POLIVOX,
O IMPÉRIO DO TRANSITÓRIO
Jairo
Pereira
Gestor
de si próprio, o poeta de Polivox reinventa o mundo,
o seu mundo, pelas linguagens. Esteta de instrumentos afiados,
Rodrigo Garcia Lopes, distende o tecido-vida, na transitoriedade
imposta pelos signos/símbolos da época em que vivemos. Uma
premissa, a maior: ser acima de tudo contemporâneo. O poeta
não abre mão do seu tempo e a realidade que vive e conhece.
Conhecer é viver e vice-versa. Como na lição de Bashô, transcrita
no próprio livro, é de se adentrar no bambuzal para se conhecer
de bambu. Idem, no pinheiral para se conhecer de pinheiro.
Assim, é de se unificar sujeito e objeto, fundir os elementos
antinômicos da relação cognitiva na bela lição oriental, para
atingir a essência das coisas. E o poeta experimenta alto,
sem temor de quedas. Ser em rotação, também tudo em
redor de si movimenta, desestabiliza, transmuta, perece, repete,
retorna, transparece, invisibiliza, desloca, foge, transluz.
Essa a sua matéria-prima, o que engana aos sentidos mais atentos.
Hábil na sagração do dizer, o poeta funde os elementos e sintetiza
o império-vida, de maneira particularíssima. O olho
que vê, a mão (o dígito) que toca, a pele que incendeia, todos
os sentidos circulam os objetos de onde aflora a poesia deste
poeta de conteúdo e forma, oscilante, veloz. Atribulado no
fazer sem precedentes, filtra (seleciona) imagens, signos,
na rede interior do vivido e do pensado. Rodrigo Garcia Lopes
tem gana simbolista: destros recursos de transcendência que
transparecem nas linguagens. A visão simbólica inata no poeta,
é mais que dom e verte dos mundos de plena subjetividade,
trabalhada ao rigor dos alucinados. (Lembrem de Rimbaud, Baudelaire,
Edgar Allan Poe, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos). Refletem
em sua poesia, as questões indeterminadas, a idéia, o pensamento,
o tempo, o invisível, as iluminaugurações, os ecos dos
sentidos, e de forma mais contemplativa, andanças beats,
pelo deserto do Arizona -grave hipótese de um desterro definitivo
em paisagem alienígena-. O poeta soa melancolia quando quer,
ilude, translude, prestidigita com as imagens tiradas da própria
linguagem poética, dos pensamentos que não se completam ou
se resolvem. Dividido em seis partes/sessões, sendo (Polivox,
Thoth, Satori Uso, Pensagens, Latrinália e Coda) o livro
é denso, complexo no foco centralizador, mas liberto do hermético
pelo hermético. Em vista da forja e da fluidez da matéria,
no sentido de que há uma busca intensa por determinação de
ser nas linguagens, ou determinação de ser das coisas, pelas
linguagens, Polivox denota o império do transitório.
A potência, como poder dos meios, é levada as últimas conseqüências,
quando o poeta persegue o sentido do que é fugaz,
sem contudo alcançá-lo, dissecá-lo, que a virtú não é
essa, e sim demonstrá-lo, no seu sadio movimento vida/morte.
Começaria qualquer discurso sobre Polivox com "O
homem não é contemporâneo de sua origem./Aumentemos o volume
da linguagem" ou "A dança do duende entre a floresta
de signos". Verdadeiras preciosidades hão de ser encontradas
sob as pedras que é de haver e há em qualquer livro de poesia
(floresta de signos híbridos). O minério mais rico, não dá
mesmo exposto à flor da terra. Os versos acima, foram extraídos
de c:/polivox.doc primeiro poema, da sessão Polivox.
Quando este texto estava ainda em finalização, recebi crítica
de um amigo de que (ele o texto) expressava que eu era muito
aderente à poesia do Rodrigo G. Lopes. Não exerço qualquer
poder discricionário sobre minha verve crítica e isso pode
realmente ter acontecido, não só com este livro de poemas,
mas também com outros que me instaram à comento. Digo que
sou passional quando escrevo sobre poesia. Primeiro, porque
procuro escrever só sobre bons livros de poesia. Segundo,
porque meu sangue latino ferve nas veias e visto a roupa do
poeta, sua alma trânsfuga, empatizo com a figura na produção
das imagens, no uso que se faz/fez da língua/linguagens, sofro,
rio e choro. Agradeço o conselho: ir devagar nas pedras,
olhar frio e comedido. Agradeço a vida tomada de razões
que minha razão desconhece. Empatizo com pássaros de estação,
invisto nos estalos do espírito e demonstro esse pathos
no dito sobre a criação dos outros. Não se vê, como se era
de ver, doutores imbuídos da fala quente, palavras pegando
fogo, nos horizontes da crítica poética. E, isso acho, é o
que nos falta, o verbo pegando fogo, pra falar da obra dos
outros. O verbo incandescente que só os poetas detém, modo
de sagrar o visto e o revisto, personalizar a ciência
do objeto analisado. Minha idéia, proposição básica: não
ao olhar de peixe de aquário. Sim ao olhar de cão selvagem
em febre de raiva.
