ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

VIDA COMO FENDA: (RASANTES SOBRE) ESCRITAS DA
ALTERIDADE EM ANA CRISTINA CÉSAR

 

                                                                              Roberta Ferraz

                                                                     

 

A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés

de dedos, ou dedos nas pontas das palavras”.

 

                             (Roland Barthes. Fragmentos de um Discurso Amoroso., p. 64)

 

 

Inicio com ressalvas, também porque a ‘ressalva’ me parece apropriada num texto sobre os textos de Ana Cristina: quando digo ‘rasantes sobre escritas da alteridade em Ana Cristina Cesar’ quero mesmo apontar, de início, a incongruência relativa de um olhar que experimento sobre essa autora e essa obra. São apenas rasantes. É isso: experiência ainda quente de corpo, sem muito lastro de tempo ou convívio, ainda no âmbito da urgência do toque que está pele-a-pele com as palavras da autora. São ‘rasantes’, então, esses rasgos da vista que eu lanço agora e aqui em, principalmente, dois poemas, do livro A teus pés, que teve sua primeira edição em 1982, pouco antes do famigerado suicídio da autora. Trata-se do primeiro poema, o poema de abertura do livro, sem título; e também o poema chamado “Atrás dos olhos das meninas sérias”. Antes de lê-los, aqui com vocês, mais um adendo às ressalvas: as idéias contíguas de ‘fenda’, ‘rasante’ e ‘alteridade’ que compõem o título deste texto, funcionaram como pares, ou melhor, como um trio em que a escrita de Ana C. pareceu balançar, não como uma pirâmide bidimensional achatada numa folha, mas, ao contrário, tendo a ponta deste triângulo de cabeça para baixo, como uma estranha figura densa que se apóia no minúsculo de um vértice e vive em constante desequilíbrio e deriva.

 

O que quero dizer, fazendo uso de uma imagem um pouco menos atravancada, é que vejo na escrita de Ana Cristina um corpo pendular em constante movimento, incessantemente atraído às fendas, aos buracos nos quais o vento areja e abre, levando o próprio corpo do texto a dar rasantes sobre si e sobre as coisas ali ditas, num propósito de evidenciar as falhas de qualquer comunicação, de esburacar os ‘prováveis sentidos’ de qualquer texto. A imagem do corpo em parco equilíbrio, imagem de um texto que se desdobra, que joga com suas sobras, com suas peles, parece sugerir que o vértice no qual o dizer se apóia seja justamente a força dialogante dos enunciados ali emaranhados e confluídos. Como disse, enunciados em estado de concreta latência, diálogo entre vários fragmentos ou blocos de sensações. A palavra poética expõe, no texto, o real desses afetos, a sua materialidade, já que é nela que acontece o defloramento do provável sujeito poético, é ali, no texto, que ele se anuncia em e para sua vasta precariedade, mostrado por um corpo todo estilhaçado, pelo real fendido da materialidade, as fendas como passagens para o corpo em deriva, que é a palavra. Os dedos e as palavras, do Barthes, indo de encontro um ao outro.

 

Vamos agora aos textos. O segundo poema citado será lido mais adiante. O primeiro diz o seguinte:

 

   Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando

   uma informação difícil. Agora silêncio; silêncio eletrônico,

   produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das

   asas batendo freneticamente.

   Apuro técnico.

   Os canais que só existem no mapa.

   O aspecto moral da experiência.

   Primeiro ato da imaginação.

   Suborno no bordel.

   Eu tenho uma idéia.

   Eu não tenho a menor idéia.

   Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.

   Memórias de Copacabana. Santa Clara às três da tarde.

   Autobiografia. Não, biografia.

   Mulher.

   Papai Noel e os marcianos.

   Billy the Kid versus Drácula.

   Drácula versus Billy the Kid.

   Muito sentimental.

   Agora pouco sentimental.

   Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu

   amor de ontem.

   Gertrude: estas são idéias bem comuns.

   Apresenta a jazz-band.

   Não, toca blues com ela.

   Esta é a minha vida.

   Atravessa a ponte.

   É sempre um pouco tarde.

   Não presta atenção em mim.

   Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio do grande rio.

   Estamos em cima da hora.

   Daydream.

   Quem caça mais o olho um do outro?

