HONESTIDADE
POÉTICA NOS POEMAS DE LUÍS SERGUILHA
Thiago Ponce de Moraes
Recebi,
há pouco, três livros do poeta português Luís Serguilha: Lorosa'e
- Boca de Sândalo, O externo tatuado da visão, O
murmúrio livre do pássaro. O breve ensaio crítico que
segue visa, simplesmente, compreender o esforço estético do
autor, de forma a garantir a sensação de leitura que se
desprende dos livros.
A
exortação do ato de repetir de jeito incessante a forma e as
temáticas parece pertencer a um universo que denomino de honestidade
poética no âmbito da contemporaneidade. Isto quer dizer
que a ação artística de Luís Serguilha comunga uma espécie
de tarefa única e declaradamente sustentável nas suas
poesias. Esta mesma tarefa pertence àquilo que todos nós
reconhecemos; falo do mundo ordinário cotidianamente
conduzido. Seu sentido de repetição parece querer compelir
quem lê a uma aproximação radical deste mundo:
"Como
uma penetração difusa na incandescência tudo
cresce/ abundante no hospício das larvas tudo
ferve no saibro da matraca/ na ilesa cápsula sobre o zumbido
da caveira"
Essa
intenção não apenas opera como drástica chegada ao mundo,
mas também como a honestidade primeira do poeta para com seu
próprio pensamento. Tal distância de pensamento, que nele é
aproximação, funciona, pois, inversamente em relação ao
encurtamento do caminho; se, como se sabe, o valor de algo, do
pensamento, diminui objetivamente com o encurtamento da distância,
no caso da poesia de Serguilha é evidente que tal acercamento
não ocorra como aproximação de um padrão, mas como
aproximação de uma existência por ele criada, a qual seus
poemas insistentemente parecem querer transpor ainda -
"ainda" no qual me hei de deter, breve, um pouco
mais a frente.
Poderão
os leitores procurar similaridades com alguma existência a
partir da leitura de seus textos. Porém, não encontrarão em
imagens ou estruturas específicas, senão no seu incansável
gesto de ecoar forma e temas, cada vez mais surdos e distantes
ou próximos, dependendo, aí, de como se coloca perante seus
versos. E é o eco, portanto, ato de repetição, que, se
propagado de modo áspero, como é, não de modo suave ou lírico
nesse sentido, porta uma noção antitética de ligar lonjuras
e impossibilidades audíveis, a priori, cotidianamente.
Ouvindo,
então, atentivos às proposições sonoras de suas peças,
comprova-se de maneira um tanto trivial o que aqui digo:
"são os
zumbidos dos roteiros coreografados pelas pausas/ dúcteis dos
incessantes barqueiros/ Ramificam uma casa de águas vivas com
o ancoradouro ordenado/ pela emanação submarina da argila/
protectora/ e estranhamente sorvem os bandos embriagados pelas
baforadas imberbes das imprevistas auras"
Sua
honestidade poética conduz, inevitavelmente, à experiência
de esgotamento das possibilidades artísticas nos limites de
suspensão de leitura pela reiteração de procedimentos. Esta
reprodução continuada, de modo diferente do que se poderia
supor, não anula ou minora o suspense da leitura lida; pelo
contrário, parece reforçar os sobressaltos quando há, já
que nos leva, por dados momentos, a confiar numa certa condição
retilínea de estilo que de fato não é, não pode ser, como
a complexidade a qual sentimos ao andar em suas disposições
fissiformes.
Mesmo
que se atribua ao gesto ágil do poeta uma intenção outra,
discutível e frágil, que este por repetição esteja a
querer expor seu processo de pensamento, facilitando-o, não
poderíamos ignorar a extrapolação estética justamente
originada pela insistência formal e temática. Intrigante é,
deste modo, perceber que esse procedimento, apesar de suposto
e por vezes visto, não se dá claramente nas repetições.
Por sua sinceridade, decerto, se dá o dito processo de
pensamento, que destoa, embora o seja, do que entendemos como
sincero, autêntico, cotidianamente.
Enfim,
de duas peças distintas, entanto honestamente próximas, de
dois diferentes livros de Serguilha, emana a sensação de extrapolar
o processo de repetição; disto:
"A inquietação
das fluências fixam-se nas mandíbulas das folhas e crepitam
num/ turbilhão inacessível/ como dois lábios a
prolongarem-se festivamente no trópico/ dos teus seios
formando o encantamento da soleira"
e
"As arritmias
das concavidades podem ser as rupturas perfumadas/ que
circulam unanimemente na transfusão dos beijos/ ou o
chamamento dos mananciais na/ faísca do húmus tecendo um laço
marginado de água"
Quem
não se convença da adversidade ordinária e sincera dessas
colocações, talvez esteja cansado já de manter os olhos
fixos no mundo; talvez isso pareça demais para a paciência
comum dos homens. Alhear-se à velocidade das coisas é um
movimento bastante corrente e elementar, do qual podemos dizer
que a poesia de Luís Serguilha não faz parte. Há, na poesia
de Serguilha, uma sinceridade de propósitos, uma honesta
preocupação de estabelecer a maneira correta de se nortear
um determinado tipo de tarefa, através da contemplação,
através do ato de repetir e tornar a fazê-lo, aproximando os
versos, aos poucos, de seu propósito primeiro e cada vez mais
alargado, que a própria repetição impõe.
Seus
poemas parecem, ainda, querer, honestamente, estender o limite
inaugural de esgotamento da forma e das temáticas por meio do
ordinário. Este que em sua imediatidade supõe
necessariamente a repetição e que, em seu senso natural,
fica sempre a dever alguma coisa, aparece diferido na poesia
de Luís Serguilha, de modo a assegurar que os limites não se
fixem. Nela, o ordinário surge como a própria vida,
retorcida em seu curso e discurso, desviada, decepcionante
diante do mundo. Sua poesia irrompe, pois, conseqüentemente,
sem obrigatoriedade de cumprimento e de destinação, senão
como viagem intrincada, tortuosa, que toma a si mesma como a
insuperalibilade da repetição.
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Thiago Ponce de Moraes,
poeta, nasceu no Rio de Janeiro. Publicou, em 2006, Imp., seu primeiro livro de poemas. Organiza a Flap! e faz parte do
conselho editorial do Jornal de Literatura Contemporânea -
O Casulo. Publica esporadicamente em seu blog: www.thiagoponce.blogspot.com.
E-mail: poncedemoraes@gmail.com
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