A primeira impressão que se tem do poeta de Polivox,
é de mágico/prestidigitador, tal a voracidade com que lida
com as imagens. Há sim, dissimulações, truques ásperos, golpes
baixos, quando a escritura agrega insights de campos
diferenciados do conhecimento. Aliás, tal postura oscilante,
faz parte do mainstream contemporâneo: não assumir
um só prisma de visão.
É de sentir e sinto a atmosfera de jazz nas sessões
poéticas do livro, seus improvisos, repentes de imaginação,
signos repetidos que passam de um poema à outro, como é próprio
do espírito criador tomado por muitos fluxos verbais, imagéticos.
Tomado também por múltiplas vozes, ordens, mandamentos.
Em Portal, poema da página 18 do livro, temos um conceituado
veloz e imprevisível, como é a poesia ora tratada.: "o
vento é uma idéia em movimento". O vento como aceleração
das coisas, o vento como flux repentino, o vento comparado
a própria linguagem do autor, movida por fluxos, internos
e externos. Percebe-se que o poeta atingiu a dimensão de extrema
maturidade, ao constatar que as coisas são transitórias, fluídas,
fugidias, fugazes. Que a memória, linguagens & pensamentos,
atropelam os objetos em cinética pressa, como no próprio ritmo
da vida posultramoderna. Ainda na primeira sessão, vemos em
Memória e Repetição: "Cada memória esgota-se ao mesmo tempo
em que ocorre, e tudo o que temos são rastros, textos, que
se acumulam sobre as águas - que não cessam" . Uma consciência
se manifesta em Jogos Patrióticos, a consciência de
que a linguagem/linguagens adentram todas as searas, vêem-se
acuadas, ou em zonas negras e abismos.
Abissínias... Percorrendo como um duende a floresta
dos signos impostos por Rodrigo Garcia Lopes, luzes acendem
e apagam pelos carreiros, há sombras e vertigem no alto das
árvores, raízes expostas às margens do rio, gramados com salivas,
onde muitos animais estiveram ali. No poema Sedona II,
consta: "Estas pegadas: "um animal selvagem esteve aqui".
Nesse poema o poeta revela um pouco do que fica de nós na
nathura que habitamos ou viemos algum dia conhecer, pisar,
tocar. Decifrar o mundo é fácil, pra quem se conhece (caso
do poeta) e como senhor absoluto das linguagens faz isso no
todo dia. Tradução das experiências sutis, para o mundo da
linguagem/linguagens. Ponto de Fuga. Ponto fugaz. Encontro
relâmpago dos contrários. "As navalhas sucessivas da diferença./A
face de um instante, em 360 graus" . As palavras, como
sabiamente diz o poeta, as palavras que se usa "...são
o que você é. Os limites deste mundo" . Polivox, as muitas
vozes de um investigador das coisas pela linguagem, ágil,
esperta, malandra, de nossa época. Poesia, há muito tempo
deixou de ser o discurso dos ingênuos. Uma época de antilirismos
deliberados, de poesia destra, sagaz na fala, política nas
intenções estéticas, quando a língua evolui, agrega valores
novos e institui suas próprias verdades, modos, facetas. Necessidade
de época, a renovação do dizer!? O poeta que vê, sente, profetiza,
traduz a efemeridade do todo que vive (conhece). O império
do transitório, a vida, as linguagens, os conceitos, os acontecimentos
fugazes, os pontos de fuga, as repetições, os instantâneos
na palma da mão, os contatos imediatos, o fluir das emoções/sensações,
a simultaneidade dos eventos. Nada escapa ao campo sensível
(radar cyberoid@uol.com.br.hpg...) do poeta em ação. Num dos
primeiros poemas da sessão Thoth, o poeta dá um belo
conceito ao conteúdo da vida, dizendo tratar-se de "um
processo alquímico incessante como o som que sopra dos rios
ou chuva de meteoros no lago,... ". No poema Da Interpretação
dos Sonhos, sente-se novamente o ritmo alucinado das coisas
no dizer do poeta, fato que remete ao mundo eletrônico (cibernético/virtual).
Mesmo caso de "Premonições" onde o leitor pode-se encantar
com falsas dunas, mundo de ilusões, prestidigitações,
silêncio e mutação. Imagens nas imagens, determinar o indeterminado,
o que foge ao toque das mãos, o que embaça a visão, levita,
o que é mais que etéreo, está sempre em mutação.
A poesia deste livro, forma um todo complexo na significação.
Os objetos a que se atém o poeta, não são fixos, estáticos,
mas de forma, essências e aparências, variáveis, cambiantes,
transforescentes, a provocar ilusões de ótica, desvios de
sentir.