   Sou eu que admito vitória.

   Ela que mora conosco então nem se fala.

   Caça, caça.

   E faz passos pesados subindo a escada correndo.

   Outra cena da minha vida.

   Um amigo velho vive em táxis.

   Dentro de um táxi é que ele me diz que quer chorar mas não

   chora.

   Não esqueço mais.

   E a última, eu já te contei?

   É assim.

   Estamos parados.

   Você lê sem parar, eu ouço uma canção.

   Agora estamos em movimento.

   Atravessando a grande ponte olhando o grande rio e os três

   barcos colados imóveis no meio.

   Você anda um pouco na frente.

   Penso que sou mais nova do que sou.

   Bem nova.

   Estamos deitados.

   Você acorda correndo.

   Sonhei outra vez com a mesma coisa.

   Estamos pensando.

   Na mesma ordem de coisas.

   Não, não na mesma ordem de coisas.

   É domingo de manhã (não é dia útil às três da tarde).

   Quando a memória está útil.

   Usa.

   Agora é a sua vez.

   Do you believe in love....?

   Então está.

   Não insisto mais.

 

 

Os primeiros versos “Trilha sonora ao fundo. Piano no bordel. Vozes barganhando/ uma informação difícil” abre o plano inicial da cena e anuncia, de cara, uma composição em variados segmentos de imagens: há uma ‘trilha sonora’ ‘ao fundo’, um piano no bordel, e vozes que barganham uma informação difícil. Não vemos um sujeito auto-manifesto, que fale a partir de um ‘eu’. O que experimentamos é esta cena, cena que desvia nossa percepção ora para uma trilha sonora ao fundo, dando-nos a sensação sonora de volumetria, ora para o piano, que nos situa brevemente num bordel, onde vozes tentam comprar com malícia uma informação difícil. Malícia, clima subversivo: já sou eu quem lê, eu leitor que já entrei no jogo. Ouvimos ‘vozes’, não apenas ‘uma voz’, ainda que haja a indicação voyeur de um observador distanciado dessa cena toda, uma espécie de narrador poético – nós, leitores, regendo a leitura. Ainda que isso seja uma armadilha... afinal, poderíamos paradoxalmente estar lendo de olhos vendados...? Essa primeira cena do poema parece apenas sugerir um roteiro de sensações ao corpo-olhos do leitor. Sons, cheiros, murmúrios, um certo clima de clandestinidade e de segredo. Não de um sujeito: do texto.

 

Em seguida, o poema diz: “Agora silêncio. Silêncio eletrônico, / produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das / asas batendo freneticamente”. Outra vez, a condução da cena não é proposta dentro de uma ‘cumplicidade’ de ‘sentido’ organizado e coeso. O que é proposto são sensações. “Agora silêncio”. Sugestões de um silêncio pesado, duro, opaco – feito no sintetizador, um silêncio que se atualiza em mim, leitor, num escopo de violência e secura, já que o volume e a intensidade projetada pelas “asas batendo freneticamente” acabam por levar a minha leitura a uma estranha sensação agônica de, por que não, uma gaiola.

 

Poderíamos continuar esse prazeroso (e perigoso) exercício de leitura até o último verso, mas infelizmente não dispomos aqui do tempo necessário para esse passeio. Sugiro muito que vocês o experimentem, deixando que o corpo breve experimentado pela leitura se apresente em sua teia repleta de fendas abertas a uma infinidade de imagens e conexões.

 

O que eu quero frisar, com esses curtos rasantes dados sobre os versos iniciais do poema, é que, na escrita de Ana C. , o próprio ato de ler se propõe como experiência de alteridade. Como diz Anita Costa Malufe, em seu belo ensaio “Territórios Dispersos: A poética de Ana Cristina Cesar”:

 

Desta idéia decorre que o texto não é “em si”, bloco fechado de sentidos já feitos, mas sim, um campo em que flutuam situações, estados, sentidos, linhas de conexões infinitas, um real-virtual, que se torna real-atual no embate com o leitor. É no ato de leitura, e em cada ato, que o sentido do texto é construído, em um movimento de vasculhar as palavras e ao mesmo tempo invadi-las de nossa experiência pessoal, de nosso entorno. Uma via de mão dupla intermitente. Ao lermos, esburacamos o texto (...), vamos fragmentando-o para depois dobrá-lo sobre si mesmo, costurando partes para montar nosso sentido próprio. (...) E assim, enquanto construímos o sentido do texto, ele participa da nossa própria construção: ali também nossa subjetividade é remexida, revista. (MALUFE, A. C. op. cit., p. 101)

