ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

UMA ANÁLISE TROVADORESCA DA MULHER NA CANÇÃO “QUEM TE VIU, QUEM TE VÊ”, DE CHICO BUARQUE.

 

Roberta Moura Cavalcanti

 

O trabalho a seguir trata-se de um estudo sobre o trovadorismo e sobre a influência que exerce na poética buarquiana. Esta influência será retratada na canção “Quem te viu, quem te vê”, analisando-a e identificando as características trovadorescas contidas na mesma, além da análise da figura feminina.

 

Faremos também uma análise comparativa entre a mulher do trovadorismo, recheada de influências da Idade Média, período histórico da escola literária, e a mulher contemporânea, retratada nas canções do músico carioca Chico Buarque.

 

Chico Buarque é carioca e nasceu em 19 de Junho de 1944. Filho do sociólogo e historiador Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista e pintora Maria Amélia Cesário Alvim. Foi casado com a atriz Marieta Severo, com quem teve três filhas, Sílvia, Helena e Luísa.

 

Iniciou sua carreira na década de 60, destacando-se o ano de 66 quando ganhou o Festival de Música Popular Brasileira com a canção “A Banda”. Em 1965 lança seu primeiro compacto com “Pedro Pedreira” e “Um Sonho de Carnaval”. Fez várias parcerias ao longo de sua carreira entre eles Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Francis Hime, Edu Lobo, entre outros.

 

Além de cantor e compositor, é músico, dramaturgo e escritor. Dentre seus livros publicados existem “Estorvo”, “Benjamim”, “Budapeste”, lançado em 2004, ganhador do prêmio Jabuti. Seus últimos trabalhos são o CD “Carioca” (2006) e o livro “Leite Derramado” (2009). Para o teatro escreveu as peças “Roda Viva”, “Ópera do Malandro”, “Calabar: O elogio da traição”, “Gota D’água”. Também escreveu textos infantis, tanto teatrais, “Os Saltimbancos”, quanto livros, “Chapeuzinho Amarelo”.

Alvo de muitas críticas, na sua grande maioria críticas positivas, Chico é muito respeitado por toda a sua obra, seja musical ou literária, como podemos ver o que disse Tinhorão, crítico musical, sobre o artista no livro de Regina Zappa (1999): “Chico Buarque constitui inegavelmente o maior compositor saído da classe média após o advento da Bossa Nova”. Sobre seu processo de criação musical, Buarque explica, no livro de Zappa (1999), que antes de escrever a letra, ele faz a melodia:

 

Faço uma música, fica pronta e às vezes não aparece nenhuma idéia de letra. Quando comecei, normalmente vinha tudo junto. Nunca aconteceu de eu escrever uma letra para depois musicar...”. “A música me tira do sério, conduz a poesia. Escrevo música e depois as palavras vêm”. (ZAPPA, 1999. p.69).

 

 

O trovadorismo, também conhecido como Primeira Época Medieval, segundo NICOLA (1998), é a primeira escola literária portuguesa e surgiu entre os séculos XI e XII com a Canção da Ribeirinha de Paio Soares de Taveirós.

 

No mundo non me sei parelha,

mentre me for' como me vai,

ca já moiro por vós – e ai

mia senhor branca e vermelha,

queredes que vos retraia

quando vos eu vi em saia!

Mao dia me levantei,

que vos enton non vi fea!

E, mia senhor, des aquel di', ai!

Me foi a mi muin mal,

e vós, filha de don Paai

Moniz, e bem vos semelha

d'aver eu por vós semelha

d'aver eu por vós guarvaia,

pois eu, mia senhor, d'alfaia

nunca de vós ouve nem ei

valia d'ua correa.

(Paio Soares de Taveirós)

 

O movimento trovadoresco se situa historicamente na Idade Média e apresenta como característica desse período as Cruzadas, a luta contra os mouros na Península Ibérica, o feudalismo, modo de organização social e político baseado nas relações servo-contratuais, o Teocentrismo (tudo girando em torno de Deus) e por isso o homem trovadoresco tem sua vida norteada por valores religiosos e as relações sociais são baseadas no feudalismo, onde o distanciamento entre as classes sociais é bem presente e acaba refletindo na escola, especialmente na canção de amor, como veremos posteriormente.

