OS
JOGOS DE MURILO E JOANA
"Eu tenho sido toda a vida um franco-atirador. Procuro
obedecer a uma espécie de lógica interna, de
unidade apesar dos contrastes, dilacerações
e mudanças - e sempre evitei os programas e manifestações".
"Sinto-me
cada vez mais universal e mineiro."
Murilo Mendes,
em cartas a Laís Corrêa de Araújo
Paulo
de Toledo
O poema Jeanne
D'Arc, aqui traduzido, encontra-se na coletânea de textos
murilianos escritos em francês chamada Papiers (1931/1974),
somente publicada em livro em 1994, no Murilo Mendes: poesia
completa e prosa (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994), obra
organizada pela amiga e ensaísta Luciana Stegagno Picchio.
Nesse poema,
verificamos a ocorrência do que há de melhor
na poética muriliana: humanismo e domínio da
linguagem. Em carta a Laís Corrêa de Araújo,
de 1969, o poeta, ao comentar o quadro da poesia brasileira
daquele momento, acaba por apontar três das principais
características de sua obra:
"Qual
será o futuro da poesia, não sei; espero que
não seja o da ecolalia e do monossilabismo. O discurso
aristotélico, é verdade, me aborrece e está
superado; mas creio ainda na tentativa de se combinar humanidade,
experimentalismo e concisão." (Araújo,
2000, p. 124)
Os três
elementos citados pelo poeta (humanidade, experimentalismo
e concisão) compõem certamente o poema em tela.
Ninguém melhor para simbolizar a humanidade cristã
do que a Santa Joana D'Arc que, aos 13 anos, passa a ouvir
vozes que identifica como sendo as dos santos Miguel, Margarida
e Catarina. Movida por essas vozes, ela entra em combate na
Guerra dos Cem Anos (1337 - 1453), entre França e Inglaterra,
e transforma-se na mártir francesa, após ser
queimada viva com apenas 19 anos. Em 1920, é finalmente
canonizada e torna-se a Santa Joana D'Arc.
Quanto à
poética muriliana ligada ao cristianismo, devemos lembrar
de Tempo e Eternidade (1935), escrito em conjunto com o seu
grande amigo Jorge de Lima. Sobre esse livro, comenta Laís
Corrêa de Araújo (2000, p.80):
"O poeta aí está inserido na situação
angustiosa do homem dividido entre a constatação
de uma potencialidade redentora (Deus) e a sua impotência
e desamparo do degredado (homem-pecador). Daí, instalar-se
no âmago de sua linguagem, a confusão entre os
sentidos e o pensamento, entre as instâncias do corpo
e as da alma."
Esse mal-estar do poeta, que se divide "entre as instâncias
do corpo e as da alma", pode ser explicado por sua sensibilidade
religiosa que o faz compreender/sentir a realidade de forma
integral (o homem religioso é o homem do "mundo
áudiotáctil", aquele que ainda não
sofreu a fragmentação produzida pela "idade
mecânica", definida por McLuhan). Essa sensibilidade
especial, ao ser confrontada com a sua formação
de homem ocidental - constituída, filosoficamente,
pelo pensamento lógico-aristotélico (que fragmenta
o espírito como numa linha de montagem) -, provoca
em Murilo Mendes a angústia do homem que tenta conciliar
(ele, o "conciliador de contrários", na famosa
definição de Bandeira), no seu espírito,
a "totalidade da religião" com a "fragmentação
da lógica"(1).
Portanto, se, no poema, o tema da humanidade cristã
está claramente identificado na figura da santa francesa,
experimentalismo e concisão também não
faltam nesse poema elaborado com jogos paranomásicos(2)
de toda a sorte. Ou, como diria o crítico Murilo Marcondes
de Moura (1995, p. 48):
"Pode-se dizer que a fusão de pensamento religioso
e vanguarda artística é o aspecto mais distintivo
de sua obra."
Poderíamos, seguindo a já citada ensaísta
Laís Corrêa de Araújo, colocar Jeanne
D'Arc no ciclo denominado "concretizante", iniciado,
segundo Araújo, a partir de Tempo Espanhol (1959).
