(Nota da autora: esta reflexão sobre a obra Os pecados da tribo e os gêneros literários foi, a princípio, um projeto de pesquisa. Isto justifica a linguagem talvez exacerbadamente técnica e também hesitante em dizer meus próprios pensamentos sem o respaldo de algum teórico. De qualquer modo, optei, mesmo assim, manter citações e a coluna vertebral do texto com os ossos da linguagem acadêmica de pesquisa, assim como as aproximações e debate teórico, correndo todos os riscos de tornar o ensaio entediante.)
Parte-se da premissa que José J Veiga realiza em Os pecados da tribo uma alegoria com a ditadura militar brasileira, posto que o livro foi lançando em 1976, em meio ao período que marcava a ditadura no Brasil. Embora existam recortes deste pressuposto em muitos livros de José J Veiga (Sombra de Reis Barbudos, de 1972 e A hora dos ruminantes, de 1966, por exemplo), definiu-se Os pecados da tribo por ser ela, talvez, a mais representativa de toda a obra do autor. Arrisca-se pensar que a censura levou José J Veiga a narrar um mundo próprio, paralelo, infinitamente rico em sua ficção, que não se limita em dar conta de uma realidade proibida imposta com censura à liberdade de expressão na ditadura militar brasileira, que durou entre 1964 e 1985, mas que narra o próprio homem com suas relações consigo, com os outros e com o mundo, construindo em Os pecados da tribo a realidade de forma alegórica, segundo a definição de Tzvetan Todorov (1970). O gênero fantástico tornou-se um modo de pensar e refletir a realidade por meio da alegoria tornando-se um campo de exploração e de crítica das próprias possibilidades da literatura. Também cabe frisar constantamente que José J Veiga não limita as suas obras a uma literatura de ideologia, mas que constrói para o homem em sua narrativa uma realidade mais livre, ampla, despida de preconceitos e isenta da normatização e padronização das identidades sociais. A alma de cada indivíduo não deve usar uniformes e ser tratada meramente por números de registros e, sim, apreciada e respeitada por suas particularidades e potenciais distintos, nua, despida, límpida.
Em Os pecados da tribo o narrador protagonista relata acontecimentos na cidade em que reside, em uma crescente sensação de perplexo que se inicia no primeiro capítulo e segue tomando forma e maior proporção ao longo da narrativa, tendo seu ápice no 13º capítulo, intitulado “Fazemos o que nos mandam” (VEIGA, 1976, p. 53-56). Neste capítulo a alegoria com a ditadura militar brasileira torna-se evidente quando o narrador protagonista ilustra diretamente os desmandes sem finalidades específicas das autoridades que vigiavam a cidade. Foi ordenado, bem cedo da manhã, ao narrador personagem e seus colegas que se pusessem em forma para escutar as instruções de abrirem um buraco circular ao longo do dia. O narrador personagem e seus colegas recusaram prontamente a proposta alegando terem outros afazeres programados, mas foram severamente reprimidos e obrigados a cavar o buraco pois, do contrário, ficou claro pelo tom de ameaça dos homens que davam as ordens, sacolejando seus chicotes no ar, as severas punições que eles receberiam caso ousassem desobedecer.
- Não viemos perguntar se podem ou não. Esse buraco tem que ser aberto hoje. Antes do pôr do sol ele tem que estar furado e desentulhado. É ordem de cima, entenderam? As ferramentas estão naquelas duas carroças. Quando eu der um apito, todo mundo corre para as carroças. Quando eu der dois apitos, quero ver todo mundo cavando (VEIGA, 1976, p. 54).
