O pequeno livro Fotos imaginarias con nieve
de verdad, do poeta argentino Arturo
Carrera, participa de uma coleção cujo nome é
Apuntes de Lobotomia. A proposta editorial independente foi criada no México
por Verónica Zamudio, Demian Marín e Sergio Ernesto Ríos e tem por finalidade
oferecer o livro para o leitor como uma "experiência anômala", nas palavras dos
editores.
Arturo
Carrera é um dos nove autores latino-americanos convidados a fazerem parte da
coleção e, até o momento, o único que foi publicado. Em cada um destes volumes
deverá se encontrar estampado atrás do livro-objeto uma parte do desenho da
planta baixa de um hospital psiquiátrico. A coleção se concluirá quando o
diagrama do hospital estiver completo.
Em Arturo
Carrera, cujo livro inaugurou a coleção,
trata-se de um objeto que se faz livro com um pequeno envelope
colado atrás do pedaço da planta baixa. Dentro do envelope uma única folha com
quatro dobras que desdobrada lhe dão trinta e duas páginas-papiro, nas quais
vêm distribuídos vinte e oito fragmentos numerados e sugeridos como fotos
imaginárias com neve de verdade. Neste livro, o poeta ao escrever a sua poesia
aproximou-se do escrever
com a luz que caracteriza o fazer do fotógrafo.
Pois bem, informações como estas, antes de servirem
à utilidade editorial, desencadeiam mais que um procedimento estético, mas uma
nuvem de sensações. A neve lá fora, neve de "verdade", insiste o adjetivo, insinua-se
no livro enquanto objeto de linguagem. A sensação sugerida pela relação entre (ou fora-dentro) os adjetivos
"imaginárias" e "verdade" para os substantivos "fotos" e "neve" do título,
leva-nos a uma noção sem lembrança, memória mínima do desaparecimento.
Fotos imaginarias con nieve
de verdad inaugura um espaço de relação
que tangencia, até pela sua transversalidade, aA Momento de simetría.
Contudo, a página daquele está distanciada da página-galáctica deste, pois,
desta vez os poemas vêm grafados em preto sobre uma página branca, "neve", que
os recebe feito instantâneos fotográficos. Lá fora a noite escura é atravessada
pelo brilho da neve como um apagamento:
Quantas
eram? Porque desapareceram
nossas fotos da grande nevada? A primeira?
A última para mim? Já que abala a noite
sua maneira de sonhar? Qual
era, dentre todos os copos,
nossa vida?
Não sei... Em seu segredo feliz
jogamos ainda.
(CARRERA, fragmento 2, s/p).
Não é por meio do registro técnico da escrita com a
luz que, obviamente, a fotografia comparece, mas pela recordação murmurante:
Que não se apague ainda,
mesmo sem as fotos,
teu sorriso de ontem
debaixo da neve. E o sorriso do cãozinho
nesse brilho feliz que ignorava a noite.
(...)
(CARRERA, fragmento 1, s/p).
Este fazer a poesia no imaginário do leitor
desencadeia a procura, talvez, do que Blanchot chamou de "silêncio puro, a fala
em estado bruto" (1987, p. 32), referindo-se à experiência de Mallarmé quando
este reconhece "um duplo estado da fala, bruto ou imediato aqui, essencial
acolá" (p. 32).
Em Fotos imaginarias con nieve de verdad, poesia sobre página-luz, pois nada é desperdício e se faz linguagem, o uso com funcionalidade
dilatada e expandida dos adjetivos do título e o papel sutil do advérbio de
alterar substantivos, trazem inquietação ao leitor, pela presença na linguagem
do sentido que advém dessa fala em estado bruto, a linguagem do pensamento.