Esse período da obra muriliana assemelha-se à
estética proposta pelo movimento concretista da década
de 1950, que defendia, em seu Plano Piloto (Teles, 1976, p.
403), uma "evolução crítica de formas",
e que valorizava o "espaço gráfico como
agente estrutural", bem como a utilização
de uma linguagem direta, econômica, sintética,
ideogrâmica.
Jeanne D'Arc poderia perfeitamente fazer parte de Tempo Espanhol(3)
e, principalmente, de Convergência (1970), cujas características
o aproximam muito das propostas concretistas.
Em carta, de 1971, de Murilo Mendes a Laís Corrêa
de Araújo, diz o poeta sobre Convergência:
"É certamente um dos meus livros maiores, resumindo
a experiência de três gerações,
inclusive concretos e práxis." (Araújo,
2000, p. 198)
Há, coincidentemente, em Convergência, um poema
que, apesar do título em português, Marcha do
Poeta, é totalmente escrito em francês(4). Porém,
as semelhanças entre Convergência e o poema ora
estudado vão muito além do uso da língua
francesa.
O discurso poético de Jeanne D'Arc, diferentemente
da retórica barroquizante comum a grande parte da obra
muriliana, constitui-se, principalmente, de jogos paranomásicos
configurados por meio do uso de homofonias e homografias.
As paranomásias também são muito presentes
em Convergência, com a diferença de que elas
são realizadas, na maioria das vezes, por meio de anagramas
ou quase-anagramas, além de outros recursos formais.
Eis alguns exemplos:
TÂNGer TANGida, ácida
(Grafito em Tânger)
paniFICA
viniFICA
paciFICA
viviFICA o mundo ex-mundo (Murilograma a N.S.J.C.)
Fui a Tróia
SOLErRANDO
Fui a Tróia SOLEtRANDO (Murilograma
a Oswald de Andrade)
A ode
explode. O bode explode. (Explosões)
As VÁLVulAs
da Valva. As VÁLVUlas da Vulva. (As Válvulas)
Isabel.
Isabelanda. Isabelenda. Isabelinda.
Isabelonda. Isabelunda. (Isabel)
As TROPas
de Itabira. Os TROPos de Drummond. (Colagem para Drummond")
A VELA da
AVELÃ. AVE, LÃ de AVELÃ. (Metamorfoses
(1))
Vaidade
Vai dado
Vai dedo
Vai Dido
Vai doido
Vai tudo
Vaidade
Vaidar (Metamorfoses (11))
Com TEsTO
Sem TExTO. (Texto de Consulta)
(Os destaques, feitos em negrito, itálico e com o uso
de maiúsculas, são nossos.)
Esses são apenas alguns exemplos dos muitos que poderiam
ser citados para comprovar as similaridades estéticas
entre a poética concretizante de Convergêngia
e a de Jeanne D'Arc.
Devido a sua estrutura orgânica, a seus experimentalismos
sonoros e (orto)gráficos, Jeanne D'Arc impõe
várias dificuldades na sua tradução para
o português. A maior dificuldade é, sem dúvida,
a transposição das homografias e homofonias
que dão ao poema seu aspecto lúdico (embora
extremamente lúcido).
O caráter
lúdico, o gosto pelo jogo, tão marcantes em
Jeanne D'Arc, seriam, a nosso ver, a materialização
da personalidade da menina Joana D'Arc, que, no poema, brinca
com seus jogos, seu bilboquê, sua cantiga, sua cotovia.
A menina Joana D'Arc e o poema Jeanne D'Arc nos colocam na
roda, na sua ciranda mágica, e nos encantam a inteligência
e os sentidos.
Enfim, a combinação de "humanidade, experimentalismo
e concisão" está otimamente realizada neste
complexo jogo paranomásico arquitetado pelo poeta de
As Metamorfoses.