Enquanto eles cavavam interruptamente o buraco debaixo do sol quente, os homens que davam as ordens observavam através das sombras das árvores, fumando cigarros tranquilamente. Ao meio-dia, foi servida dentro do buraco uma cuia de papa para os que cavavam comessem depressa. Enquanto isso, os homens que davam as ordens comeram frangos assados à sombra das árvores. O narrador personagem, que tentava atacar com a picareta uma parte onde o chão parecia mais duro, tentou mudar de lugar para investir em uma terra mais fofa, mas “um dos homens do berrante percebeu a manobra e me ameaçou com o chicote do birro de boi (...) O jeito era eu fazer das tripas o coração e continuar cavando o meu mau pedaço” (VEIGA, 1976, p. 55). O narrador personagem seguiu sentindo muita dificuldade até o final do dia. Da mesma forma que os homens chegaram dando ordens, “foram embora cantando uma música marcial” (VEIGA, 1976, p. 56). O narrador personagem fecha este capítulo ainda surpreso sobre a ordem sem finalidade precisa: “Hoje muitos aqui acham que tudo não passou de um divertimento de segundos escalões desocupados, e que se tivéssemos resistido eles teriam ido embora desapontados. Mas quem ia resistir? Mandaram, cavamos.” (VEIGA, 1976, p. 56).
Os parágrafos acima ilustram as possíveis alegorias com a ditadura militar brasileira. Tzvetan Todorov (1970), em Introdução à Literatura Fantástica, apresenta várias definições para o significado de alegoria. A seguir, uma explanação do autor que demonstra a aproximação alegórica da obra de José J Veigacom a ditadura militar do Brasil:
A ideia que se fazia de alegoria na Antiguidade nos permitirá ir mais adiante. Quintiliano descreve: “Uma metáfora contínua se desenvolve na alegoria”. Em outros termos, uma metáfora isolada indica apenas uma maneira figurada de falar; mas se a metáfora é contínua, seguida, revela a intenção segura de falar também de outra coisa além do objeto primeiro do enunciado. Esta definição é preciosa por ser formal, indica o meio pelo qual se pode identificar a alegoria. Se, por exemplo, fala-se inicialmente do Estado como de um navio, depois do chefe de Estado, chamando-o capitão, podemos dizer que a imagística marítima fornece uma alegoria do Estado (TODOROV, 1970, p. 70).
O nono capítulo de Os pecados da tribo, intitulado “Não quero ser Uxala” (VEIGA, 1976, p. 37-40), demonstra a definição de Todorov na alegoria do livro de José J Veiga com a situação política da época em que o livro foi escrito e lançado. Nesta parte do livro, Rudêncio, irmão do narrador personagem, o convida em tom de intimação a participar de um grupo secreto (VEIGA, 1976, p. 45). Rudêncio tentou impelir o narrador personagem a participar do grupo e assinar os papéis concordando com os termos sem sequer saber do que se tratava (VEIGA, 1976, p. 46) e dizia imperativo que ingressar no grupo seria a atitude mais sensata. Aconselhou-o a pensar muito bem antes de recusar a proposta, que se não entrasse por bem, entraria compulsoriamente, pois seu nome já estava na lista. Disse que o narrador personagem seria um bom comandante de quadra embora não tivesse visão e conhecimentos requeridos por viver à margem das pressões da conjuntura que eles atravessavam (VEIGA, 1976, p. 46). O narrador personagem negou alegando não querer participar de um grupo de natureza desconhecida e despistou defendendo não ter aptidão para este tipo de função, que preferia manter a vida como sempre manteve até então (VEIGA, 1976, p. 47).
Cada quadra é comandada por um Uxala. Quatro quadras forma um quadrante, comandado por um Quaxala. Quatro quadrantes forma um oitão, comandado por um Torquatro. Quatro oitãos formam um trixante, comandando por um Trinxala, e assim por diante. Não é bem bolado (VEIGA, 1976, p. 46)?
A explicação de Rudêncio sobre o funcionamento hierárquico do grupo é uma alegoria com a ditadura militar no Brasil, onde o país foi liderado por diferentes escalas de autoridades, com os cargos dentro dos quartéis militares e também as autoridades locais que se organizavam em bairros, cidades, estados e país.