Segundo Blanchot, a "fala bruta" que "se relaciona com a realidade das coisas"
(p. 32) pode simplesmente ser representada, mas a poesia, segundo o filósofo
francês, deveria então evocar essa "fala bruta", sem transformá-la em
representação, mas numa "fala essencial" (p. 32). Ao invés de significá-la,
apreendê-la por sua ausência, "transpô-la em seu quase desaparecimento
vibratório" (p. 32). Por isso, ainda segundo Blanchot, estaríamos sempre
tentados a reconhecer que a linguagem do pensamento "é, por excelência, a
linguagem poética, e que o sentido, a noção pura, a ideia, devem tornar-se a
preocupação do poeta, sendo isso somente o que nos liberta do peso das coisas,
da informe plenitude natural" (p. 32).
Por este motivo a poesia designa tanto uma espécie
de discurso, que a identifica como um gênero entre outros no meio das artes,
mas que não cessa de desterritorilizar-se deste mesmo gênero. O poético faz-se,
segundo Jean-Luc Nancy, quando acedemos de um modo ou de outro "a uma orla de
sentido" (2005, p. 9). Isto tanto quer dizer que não é qualquer poesia uma
medida do poético quanto nos permite pensar na generosidade do poético como
lugar de acesso, antes mesmo que a própria poesia seja constituída como
linguagem. Quer dizer, segundo Jean-Luc Nancy, "que apenas esse acesso define a
poesia, e que ela só tem lugar a partir do momento em que ele tem lugar" (p. 9)
e a própria poesia "pode perfeitamente encontrar-se onde não existe propriamente
poesia" (p. 10).
Em
Arturo Carrera, em
que a sua poesia não cessa de tocar e insinuar a exterioridade, um lugar
fenomenológico de relações incessantes, sugere uma questão importante: a do
procedimento estético preenchido daquilo que Deleuze chama afectos e nas palavras de Raul Antelo, podem ser
considerados "uma prótese de vida" (2008, p. 55). Segundo Antelo, é isso que
melhor define a modernidade "enquanto organização de uma onda de embates contra
as atitudes bem-pensantes e contra categorias tais como forma, conteúdo,
imagem, obra ou inclusive arte" (p. 55).
Em Fotos imaginarias con nieve de verdad a questão puramente estética aparece como questão
superada, se pensarmos no tempo que separa este livro de aA Momento de simetría, no qual já trazia uma relação de alteridade
entremeada na linguagem: um lugar cosmológico para Alejandra Pizarnik e em escrito con un nictógrafo, a presença marcante da perda da avó materna, "uma
invocação do útero", conforme Nancy Fernández (2008, p. 26). Para Arturo Carrera
a questão sempre foi mais do que o procedimento estético que se aproxima
perigosamente do científico, do pensar do homem de ciência como animal rationale; ou mesmo do seu sentido de "experiência",
radicalizado pelas vanguardas históricas: o de destruir/construir, posto por
Walter Benjamin. A lógica do procedimento estético de Arturo
Carrera se afastaria do racionalismo da ciência somente com o sentido de
invenção presente na sua página cosmológica. Um desvio praticado nos anos 1970
e 1980 por quase toda uma geração de artistas. Mas não é somente isso, pois o
poeta, segundo Arturo Carrera, "faz seus
próprios gestos fósseis, como o gato que esconde excrementos que não fez na
frente dos seus congêneres que não tem e com terra que não há"
(2008, p. 54).
Podemos atribuir presença afetiva na linguagem uma
alteridade e a esta o desenvolvimento da margem necessária, sem renúncia ou
ruptura, mas de afastamento desta poética em relação ao construto puramente
racional das vanguardas históricas. Neste sentido, aproxima-se do que Lévinas
atribui à subjetividade na cultura: "nada é mais horrível do que o burburinho
das significações culturais, abordado a partir do interno por uma subjetividade
(enquanto sua expressão formal as simplifica e explica)" (1993, p.72).
Podemos afirmar, seguramente, que esta margem vem
se expandindo na poética de Arturo Carrera desde os seus primeiros livros, escrito con un nictógrafo, aA
Momento de simetría e Oro, justamente os que, segundo Joca Wolff, iniciam
esta poesia. Assim como estes livros traziam na sua espacialização uma marca
notável dos procedimentos adotados pela Poesia Concreta, por exemplo –
sobretudo a espacialização adotada por Haroldo de Campos no poema-livro o Âmago do ômega (1955-1956), incorporado textualmente por Arturo
Carrera em seu aA
Momento de simetría –, havia na
linguagem destes livros uma presença afetiva igualmente marcante. Precisamente,
Arturo Carrera sempre apreendeu o movimento de ultrapassagem das categorias, a
consciência material da linguagem, conquistas, entre outras, da vanguarda
histórica, mas as delineou de modo a incluir nestes procedimentos as relações
afetivas e suas finas ressonâncias.