Tal fato, se deve em parte a própria vida do autor, mezzonômade,
com vivência em passado recente nos Estados Unidos e hoje
no sul do Brasil, como poeta multimídia, músico, jornalista
cultural e professor universitário.
Nesse passeio pela floresta de signos que é o Polivox,
deparamos com o poeta/voyeur, afirmativo no dizer que "Elas,
essas imagens-vozes,/não significam nada em si mesmas,/nada
dessas meras aparências". Há um estado de ser, assim como
te digo, em trânsito, em transe, de poema à poema do
livro. Experiência sinestésica, "poiesis pura", "criativa
subjetividade". À página 49, outro poema do vento
nos intriga, com a relação direta que possui com o conceito
idéia, poema que encerra grande movimento interior,
força de ventos (pensamentos) contidos que podem
gerar/erigir até mesmo tornados. Essa a linguagem poética,
a linguagem que espectra, espelha, estilhaça a subjetividade
sígnica de múltiplas vozes & múltiplos significados, bem aos
dotes do interlocutor exigente. Uma linguagem que é, se afigura
sempre mais do que aparenta, foge, repercute em meias-falas,
falsetes, alterna, altera para cima, decai e solipsia.
Polivox, não é assim, um livro de resenha rápida, crítica
superficial, eis que convoca ao entendimento de muitos jogos
lingüísticos, como imagens de um filme, dentro de muitos outros
filmes, referências veladas ao mundo da própria literatura
e da poesia. Convém, ressaltar que o boom da poesia do Rodrigo
G. Lopes, não está nas referências em si, ou nalgum harpejo
da lira leminskiana, (poeta a quem homenageia no livro com
um poema que é sua cara, dele Paulo Leminski) mas na perseguição
do instante, o átimo, o lux interior, bem como na mônada simbolista
-bolha de sabão colorida- em que nos atira pra dentro. Espaço
em que a vida foge dos domínios do homem/poeta e reverbera
suas razões/des-razões de ser.
Numa breve paragem em Subterrâneos, não poderia ignorar
estes belos versos que denotam bem a tendência do homem ao
barroco e ao onírico: "descer a catedral-caverna de nós
mesmos/para ali sorver a gota delirante do sonho". A poesia
contemporânea não escolhe tema, objeto, matéria, vive de deslocamentos
psíquicos, destreza empática com a objetalidade, seja de que
tempo for, fiel a voz de autor, como se apresenta neste Polivox.
No poema "A Deusa Branca" a lua encontra seu melhor
plenilúnio, tão bela a construção, fechado o poema (lua) com
um conceito de grande importância para os poetas, o de que
"O poema é uma verdade portátil". Em Satori Uso
os mais-que-haicais compostos, dão bom exemplo da versatilidade
desse poeta, hábil na manipulação dos códigos, preciso na
linguagem dirigida a um fim, forma, transparência do dizer.
Interessante aquele poema que acaba com o toque do poeta nos
corpos/copos de cristal, marcas de sua impressão
digital, nas coisas do mundo. Mais uma vereda mata-à-dentro,
uma parada pra mascar umas folhas de ervas, cuspir uns caroços
de frutos...: Pensagens. Deparamos com versos como
"Corpo, ruínas dos sentidos", "Vida, como um enigma que
quase adivinhamos", "o corpo quer que (a mente sinta) (a mente
quer) que o corpo pense" "Cinema metafísico, mar em movimento,
locus, solus... ". Em Latrinália, a poesia aparecida
num repente, é mordaz, perversa, com jogos de dicção falastrã,
totalmente díspare das árvores encontradas na floresta dos
signos trans-sêmicos do autor. De qualquer forma, é uma poesia
que marca pelo humor e quebra um pouco do psiquismo aparecido
em partes das sessões do livro. Em falando dos poemas de um
certo, Otavius, não diz que os mesmos sejam ruins:
"Digamos que eles são, assim,/sutis (como uma revoada de
hipopótamos) ".
Coda. A última sessão poética de Polivox, começa
com um poema forte, do qual se extrai "Viver deve ser algo
que se faz/enquanto escutamos uma concha/imaginária num deserto".
Mais que meras imagens por imagens, os poemas reunidos em
Coda trazem conceitos, determinações, como o advindo
da palavra hebraica "dabar" que significa "coisa" "evento"
"performance". Menção especial ao poema Dizer,
fundamento da própria poesia, quando sentencia que dizer "é
fazer das coisas/bem mais que palavras". O vento, saideiro
comparece na sua forma verdadeira, como o "único senhor
dos precipícios" o que fecha de certa forma, estruturalmente
o livro Polivox, na sua rede milagrosa de signos. Signos
rotativos, cinéticos, de muitas vozes, silêncios, pensamentos,
despertados pela máquina de lavar roupa, numa segunda-feira
qualquer, do início de um século que se acende pra poesia,
enquanto o outro que passou se apaga & por vezes reacende
na mesma voragem.
|