 

Anita Costa Malufe, para ler a poesia de Ana Cristina numa outra lente que aquela postada sobre as ‘manchetes sensacionalistas’ do binômio bela e suicida que rondam a crítica mais habitual sobre a autora, embasa-se em Foucault, Blanchot e Deleuze, os chamados ‘filósofos da diferença’, autores que estavam presentes na biblioteca pessoal da poeta, conforme se pode observar em seu acervo pessoal no Instituto Moreira Salles, e que fizeram parte, portanto, tanto do pensamento crítico de Ana Cristina, bem como de seu plano de composição.

 

Há no texto de Ana Cristina uma errância dos enunciados, em que o poema composto de eventos e trânsitos vai se dando à leitura, no mesmo momento em que se vai compondo e decompondo, afinando-se muito com a idéia de alteridade enquanto alteração. Proposta ética de um sujeito que seja um talvez possível, mais do que provável, numa possibilidade já de início dispersada, que se altera, que se transforma enquanto se transmite dando substância a essa noção de alteridade enquanto prática da instabilidade de qualquer sujeito, instabilidade congênita, que (des)amarra texto e leitor. Nesse sentido, o poema parece captar e favorecer o que aparece como forma de ser dessa linguagem, em que fica exposta a fragilidade de qualquer mensagem, de qualquer mensageiro, de qualquer receptor. A alteridade se atualiza em nós leitores, que nos alteramos no ato de leitura desse texto talhado como contínua alteração. A relação eu – outro dentro e fora do texto elucida esta instabilidade: o texto e os possíveis sujeitos nele enunciados estão em deriva, dizendo e desdizendo a si mesmos, para um outro ou outros, no texto e fora dele. Aqui o sujeito não pode ser lido como lugar de identidade, porque se mostra sempre num sentido processual.

 

O sujeito poético é aberto por essas fendas, em que se fende em direção ao outro, em que se altera para o encontro com a alteridade, de si com o outro. No outro. O que podemos ver então são cenas, flashes, sketches, muito afinados com a jazz-band que parece situar toda a dinâmica do poema: gestos apenas, impulsos, trocas que não se reificam, que se estatelam naturalmente no artifício da linguagem. Não podemos, pergunto, ler aqui a alteridade como um procedimento motor dessa poética? É interessante observar que também Ana Cristina fazia questão de, muitas vezes, afirmar essa aporia do poético, esse centro descentrado que a poesia concretiza. Ela diz: “Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela construção, ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade acerca de minha subjetividade. É uma impossibilidade até”. (CESAR, A. C. Crítica e Tradução. p., 273).

 