De acordo com MOISÉS (2007) a escola literária tem origem provençal, local que no século XI era um grande centro de atividade lúdica, onde os senhores feudais ofereciam condições de luxo aos artistas. Nesta região o poeta recebia o nome de troubadour, cuja correspondência em português é trovador, que designa aquele que compõe a poesia e a explicita com um acompanhamento musical, criando assim a canção.

As cantigas trovadorescas se dividem em dois grandes tipos: as Líricas e as Satíricas. As lírico-amorosas dividem-se em Cantigas de Amor e de Amigo e as satíricas em Cantigas de Escárnio e de Maldizer.

A Cantiga de Amor foi levada a Portugal pelos colonos e pelos cavaleiros franceses que foram lutar contra os mouros. Neste tipo de cantiga o poeta sofre uma angústia passional diante à dama inacessível e escreve sobre a mesma, desejando tê-la e a retratando-a de uma forma bela e amorosa. É essa dama e o amor que o poeta sente por ela, o tema central da poesia. O trovador deste tipo de cantiga é geralmente um plebeu, ou no máximo, um fidalgo decaído, enquanto a dama é uma nobre, retratando a relação de superioridade social característica do feudalismo. E é justamente por essa diferença social entre ambos que a dama se torna inalcançável e o amor dele por ela platônico.

O ambiente característico das cantigas de amor é o palaciano, e o trovador declara seu amor para dama, chamando-a de senhor, o que caracteriza o amor cortês e a vassalagem, servidão amorosa.

 

“E que seria eu melhor

De ser seu vassalo

E ela minha senhor?”

 

O poeta sofre de amor e esse sofrimento, para ele, é pior que a morte. Pinheiro Torres explica esse tipo de relação:

Em sociedade tão fechada, de estrutura medieval, o amor – o grande e eterno tema – vai ser uma manifestação de vassalagem feudal, já que as formas de vida e de pensamento também são feudais. O que significa que o feudalismo engendra uma maneira de pensar feudal, como hoje o capitalismo engendra uma maneira de pensar capitalista. (PINHEIRO TORRES, 1987. p.7)

 

 

O outro tipo de cantiga lírico-amorosa, a de Amigo, tem origem na península Ibérica e são mais antigas que as de Amor, porém não eram escritas. Elas focalizam o outro tipo de relação amorosa, aqui é o amor da mulher pelo homem que é retratado.

Nesse tipo de cantiga, o autor, que é um homem, se coloca no texto como mulher, e passa a declarar seu sentimento pelo amado, que na verdade é uma amada, chamando-o de amigo. Isso ocorria porque, naquela época, as mulheres não podiam escrever nem declarar seus sentimentos, então os poetas trovadores passaram a escrever sobre isso, mas não simplesmente narrando esse sentimento, e sim vivendo-o e sentido-o como uma mulher. Isso ocorria porque ou o homem conhecia o drama da mulher (que já não é mais nobre, agora é uma pastora), ou porque a dama era analfabeta, mesmo quando era fidalga.

 

“Vaiamos, irmã, vaiamos dormir

Nas ribas do lago, u eu andar vi

A las aves meu amigo.

Vaiamos, irmã, vaiamos folgar

Nas ribas do lago, u eu vi andar

A lãs aves meu amigo.

Nas ribas do lago, u eu andar vi

Seu arco na mão as aves ferir

A lãs aves meu amigo”.

 

Outra característica típica desta cantiga são os confidentes. A dama confessa seu amor a outros personagens, como a mãe, as amigas, os elementos da natureza (os pássaros, a lua, o rio, as animais, o sol, etc.). Moisés afirma o seguinte sobre esse tipo de canção:

“...o fulcro do poema é agora representado pelo sofrimento amoroso da mulher, via de regra pertencestes às camadas populares (pastoras, camponesas, etc.). O trovador, amado incondicionalmente pela moça humilde e ingênua do campo e da zona ribeirinha, projeta-se-lhe no íntimo e desvenda-lhe o desgosto de amar...”(MOISÉS, 2007. p.22).

 

 

As cantigas de satíricas tinham como temas os costumes, a decadência de alguns nobres, o adultério das damas, etc., de acordo com NICOLA (1998). As Cantigas de Escárnio eram sátiras indiretas, recheadas de ambigüidade e ironia, quanto às de Maldizer tratavam-se de sátiras diretas, com agressividade, onde os nomes das pessoas ironizadas eram citados.