No oitavo capítulo do livro, intitulado “Cai Umahla, sobe Umahla (p. 31-35). Rudêncio e o narrador personagem estão retornando de uma tarde de pescaria quando surge a figura do turunxa (VEIGA, 1976, p. 33), que faz alusão a soldados militares. Rudêncio é avisado pelo turunxa que seu sogro é o novo Umahla da cidade e que o antigo havia sido evaporado. “Evaporado. Todo mundo já sabe. Por isso é que estamos mantendo vigilância nos pontos estratégicos até a situação esfriar (...) A situação ainda é confusa.” (VEIGA, 1976, pg. 34).
Em diversos trechos e capítulos de Os pecados da tribo é possível identificar alegorias sincrônicas entre a obra que o autor publicou e o regime militar. Por exemplo: 1) no capítulo dois, intitulado “A ordem é fumigar tudo” (p. 7-9), o narrador personagem dialoga com um funcionário do palácio que está interditando o prédio da Casa do Couro. O funcionário explica agressivo que não deixam que em seu departamento causa alguma fique remota, que cortam o mal pela raiz e que o motivo de fechamento do prédio era os ratos. O narrador personagem viu o papel que o funcionário carregava: “Era a comunicação de um inspetor sanitário ao seu chefe. Dizia que na última reunião da Casa do Couro tinham sido ouvidos chiados de ratos debaixo do assoalho” (VEIGA, 1976, p. 8). Para justificar sua aproximação temerosa com o funcionário antes de iniciar a conversa, o narrador personagem explica que: “quando aparecem funcionários todo mundo some, como se eles sofressem de alguma doença feia” (VEIGA, 1976, p. 8). 2) No quarto capítulo, intitulado “As naus celestes” (p. 15-18) o narrador personagem percebe uma alteração de comportamento em seu irmão, Rudêncio, exibindo o clima de desconfiança e perigo iminente entre os moradores da cidade “Há quem diga que Rudêncio é perigoso porque conta coisas ao Caincara, seu sogro, que as conta ao Umahla. Não acredito. Rudêncio pode ser indiferente, ou insensível; mas não é espião; isto é, não parece ser (VEIGA, 1976, p. 17)”.
As coisas são na verdade mais complexas: pela hesitação a que dá a vida, a literatura fantástica coloca precisamente em questão a existência de uma oposição irredutível entre o real e o irreal. Mas para negar uma oposição, é preciso em primeiro lugar conhecer seus termos; para cumprir um sacrifício, é preciso saber o que sacrificar. Assim explica a impressão ambígua que deixa a literatura fantástica: de um lado ela representa a quinta-essência da literatura, na medida em que o questionamento do limite entre real e irreal, característico de toda a literatura, é seu centro explícito. Por outro lado, entretanto, não é senão uma propedêutica à literatura: combatendo a metafísica da linguagem cotidiana, ela lhe dá vida; ela deve partir da linguagem mesmo que seja para recusá-la (TODOROV, 1970, p. 176).
Para compreender a alegoria de José J Veiga e a utilização do gênero fantástico, é válido citar Tzvetan Todorov (1970, p. 18) que, em Introdução à Literatura Fantástica, inicia as explicações sobre o gênero fantástico e suas distinções e afirma no primeiro capítulo do livro que “sem o que manejamos um sistema não explícito e ficamos no domínio da fé, quando não das superstições”. Ele afirma ainda que a literatura trata de uma realidade ideal e que ela existe como um esforço de dizer o que linguagem comum não consegue abarcar com suas limitações cotidianas e práticas (TODOROV, 1970, p.27). Mais adiante Todorov diz que a hesitação do leitor diante dos acontecimentos que se apresentam em um texto e não condizem às condições das leis da natureza é a primeira condição do fantástico (1970, p. 37). O autor fornece também uma definição sucinta da representação da literatura fantástica:
No final das contas, a história fantástica pode se caracterizar ou não por tal composição, por tal “estilo”; mas sem “acontecimentos estranhos”, o fantástico não pode nem mesmo aparecer. O fantástico não consiste, certamente, nestes acontecimentos, mas estes são para ele uma condição necessária (...) Seria possível delimitar o problema de um outro modo, partindo das funções que o fantástico tem dentro da obra. Convém perguntar: qual é a contribuição dos elementos fantásticos para uma obra? Uma vez colocado deste ponto de vista funcional, pode-se chegar a três respostas. Primeiramente o fantástico produz um efeito particular sobre o leitor – medo, ou horror, ou simplesmente curiosidade -, que os outros gêneros ou formas literárias não podem provocar. Em segundo lugar, o fantástico serve à narração, mantém o suspense: a presença de elementos fantásticos permite à intriga uma organização particularmente fechada. Finalmente, o fantástico tem uma função à primeira vista tautológica: permite descrever um universo fantástico, e este universo nem por isto tem qualquer realidade fora da linguagem: a descrição e o descrito não são de natureza diferente (TODOROV, 1970, P. 100-101).