Nada se identifica, tudo é mantido em estado de tensão. Em estado de dúvida, de hesitação, de fluxo. O poema não quer dizer ou ensinar nada. Nesse sentido, não se trata de uma ética que envolva expectativa de conclusão sobre o outro ou sobre si, e que parece passar longe da idéia de um dever ou de uma responsabilidade nessa relação eu – outro. Segue um pouco o fluxo geminiano do Pessoa, naquele “não evoluo: viajo”. Se os corpos físicos dos sujeitos em situação de contato têm pouca ou menor capacidade de estar consciente diante da transitoriedade dos encontros, o poema, por sua vez, realiza o impossível: fixa o transitório, deixa que as palavras escorram sem jamais chegar ao derramamento final, porque abole fim e começo, abole o rompimento justamente porque o revela. Essa ambigüidade, essa aporia que o poema dá à vida e, de alguma maneira, parece acolher as nossas fendas-feridas, simplesmente por desnudá-las, ousar assumi-las como lugar próprio da escrita. Ou como diria John Ashbery, citado por Viviana Bosi, “para dar conta da vida contemporânea é necessário escrever textos que não tenham começo nem fim – trechos de falas trazidas pelo vento” (BOSI, V. In: MALUFE, A. C. Territórios Dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar. SP: Anablume/FAPESP, 2006, p. 14). Lembro também do que diz Foucault, em “Linguagem e Literatura”, texto de 1964: “A literatura é uma distância aberta no interior da linguagem, uma distância incessantemente percorrida e jamais coberta; uma espécie de linguagem que oscila sobre si mesma, uma espécie de vibração imóvel”.  Gosto da imagem usada, “vibração imóvel”. Esse exercício talhado no corpo da linguagem é intensamente posto à prova na poética de Ana Cristina Cesar, afinada com aquilo que também diz Foucault, no texto de 1969 – o período vivido pela poeta – intitulado “O que é um autor”. Nesse texto, Foucault diz que ‘a escrita de hoje’ se libertou do tema da expressão, ou seja, está sempre se referindo a si própria, não se deixando aprisionar na forma da interioridade, identificando-se sim com a sua própria materialidade manifesta. É aquele “não importa quem fala”, de Beckett, com a qual o mesmo Foucault sentencia um dos princípios éticos da escrita contemporânea: a escrita como prática, não como resultado. Ele diz: “Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é uma questão de abertura – ou digo eu, ‘fenda’ – de um espaço onde o sujeito da escrita está sempre a desaparecer”. (FOUCAULT, M. O que é um autor?. Ed. Vega, s/d., p. 35).

 

Não entraremos aqui em outro provável labirinto que formaria o par “fenda – finda”, ou seja, no jogo entre escritura e morte, parentesco entre devir e permanência, outra fenda também muito válida na leitura da poeta. Fiquemos aqui com as noções de alteridade posta em cena por Ana Cristina no poema lido. Mais uma vez, voltamos aquele conjunto de imagens que nos suscita a escrita de Ana: fendas, sketches, cenas, flashes.  O que não é “automatismo”, como diz o poema chamado “Este Livro”, que poderíamos ler assim, acoplando diretamente o título ao corpo do poema: “ Este Livro / Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração (...)”. (CESAR, A.C. op cit., p. 55). O procedimento afirmado não é, portanto, aquele deliberado pelos surrealistas, jura o poema. Estaria mais próximo daquilo que Viviana Bosi chamou “a passagem complexa entre escrita e vida”, que teria marcado toda a obra de Ana Cristina. Passagem complexa, com tons de ‘ensaio’, música do coração sobre a qual só se pode improvisar, se o que se quer é tocar bem, ou seja, simplesmente fazer sentir,  dentro de uma dinâmica mais inclinada à sensação que ao sentido.

 

Talvez não seja possível dizer que há aqui uma ‘ética do sujeito’, visto que o sujeito não mais se assume ou se acredita. O que há, seguindo uma leitura deleuziana da literatura, são afetos, corpos de sensação que nos atravessam e que produzem sensações. Como diz Annita Malufe, “o texto como afirmação sensual, sensorial, sensível e, ao mesmo tempo, espaço em que tudo pode existir. O real do texto é ilimitado”. (MALUFE, A. C., op.cit., p. 49). Nesse rasante, o que me parece possível de ser dito acerca da alteridade na poesia de Ana C. é que se trata de uma alteridade que vê no contínuo alterar-se um errar-se, ou “alterrar-se”, um perder-se, fender-se e partir-se em direção ao outro que, este também, no poema, não passa de linguagem. Uma alteridade pela infinitude das alterações, que são as latências dos versos e das combinações das palavras, uma alteridade do próprio material poético, livre de sujeito e de sentido, puro transe de sensações, evasivas e fugidias.  Fazendo uso das palavras de Viviana Bosi, uma alteridade cujo

 

(...) esforço do eu-lírico [está] em superar o seu lugar de mônada, e sua submersão na corrente coletiva, ao empenhar-se em mergulhar neste lugar de profundo amálgama entre o sujeito, que se abandona e se transforma, e sua ‘outridade constitutiva’, que é a linguagem. A tensão coloca-a numa posição arriscada ao converter a intimidade em teatro postando-se nos bastidores a puxar fios de si própria como se fossem externos (BOSI, V. op.cit, p. 15).

 

Ana C. participou da geração mimeógrafo no que esta deu ao fragmento: o registro que explicita um comportamento sócio-histórico. É Ana mesmo quem diz que “mais que um procedimento literário, a fragmentação é nesse grupo um sentimento de mundo” (CESAR, A. C. Crítica e Tradução, p. 222).