OS "PAPÉIS" DO TRADUTOR
"Na poesia, como diz Walter Benjamin, a característica
da má tradução é a simples transmissão
da 'mensagem' (conteúdo referencial, denotativo) do
original, ou seja, 'a transmissão inexata de um conteúdo
inessencial'." (Campos, 1977, p. 142)
Para conseguirmos, em nossa tradução, transmitir
a "informação estética" do
original, precisamos lançar mão de alguns recursos,
"traindo" um pouco a "informação
semântica". Se, como diria Haroldo de Campos, a
tradução deve ter uma relação
de isomorfia com o texto original (Campos, 1977, p. 143),
então, para que se possa trasladar a contento um poema
como Jeanne D'Arc, deve-se recorrer a todo o instrumental
poético possível a fim de que o poema traduzido
consiga produzir o mesmo efeito de estranhamento e de surpresa
característico do texto original.
Um dos primeiros desafios para o tradutor de Jeanne D'Arc
está no primeiro verso da segunda estrofe. Murilo criou
uma seqüência de palavas rimadas ("pain/vin"
["pão/vinho"] - "fromage/hommages"
["queijo/homenagens"]) que, além dessa proximidade
sonora, possuem similaridades (orto)gráficas. No caso
da relação "fromage/hommages", utilizamos
para a tradução duas palavras que rimam ("queijo/preito")
e que também possuem o mesmo número de sílabas
e de letras (no francês, também há o mesmo
número de sílabas). Quanto à relação
"pain/vin", preferimos recorrer ao acréscimo
de mais uma palavra ("pão diVINO/vinho").
Com a palavra diVINO (vino [latim] = vinho), criamos, por
meio do recurso da anagramatização, um parentesco
etimológico entre as palavras.
Nos segundo e terceiro versos da mesma estrofe, encontramos
duas palavras quase homógrafas e homófonas ("jeune/jeûne"
["jovem/jejum"]). Como nos pareceu impossível
recuperar a homofonia e a homografia do original, resolvemos
criar uma similaridade rímica para a tradução
("abstinência/adolescência").
Na quarta estrofe, nos deparamos com outro caso de homofonia
("Le moi / L'émoi"). Para nos aproximarmos
da inventividade do poema francês, partimos para a criação
de um par rímico e quase anagramático: "COraÇÃO/COmoÇÃO".
Chegando à quinta estrofe, encontramos outros dois
pares de homofonias ("La foi / Le foie" ["A
fé / O fígado"]). O par "La foi/Le
foie" obrigou-nos a "trair" o sentido original
do poema. Recorremos, nesse caso, a um par de anagramas perfeitos:
"A fidalga / A figadal". O uso do substantivo "fidalga"
justifica-se pelo caráter sublime e nobre da personagem.
Por sua vez, "figadal" foi escolhido por ser um
termo da mesma família de "fígado/foie"
e por ter o sentido de "profundo", "intenso",
adjetivos que, acreditamos, podem ser aplicados ao espírito
e à personalidade da santa francesa.
Por fim, na nona estrofe, encontramos o par homofônico
"L'hôtel / L'autel" ("A casa / O altar").
Diante da impossibilidade da reprodução da homofonia
em português, preferimos criar um par anagramático:
O LAR / O aLtAR, que tem a vantagem de manter o sentido do
texto em francês.
Essas seriam
as principais dificuldades encontradas na tradução
deste Jeanne D'Arc, um poema de altíssima qualidade,
construído com uma precisão invulgar, em que
Murilo Mendes parece transubstanciar o corpo do poema na alma
da própria santa francesa.
*
JEANNE
D'ARC
L'enfant Jeanne d'Arc.
L'arc de Jeanne d'Arc.
La roue de l'arc de Jeanne d'Arc.
Les autres jouets de Jeanne d'Arc:
[l'églantine, l'alouette, la comptine, le bilboquet
de Jeanne d'Arc.
Le pain et le vin, le
fromage: les
[hommages de Jeanne D'Arc.
La jeune Jeanne d'Arc.
Le jeûne de Jeanne d'Arc.
L'"hombre" de
Jeanne d'Arc.
L'ombre de Jeanne d'Arc.
Le moi de Jeanne d'Arc.