O gênero textual fantástico é exibido com exatidão no 14º capítulo, intitulado “Um bicho estranho no palácio” (p. 57-60). O narrador personagem descreve a chegada de um bicho exótico na cidade e, após a explicação de Rudêncio, investiga com alguns moradores da cidade. As respostas são controversas e pouco se sabe sobre a origem do bicho. “Um rapaz dos Armazéns Proibidos me garantiu que é uma montagem de vários bichos feita numa fazenda experimental a mando do Umahla, só para ver o que resultava” (VEIGA, 1976, p. 57-58). As pessoas não aceitam com naturalidade a existência do bicho e para elas sua natureza é estranha. Sua chegada é tida pelos moradores da cidade e também pelo narrador personagem como um acontecimento sobrenatural.
Rudêncio anda empolgado com um bichinho que o Umahla arranjou, comprou ou ganhou, um bicho que ainda não entendi direito de que família é. Rudêncio diz que é uma mistura de quadrúpede com bípede, tem rabo e pelo mas não é macaco. Tem orelhas grandes e unhas pontudas, mas a cara é bem de gente. Não fala mas escuta e parece entender as pessoas. É brincalhão e muito manso, e tem sido o ai-jesus do pessoal do palácio. De vez em quando o Umahla deixa Rudêncio levar o bichinho para distrair as crianças em casa, mas só por algumas horas; o bicho não pode dormir fora do palácio. Rudêncio diz que qualquer dia dá uma fugida rápida e traz ele aqui para eu conhecer e fazer amizade (VEIGA, 1976, p. 57).
Todorov (1970), no nono capítulo de Introdução à Literatura Fantástica, discorre brevemente o estranhamento que o bicho causa entre os personagens da narrativa:
Todo texto em que entra é uma narrativa, pois o acontecimento sobrenatural modifica primeiro um equilíbrio prévio (...) Quer seja no interior da vida social ou da narrativa, a intervenção do elemento sobrenatural constitui sempre uma ruptura de regras preestabelecidas e nela encontra justificação (TODOROV, 1970, P. 174).
O narrador personagem conta que de tanto escutar as histórias de Rudêncio sente-se familiarizado com o bicho como se convivesse com ele diariamente e fosse parte da família. Além de já ter um nome, uiua, Rudêncio descreve os avanços na personalidade do bicho; que faz as mesmas refeições que as pessoas, toma banho e se seca sozinho, as músicas que ouve assovia, “antipatiza com certas pessoas e simpatiza com outras a ponto de se tornar inconveniente” (VEIGA, 1976, p. 58). A relação de Umahla com o uiua é no mínimo extravagante.
O uiua adora o Umahla e gosta de ficar no colo dele nas reuniões importantes, e quando a reunião é demorada ele dorme com a cabecinha encostada no peito do Umahla. Nessas ocasiões os Caincaras baixam a voz para não acordá-lo (VEIGA, 1976, p. 58).
No 15º capítulo, intitulado “A Consulesa está tranqüila” (p. 61-65), o narrador personagem visita seu vizinho Manlio, que está muito curioso para conhecer o uiua. Inclusive promete ao velho que levará o bicho para ele conhecê-lo. Após várias especulações Manlio manifesta com tons de mistério seu parecer sobre a situação de uiua no palácio: “- Sei não – disse ele pensativo. – Acho muita coragem do Umahla dar intimidade a um bicho exótico. Ele pode estar brincando com fogo”. (VEIGA, 1976, p. 64).
