v. 21, Minas Gerais, dez., 1995,p. 97- 102.

 

HOMEM, Maria Lucia.  Desejo, crime e castigo. FACOM, n. 15, 2º semestre de 2005. Disponível em: http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_15/_malu_homem.pdf Acesso em: 25 jan. 2009.

 

ITAJUBÁ, Manoel Virgílio Ferreira. Teus seios. In: SARAIVA, Gumercindo. Trovadores potiguares. São Paulo: Livreiros editores: 1962, p.190.

 

O CURIOSO caso de Benjamin Button. Direção de David Fincher. EUA. The Kennedy Marshall Company/ Paramount Pictures/ Warner Bros. Pictures. Warner Bros, 2008. Filme cinematográfico (166 min)

 

TOMAZ, Jerzuí Mendes Torres. Marcadores afetivos e inscrições corporais no universo feminino de Lya Luft. Maceió, 2007. Tese (Doutorado em Letras e Linguística: Literatura). Universidade Federal de Alagoas.

 

ZECCHIN, R.N. (2004). A perda do seio: um trabalho psicanalítico institucional com mulheres com câncer de mama. São Paulo: Casa do Psicólogo.

 

 

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Mayara Costa Pinheiro é aluna da Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando atualmente o 8º período, bolsista PIBIC do CNPQ. Realiza pesquisas sobre a poesia norte-rio-grandense, em especial sobre o o poeta Ferreira Itajubá.

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