L'émoi de Jeanne d'Arc.
La voix de Jeanne d'Arc.
Les voix de Jeanne d'Arc.
La foi de Jeanne d'Arc.
Le foie de Jeanne d'Arc.
Le roi de Jeanne d'Arc.
L'Ubu roi de Jeanne d'Arc.
L'oui de Jeanne d'Arc.
Le feu de Jeanne d'Arc.
L'hôtel de Jeanne
d'Arc.
L'autel de Jeanne d'Arc.
L'arc-en-ciel de Jeanne
d'Arc.
L'arcanisation de Jeanne
d'Arc.
***
L'avenir sans Bombe. Sans
épée. La paix.
JOANA
D'ARC
A menina Joana d'Arc.
O arco de Joana d'Arc.
A roda do arco de Joana d'Arc.
Os outros jogos de Joana d'Arc:
[a madressilva, a cotovia,
a cantiga, o bilboquê de Joana d'Arc.
O pão divino e
o vinho, o queijo: os
[preitos de Joana D'Arc.
A adolescência de Joana d'Arc.
A abstinência de Joana d'Arc.
O "hombre" de
Joana d'Arc.
A sombra de Joana d'Arc.
O coração
de Joana d'Arc.
A comoção de Joana d'Arc.
A voz de Joana d'Arc.
As vozes de Joana d'Arc.
A fidalga Joana d'Arc.
A figadal Joana d'Arc.
O rei de Joana d'Arc.
O Ubu rei de Joana d'Arc.
O sim de Joana d'Arc.
O fogo de Joana d'Arc.
O lar de Joana d'Arc.
O altar de Joana d'Arc.
O arco-íris de
Joana d'Arc.
A arcanização
de Joana d'Arc.
*
*
*
O advir sem Bomba. Sem
espada. A paz.
*
(Tradução:
Paulo de Toledo)
*
Paulo de Toledo é poeta e ensaísta.
Veja também
os poemas
visuais do autor.
*
Notas:
[1] Sobre a sensibilidade religiosa de Murilo Mendes e a sua
relação com a "Era de Gutenberg" mcluhaniana,
ver meu ensaio Murilo e Pessoa: múltiplos em comum
no site Capitu (http://capitu.uol.com.br/p.asp?p=4,5,2004,2375).
[2] "Já para Peirce, a metáfora é
um hipoícone terceiro, por ser uma analogia ao nível
da representação. De nossa parte, paranomásia
(ao nível verbal) e paramorfismo (ao nível não-verbal)
caracterizam o eixo da similaridade." (Pignatari, 1981,
p. 24)
[3] "Editado em 1959, Tempo Espanhol já estaria
escrito antes do real estouro do concretismo, dada a natural
defasagem entre a elaboração dos poemas e sua
publicação em livro. Mais uma vez, portanto,
e como 'franco-atirador', Murilo Mendes continuava fiel àquela
'lógica interna' que dá a toda a sua poesia
a seqüência unitária de obra em progresso,
cujos lances, a cada livro, são preparados no anterior."
(Araújo, 2000, p. 116)
[4] "Allons
enfants de la poésie / Le jour de lutte arrive chaque
jour // Allons enfants de la poésie / Le jour de gloire
arrive chaque jour."
Referências
bibliográficas:
ARAÚJO,
Laís Corrêa de. 2000. Murilo Mendes: ensaio crítico,
antologia, correspondência. São Paulo: Editora
Perspectiva.
CAMPOS, Haroldo
de. 1977. A Arte no Horizonte do Provável. São
Paulo: Editora Perspectiva.
MOURA, Murilo
Marcondes de. 1995. Murilo Mendes - A poesia como totalidade.
São Paulo: Edusp.
PICCHIO,
Luciana Stegagno org. 1994. Murilo Mendes: poesia completa
e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PIGNATARI,
Décio. 1981. Semiótica da Arte e da Arquitetura.
São Paulo: Cultrix.
TELES, Gilberto
Mendonça. 1976. Vanguarda Européia e Modernismo
Brasileiro. Petrópolis: Editora Vozes.
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