Com Raúl Antelo, podemos retomar o que este define
como uma questão "aporética", uma situação posta ao poeta moderno de "ter de
conciliar, na obra, sua contemporaneidade, vale dizer, seu pertencimento aos
atos de fala do presente e, ao mesmo tempo, sua procedência de remota origem,
que a torna inspirada pelo passado da língua" (2008, p. 54). A poética de
Arturo Carrera mantém a experiência na linguagem como um procedimento, mas
chama para si os "assombros" ou "surpresas", o que a faz escapar do que,
segundo Raúl Antelo, a partir do conceito "caráter destrutivo" posto por Walter
Benjamin, as vanguardas históricas da modernidade estariam condicionadas:
Em vista dessa ambivalência inerente à agressão
vanguardista, a poesia dos 1980, chame-se neobarroca, pós-moderna ou da
sensibilidade, define-se a si mesma como uma reação contra as tendências
explícitas e extremistas do terrorismo estético da modernidade. Sua busca de
novas redomas ou esferas, sua atenção ao nímio e à dobra, sua coleção de
decalques e inscrições são, de fato, produto de intensas cooperações de
trabalho humano. Constituem o resultado imaterial e, no entanto, o mais real de
todos, por tornar infraleve um esforço que só é levado a cabo por meio de
ressonâncias (2008, p. 56).
Em Fotos imaginarias con nieve de verdad, podemos atribuir uma singularidade a essa
experiência do afecto na linguagem. Uma ideia de construto,
continuamente atualizada em
Arturo Carrera e que nunca é demais reafirmar que esta advém
nitidamente da sua relação com os conceitos lançados pelas vanguardas
históricas, cuja genealogia remonta a Mallarmé. Mas podemos lançar mão de uma
metáfora, rebaixando-a ao vazio para tentar minimizar o risco: um construto sem
nome, uma casa sem endereço ou morada. Joca Wolff,
em estudo recente, "A fotografia como poesia e a poesia como fotografia",
texto que relaciona poesia e fotografia, mas sem contrastá-las, lembra-nos que
"a partir dos anos 1980, livre tanto do textualismo quanto do concretismo, o
poeta segue usando seu nictógrafo" (2009, p. 261). Neste mesmo texto, Joca
Wollf nos informa que os fragmentos deste livro vêm de uma experiência real: "sobre
a nevasca que atingiu Buenos Aires no inverno de 2007" (p. 256) e
atenta para a "trituração do sentido" (p. 257) na relação entre poesia e
fotografia, ou seja, a fotografia como poesia no que sugere os fragmentos
serem "imagens derretidas" (p. 257), bem apropriadas às "estruturas
dissipativas" (p. 257), uma referência ao
conceito dado por Reinaldo Laddaga sobre a poética de Arturo Carrera.
A agramatilidade (Derrida) que ressoa neste livro,
por sua sutileza, aparece-nos já na informação de que os poemas vieram da
vivência de uma nevasca que há muito não acontecia em Buenos Aires. Esta
realidade se relaciona com esta poesia sem esta expô-la pela discursividade,
como se fossem dados de fato. Pelo contrário, pois é na sua fragilidade que se
faz riqueza, a mesma riqueza que escapa às pesquisas etnológicas e
arqueológicas. Justamente por não constituir representação de um fato unânime,
apesar de a nevasca ter sido vivenciada por todos da grande cidade. A realidade
entra nesta poesia sem inflacioná-la, mas para ser transformada em poesia. Até
aqui, podemos dizer, com Joca Wolff, que toda poesia contém esta origem, mas há
modos diferenciados de tocá-la, de acessá-la. As fotografias imaginárias vieram
de fotografias realmente produzidas, ou melhor, tentativas, pois – outro
movimento deste dado da realidade – as fotos se perderam. Neste movimento é que
a escrita poética passa a se relacionar intensamente com o lugar da escrita da
luz, do escrever com a luz (a arte da fotografia) e começa a escrever um
apagamento.