A partir da chegada do bicho exótico no 14º capítulo e a reação de estranhamento é que se discute o gênero de Os pecados da tribo. Como os acontecimentos sobrenaturais não são recebidos em um primeiro momento com naturalidade pelos personagens especula-se que José J Veiga transita entre os gênerosRealismo Mágico, Fantástico e Maravilhoso. Para desenvolver esta argumentação dos gêneros em Os pecados da tribo, Todorov (1970) explica em Introdução à Literatura Fantástica, no terceiro capítulo, “O Estranho e o Maravilhoso” (p. 47-63):
Passemos agora para o outro lado desta linha média que chamamos o fantástico. Estamos no fantástico-maravilhoso, ou em outros termos, na classe das narrativas que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do sobrenatural. Estas são as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de permanecer sem explicação, não-racionalizado, sugere-nos a existência do sobrenatural. O limite entre os dois será então incerto; entretanto, a presença ou a ausência de certos detalhes permitirá sempre decidir (TODOROV, 1970, p. 58).
Tzvetan Todorov (1970) explica também a alegoria entre Os pecados da tribo e a ditadura militar brasileira no décimo e último capítulo, intitulado “Literatura e Fantástico” (p. 165-183):
Tomemos por exemplo os temas do tu: o incesto, o homossexualismo, o amor a vários, a necrofilia, uma sensualidade excessiva... Tem-se a impressão de ler uma lista de temas proibidos, estabelecida por alguma censura: cada um destes temas foi, de fato, muitas vezes, proibido, e pode sê-lo ainda hoje (...) Mais do que um simples pretexto, o fantástico é um meio de combate contra uma e outra censura (...) Se a rede dos temas do tu depende diretamente dos tabus, logo da censura, o mesmo acontece com os temas do eu, se bem que de maneira menos direta (TODOROV, 1970, p. 167).
A citação acima demonstra que a obra de José J Veiga tem sua dinâmica ficcional construída com discurso subliminar repleta de vínculos com a ditadura militar do Brasil. Parte-se da hipótese que José J Veiga utilizou-se do gênero fantástico também para expressar com mais segurança sua opinião aos acontecimentos da época que censuravam a liberdade de expressão. Todorov (1970) esclarece ainda que a “introdução de elementos sobrenaturais é um recurso para evitar esta condenação” (p. 168), o que reverbera o pensamento de que não José J Veiga, bem como muitos escritores utilizam o gênero textual fantástico para escrever sobre temáticas que lhes deixam desconfortáveis por alguma razão. Em Os pecados da tribo a presença da linguagem mascarada, também como despiste é evidente - em uma época de intensa repressão e severos castigos, dizer o que se pensava era colocar a própria vida em risco, os escritores tiveram que utilizar vários recursos linguísticos, com peripécias verbais que diziam o impostamente indizível.
No capítulo doze de Os pecados da tribo, intitulado “O enterro das cairas” (49-52), o narrador personagem relata que costumava pescar cairas, uma espécie de bichos pequenos e leitosos que vivem no lago e que surgem uns meninos oferecendo cairas enormes e quase sem leite, que eles haviam descoberto em um lugar secreto, no brejo, após a várzea. Nem mesmo o narrador personagem sabe por que deveria ser proibido pescar cairas, ainda mais cairas muito diferentes das que todos estavam acostumados, mas de alguma forma havia chegado em um momento, que se iniciou no primeiro capítulo, onde gradativamente todos os prazeres do narrador personagem e das pessoas à sua volta eram conquistados às escondidas, sempre temerosos que à espreita houvesse alguma autoridade (geralmente turunxas) para lhes repreender, dizer que o que estavam fazendo era errado e que se não parassem seriam barbaramente punidos.