Quanto ao papel da mulher na Idade Média, período histórico do trovadorismo e regido pela Igreja, podemos observar que ela era retratada por esta como um ser que fazia referência à carne, numa relação direta com o pecado, já que todas “descendiam de Eva”, a culpada pelo pecado no mundo, portanto disseminadoras do mal na Terra.

No século XI o casamento foi instituído pela Igreja e a mulher passou a assumir um papel de peça fundamental na família, como boa mãe e boa esposa, sendo “dominada” pelo marido, passando a ser “domina” (dona), ou seja, só depois de casada a mulher passava a ser dona de algo (sua casa), como explica Pinheiro Torres:

 

“O amor trovadoresco, o “amor cortês”, exigia que a mulher que se cantava fosse casada, fundamentalmente porque a donzela não tinha personalidade jurídica, uma vez que não possuía nem terras, nem criados, nem domínios, não era domina (dona). Em suma: não dispunha de “senhorios”. Ora o poeta não vai prestar “serviço” a uma mulher que não seja “senhor”, e nós encontramos extensamente o verbo “servir” como sinônimo de “namorar”, “fazer a corte”, etc.”. (PINHEIRO TORRES, 1987).

 

 

 

Diante dessa visão de pecadora e portadora do demônio, instaurada pela Igreja, a mulher não tinha direito a falar, relatar seus desejos, angústias, sonhos e, principalmente, seus sentimentos, permanecendo submissa à vontade do homem, primeiramente o pai e posteriormente o marido. Sobre esta postura da mulher podemos ver as palavras de Barbosa da Silva em seu artigo sobre o assunto:

 

“Essa concepção de mulher, que foi construída através dos séculos, é anterior mesmo ao cristianismo. Foi assegurada por ele e se deu porque permitiu a manutenção dos homens no poder, fornecia uma segurança baseada na distância ao clero celibatário, legitimou a submissão da ordem estabelecida pelos homens. Esta construção começou apenas a ruir, mas os alicerces estão bem fincados na nossa sociedade”. (BARBOSA SILVA).

 

 

E é neste contexto que a mulher é retratada na escola portuguesa. Nas Canções de Amor, ela é posta como um ser inatingível e não seus sentimentos não são expressos na canção, já nas Canções de Amigo a fala é de uma personagem feminina, mas escrita por um homem, continuando, a mulher, sem expressar suas emoções e seus anseios perante a sociedade medieval.

 

Analisando a mulher na contemporaneidade, percebemos que na década de 60 elas eram descritas nas músicas de forma machista e preconceituosa. Um exemplo é o caso da Amélia, de Mario Lago e Ataulfo Alves, que era retratada como uma “mulher de verdade” porque não tinha a menor vaidade e a Emília, de Haroldo e Wilson Batista, uma moça prendada que sabia lavar e cozinha e ainda fazia um café como ninguém. Mas com Chico ocorreu o contrário, ele que veio dar voz a essas mulheres, foi a partir dele que passamos a ouvir os sentimentos femininos, seus desejos, suas angústias e o seu universo retratado de forma mais bela e menos preconceituosa. Esse início de feminismo na música deu-se em 1966, quando a pedido de uma mulher, Nara Leão, o letrista compôs “Com açúcar, com afeto”.

Com açúcar, com afeto
fiz seu doce predileto
pra você parar em casa
qual o quê
com seu terno mais bonito
você sai e não acredito
quando diz que não se atrasa

 

E é neste momento que Chico Buarque consegue ser trovador. Quando escreve sobre o “eu” feminino, seja assumindo uma postura feminina, seja declarando seu amor para a dama inacessível, ele está sendo altamente trovadoresco, mas ao mesmo tempo contemporâneo.

Na música que iremos analisar a seguir podemos perceber como o cantor consegue fazer essa relação entre o trovadorismo e a contemporaneidade, declarando todo o seu amor não correspondido pela dama desejada:

QUEM TE VIU, QUEM TE VÊ

Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala
Você era a favorita onde eu era mestre-sala
Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua
Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua
Hoje o samba saiu lá lalaiá, procurando você
Quem te viu, quem te vê
Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais esquece não pode reconhecer
Quando o samba começava você era a mais brilhante
E se a gente se cansava você só seguia a diante
Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado
Você só dá chá dançante onde eu não sou convidado
O meu samba assim marcava na cadência os seus passos
O meu sonho se embalava no carinho dos seus braços
Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão
Pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão
Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe
De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse
Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia
Quem brincava de princesa acostumou na fantasia
Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria
Quero que você me assista na mais fina companhia
Se você sentir saudade por favor não de na vista

 Bate  palma com vontade, faz de conta que é turista.