 

Brincando maliciosamente com a tentação romântica que pulsa em alguns leitores, Ana C. dedilha arapucas para esses, que buscam no poema a intimidade daquele que o escreveu.  O jogo proposto é cheio de dribles, falsas pistas, e o texto instiga quando provoca o outro dizendo, no poema lido “quem caça mais o olho um do outro?”, sugerindo um voyerismo e uma competição de cunho erótico, que pode nos remeter aqueles jogos de salão, àquela perversidade das artimanhas, ou ainda, a sutil arte da conversação, dentro do clima clandestino dessas relações perigosas, lembrando agora Lacklos. Mas o poema se empina, quando diz “Sou eu que admito vitória”.  

 

Parece verdade que não podemos estabelecer qualquer tipo de limite entre os meandros dos sentidos construídos num ato de leitura, quando muitos níveis de diferenciação e identificação operam simultaneamente, dando-nos um sentido tanto de participação quanto de exclusão daquilo que o texto é e daquilo que dele carregamos como memória da experiência da leitura. Esse buraco talvez nos seja sempre a esfinge da poesia, ou de qualquer forma de arte. Ou ainda, de qualquer comunicação. E parece ser exatamente esse o preceito que podemos ler numa escrita da alteridade em Ana C.: a não simulação ou dissimulação do sujeito, ou ainda, a exposição de um sujeito que se sabe, agora, não mais provável e nem mais possível. Cito ainda Annita Costa Malufe:

 

(...) poesia, para Ana Cristina, é uma verdadeira construção do real: o texto é um universo autônomo, independente do mundo de carne e osso, distinto de seu autor, um objeto a ser manuseado e recriado pelo leitor. Logo, não há segredos íntimos escondidos por detrás dele, não há uma verdade inefável a ser descoberta. (...) [Ou como diria] Blanchot: a escrita poética deixa de ser a fala de uma pessoa para ser tão somente o lugar em que apenas a linguagem ‘se fala’. (MALUFE, A. op.cit., p. 35).

 

Para terminar, então, leio o poema que prometi, aquele chamado “Atrás dos olhos das meninas sérias” e com ele despeço, no fluxo incessante desse devir-outro, dessa alteridade plena de desejo, desse alterar-se em texto, que nos convida a outras muitas fendas, a novos rasantes:

 

Atrás dos olhos das meninas sérias

 

Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário nobre do

Adultério. Separatista protestante. Melindrosa basca com

fissura da verdade. Me entenda faz favor: minha franqueza era

meu fraco, o primeiro side-car anfíbio nos classificados de

aluguel. No flanco do motor vinha um anjo encouraçado,

Charlie’s Angel rumando a toda para o Lagos, Seven Year Itch,

mato sem cachorro. Pulo para fora (mas meu salto engancha  no

pedaço de pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem

rebolo sem gás de decolagem. Não olho para trás. Aviso e

profetizo com minha bola de cristais que vê novela de verdade e

meu manto azul dourado mais pesado do que o ar. Não olho

para trás e sai da frente que essa é uma rasante: garras afiadas,

e pernalta

 

 

Referências bibliográficas:

BARTHES, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso. RJ: Ed. Francisco Alves, 1981.

CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Ed. Ática, 1998.

MALUFE, Anita Costa. Territórios Dispersos: a poética de Ana Cristina César. São Paulo: Annablume /

FAPESP, 2006.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor?.  Ed. Vega, s/d..



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Roberta Ferraz nasceu em São Paulo, em 1980. Estudou Letras na PUC-SP e História na USP. Publicou em 2003 seu primeiro livro, de contos, Desfiladeiro, pela Editora Nativa. É mestre em Literatura Portuguesa, pela USP. Ganhou em 2008, na categoria Texto, o prêmio do Programa Nascente da USP, com seu livro lacrimatórios, enócoas, publicado em 2009 pela Oficina Raquel. Atualmente, escreve, junto com Érica Zíngano e Renata Huber o livro fio, fenda, falésia, com apoio do ProAc 2009, que terá lançamento em dezembro.

 

Leiam também poemas da autora.

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