- É melhor não dizer nada. Quanto mais falar, mais encalacrado fica – disse o turunxa
- Por que vou me encalacrar?
- Tão inocente! O que foi que eu fiz para me encalacrar.
- Pegar turunxa não é proibido.
O turunxa titubeou, pensei que ia desistir. Eles não conhecem leis e, para se garantir inventam proibições. Geralmente acertam porque quase tudo é proibido hoje (VEIGA, 1976, p. 52).
Existe uma aproximação entre o exemplo do capítulo acima e o trecho de Introdução à Literatura Fantástica onde Todorov (1970) especula as funções do sobrenatural na literatura.
Já respondemos uma vez a esta pergunta: à parte as alegorias, em que elemento sobrenatural visa quando muito a ilustrar uma ideia, tínhamos distinguido três funções. Uma função pragmática: o sobrenatural emociona, assusta ou simplesmente mantém em suspense leitor. Uma função semântica: o sobrenatural constitui uma manifestação, é uma autodesignação. Enfim, uma função sintática: ele entra, dissemos, no desenvolvimento da narrativa. Esta terceira função está ligada, mais diretamente do que as duas outras, à totalidade da obra literária (TODOROV, 1970, P. 171);
William Spindler (1993), em Magic Realism: a typology, debate o Realismo Mágico e suas várias concepções. Os pecados da tribo de José J Veiga enquadra-se no Realismo Mágico e duas de suas vertentes, o Realismo Metafísico e o Realismo Antropológico.
(...) o escritor de textos realistas mágicos compactua com a realidade objetiva e tenta descobrir o mistério que existe nos objetos, na vida e nos atos humanos, sem lançar mão de elementos fantásticos: “o principal (no realismo mágico) não é a criação de seres ou mundos imaginados, mas o descobrimento da misteriosa relação que existe entre o homem e sua circunstância (...) Ao invés de criar um texto em que os princípios da lógica são rejeitados e as leis da natureza revertidas, as narrativas mágico-realistas, em sua visão, dão aos acontecimentos reais uma ilusão de irrealidade (SPINDLER, 1993, p. 4)
A partir desta definição introdutória acerca de Realismo Mágico Spindler (1993) cita vários exemplos no decorrer do artigo e define vários tipos de realismo mágico. Identificou-se na obra de José J Veiga o Realismo Mágico Metafísico, especialmente no décimo capítulo, com a chegada do uiua no palácio e a descrição de Rudêncio ao animal:
Essa forma de Realismo Mágico (Realismo Metafísico) corresponde às idéias de Roh e à definição original do termo. Exemplos desse tipo de Realismo Mágico, consequentemente, são comuns na pintura, na qual perspectivas deslocadas, ângulos incomuns, ou inocentes retratos de objetos reais como se fossem de brinquedo produzem um efeito “mágico” (SPINDLER, 1993, p. 6).
No sexto capítulo de Os pecados da tribo, intitulado “O estranho povo da várzea” (p. 23-26), o narrador personagem é indagado por seu irmão Rudêncio sobre a existência de um povo na várzea, que ficou sabendo que eles comiam estrume de cavalo. O narrador personagem ficou intrigado por Rudêncio estar na tentativa de capturar um povo apenas por comer estrume de cavalo e comentou o caso com sua mãe, que lembrou de uma conversa com o pai de Rudêncio e do narrador personagem, onde ele disse que “em uma de suas viagens a Altamata conheceu uma tribo que comia estrume de cavalo para não matar a fome, mas como meio de entrar em comunicação com o mundo invisível” (VEIGA, 1976, p. 24). O narrador personagem comentou o caso com Rudêncio que, mais tarde, noticiou que ele e seus homens haviam dizimado o povo da várzea e os que conseguiram escapar foram caçados, apanhados e depois evaporados (p. 25). Este capítulo se aproxima com a definição de Spindler (1993) para Realismo Mágico Antropológico:
Neste tipo de Realismo Mágico o narrador normalmente tem “duas vozes”. Às vezes ele/ela retrata acontecimentos de um ponto de vista racional (o componente “realista”) e às vezes do ponto de vista do crente em magia (elemento mágico). Essa antinomia é resolvida pelo autor quando adota ou se refere aos mitos e histórico cultural (o “inconsciente coletivo”) de um grupo étnico ou social (SPINDLER, 1993, p. 7).