Por isso, parece-nos perturbador o adjetivo
"verdad" no título deste livro. É a marca dissipativa ocasionada por essa
dialética do desaparecer-não desaparecer. A pertinente leitura de "trituração
do sentido", posta por Joca Wolff para este livro e sua relação com a
fotografia, mencionando a Reinaldo Laddaga das "estruturas dissipativas", que é
também aludida por Nancy Fernández (2008, p. 42), a partir de outro livro, Arturo e yo , mas em relação à pintura: "É ali onde a pintura
antecipa os traços da sensação como franjas esfumadas" (p. 43).
Arturo Carrera, que traduziu Ives Bonnefoy, como este, desde seus primeiros livros, parece
ter conduzido a sua poética a um lugar de opacidade, o mesmo que Yvez Bonnefoy
"encontrou" em seu ensaio: O ato e o lugar da poesia ― o lugar do
improvável, lugar sem provas. Nancy
Fernández, em muitos sentidos, apresenta-nos algumas evidências neste
comentário:
O
real e a experiência de voluptuosidade. Mas o real também é a experiência
poética manifestando-se concientemente do artifício (as leituras que a
atravessam) e da letra (a técnica converte as lembranças em motivos cênicos).
Assim, o Grilo, mais que o reflexo do êxtase pelo noturno campestre é a
tradução da imagem mallarmeana: o fauno. Carrera dá forma a sua imagem de autor
como quem joga e atua (em sentido teatral do termo); mas, por sua vez, é quem
executa ou interpreta, ou melhor: quem toca o ritmo interno, a música vibrante
e natural do corpo (2008, p. 179).
O continuum
desses afectos que preenchem esta poética, neste livro em
especial porque se pode comemorar nele a presença e o murmúrio
de uma poética livre de qualquer afirmação estética e muito menos viravolta
conservadora diante da contemporaneidade. Os procedimentos que a vanguarda
desde sempre colocara para a página, transformando-a em linguagem do poético,
principalmente o rompimento com a linearidade, ainda estão vivos, mas a sua
racionalidade – que também fez aqueles procedimentos ingressarem, ou melhor,
tangenciarem aquilo que constitui tanto um triunfo quanto um problema: a
inflação significante dos recursos midiáticos e mesmo o excesso virtual, na
medida em que são meros suportes de todo tipo de discurso – em Arturo Carrera,
estão abismados na tartamudez e na ressonância fina de sua linguagem.
Não obstante, esta é uma das diferenças
fundamentais das leituras do poema-livro Um lance de dados jamais
abolirá o acaso, de Mallarmé, feitas por Walter
Benjamin e Maurice Blanchot. Com efeito, a página delineada por Mallarmé
atravessou as vanguardas do mundo em diferentes épocas e nacionalidades, mas,
talvez hoje tenha chegado o mais próximo daquilo que podemos dizer livro-livre.
Fotos imaginarias con nieve
de verdad, mesmo que todo feito de
palavras, alega nas suas hecceidades
o pensamento que não se encerra nas palavras, mas que se pode pensá-las fazendo
da experiência uma relação íntima com a materialidade, relação observada na
pintura sumi-ê
:
A neve é outra coisa. Um material
que preparam para a arte da fotografia.
Uma pintura sumi-ê, que não poderá ser retocada
nem apagada a risco de derreter como na
calçada a água que cai com a neve.
No entanto, na memória, agora,
Nos é o suave abanador, o limpaparabrisas
de um instante que furtou a plenitude de
outros instantes. Esse tempo apenas que vivemos
para
dizer: "somos eternos na leveza passageira!"
(CARRERA, fragmento 5, s/p).
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Disponível em:
http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/critica/0402/00.htm