Também seria possível aprofundar-se na alegoria entre o povo da várzea comer estrume de cavalo com o consumo de substâncias que foram consideras ilegais na época da ditadura. Muitos que vivenciaram a época ditatorial do Brasil “faziam a cabeça” e mantinham um comportamento sexual libertário como forma de protesto e fuga daquela realidade dura imposta a coronhada na existência das pessoas, roubando-lhes não apenas o direito de ir e vir físico como tentando insistentemente impor-lhes suas ideias no livre arbítrio da consciência.
Seymour Menton (1998) em Historia Verdadeira Del Realismo Mágico, relata que iniciou um projeto com o propósito de documentar a existência do Realismo Mágico como uma importante tendência na pintura alemã, francesa, italiana, holandesa e estadunidense, mas que interrompeu os estudos para se dedicar a outra pesquisa. Seu retorno ao Realismo Mágico acontece quando um grupo de investigadores, a maioria residente em Bruxelas, sob a orientação de Jean Weisgerber publica em francês Le rèalisme magique. Roman, peinture et cinéma (p. 10).
De cierta manera, el tomo bega me cerró el camino porque coincide com mi punto de vista de que el realismo mágico es uma tendencia universal y no fue engendrado por el suelo americano (...) contiene ensayos dedicados a varios países, incluso Polonia, Hungría, Canadá y sobre todo Bélgica (Johan Daisne y Hubert Lampo) (MENTON, 1998, p. 10).
Menton (1998) explica detalhadamente seu retorno às pesquisas ao Realismo Mágico citando autores que para ele são importantes, publicações e estudos (p. 11-12) até que inicia o desenvolvimento de suas concepções particulares das definições iniciais de Realismo Mágico:
Vários criticos literarios, sobre todo los que se dejan guiar más por la teoría que por las obras, han confundindo el realismo mágico con lo fantástico; otros, junto con muchos críticos de arte, han confundido el realismo mágico con surrealismo; y muchos latinoamericanistas han confundido el realismo mágico con lo real maravilhoso (MENTON, 1998, p. 12).
Ao longo de Historia Verdadera Del Realismo Mágico, Menton (1998) realiza análises de contos de vários autores (André Schwarz-Bart, Borges, Gabriel García Márquez e Truman Capote, por exemplo) na argumentação de sua definição para Realismo Mágico.
Os pecados da tribo é uma obra cínica, lúcida, bem-humorada e de articulação “limpa”. José J Veiga não se perde em digressões descritivas e deixa ao leitor o trabalho de construir o universo da obra e por isso constrói uma narrativa riquíssima para ser pensada, analisada, escarafunchada, refletida – e sentida: aos que vivenciaram esta época atroz onde os direitos humanos foram claramente desrespeitados em nome de uma força econômica do país. E aos que, como eu, escutaram diversas versões dos fatos (ora sentada no colo dos avôs militares rígidos e disciplinadores ora sentada no colo do tio poeta, jornalista e sonhador).
7. REFERÊNCIAS
DANTAS, Gregório. José J. Veiga e o romance brasileiro pós-64. Tese (Doutorando em História e Teoria Literária), UNICAMP, Campinas, São Paulo, 2005.
FUENTE, José Luis de La. Reseña Seymour Menton. História verdadera del Realismo Mágico. Universidad de Valladolid, Fondo de Cultura Econômica. México, 1998.
REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA. Porto Alegre: Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). N.7, 2005.
SEYMOUR, Menton. Historia Verdadera Del Realismo Mágico.
SPINDLER, William. MagicRealism: a typology. Universidade de Essex, Inglaterra: 1993. Tradução Fábio Lucas Pierini.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. 2. ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 2003
NOTAS
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