 

 

De acordo com MOISÉS (2008), para analisar um texto poético temos que percorrer algumas etapas. Primeiro, examinar a camada denotativa; segundo, examinar a camada conotativa; terceiro, assinalar as palavras-chave e, por último, interpretar essas palavras-chave e a atmosfera poética que elas constituem.

Na referida canção temos como palavras-chave “samba”, “cabrocha”, “mestre-sala”, “gala” e “rua”. O samba representa o amor do poeta; cabrocha exemplifica o estado de superioridade dela em relação a ele; “mestre-sala” indica a posição dele nesta sociedade “sambista”, e esta posição é inferior a dela; “gala” e “rua” representam a relação de oposição da vida dos dois, ou seja, ela vive no luxo (gala), enquanto ele permanece na pobreza (rua). E é neste contexto poético que toda a canção se desenrola.

Esta canção é um exemplo da Cantiga de Amor trovadoresca. O trovador declara seu amor a uma mulher inacessível tendo o seu desenrolar num palácio, ambiente de luxo. Buarque faz uma analogia com essa música. O letrista tem como ambiente os barracões das escolas de samba do Rio de Janeiro, lugar de luxo e fantasia para os moradores dos morros, uma vez que durante o carnaval essas pessoas têm as atenções da mídia e do público em geral voltadas para si, coisa que não acontece durante o resto do ano. Essa analogia é feita, também, na figura da mulher em destaque. Nas cantigas de amor trovadorescas, a mulher é uma nobre, já na música, essa nobreza é colocada através da palavra cabrocha, que significa “mulata jovem”, e nos morros do Rio, durante o carnaval, não existe figura mais nobre que a mulata.

Depois de fazer essa analogia do ambiente, o músico inicia a letra tecendo elogios sobre a mulher amada /“você era a mais bonita das cabrochas dessa ala”/, “você era a favorita onde eu era mestre-sala”/, esses elogios explicitam a admiração do poeta para com a amada.

No trecho /“Hoje a gente nem se fala mas a festa continua” / é relatada a separação que houve entre o casal, e em /“Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua”/, trata-se mais uma vez, da oposição – nobreza x pobreza, presente na relação de ambos, já que hoje ela vive no luxo (gala) e ele na pobreza (rua).

No refrão / “Hoje o samba saiu lá lalaiá, procurando você/;
Quem te viu, Quem te vê/; Quem não a conhece não pode mais ver pra crer/;
Quem jamais esquece não pode reconhecer
”/, o desejo de ainda tê-la é apresentado quando ele diz que o samba saiu à procura dela, esse samba nada mais é além o sentimento do poeta por sua amada que é feito em forma de música. E retrata também que ela agia de uma forma que não age mais, isso é demonstrado no verso do refrão que também é o título da música: “Quem te viu, quem te vê”.

Em seguida vão-se apresentando mais elogios para a dama / “Quando o samba começava você era a mais brilhante/”, e mais demonstrações da separação e do afastamento dela para com ele / “Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado/; Você só dá chá dançante onde eu não sou convidado” /. O fato deles “hoje andarem distante” implica que antes tiveram uma relação que não existe mais e o fato dela só “dançar onde ele não é convidado” deixa claro que essa relação foi extinta por ela e que, se dependesse do desejo dele, ambos ainda estariam juntos. No trecho / “O meu samba assim marcava na cadência os seus passos” / explica uma dependência dele em relação a ela, uma vez que cadência significa regularidade de movimentos ou de sons, e essa regularidade de movimentos do samba (amor) dele era marcado (guiado) através dos passos dela.

A relação que existia entre os dois, o forte sentimento que ele ainda nutre por ela e o desejo dele de voltar a ter essa relação continua sendo demonstrado no decorrer da canção, como na seguinte parte:

“O meu sonho se embalava no carinho dos seus braços

 Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão.

 Pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão”

 

O trovador deixa claro sua insistência em lembrá-la que ele ainda a ama e que ainda a quer de volta. Isto é relatado quando o poeta diz que de teimoso passa em frente ao portão da amada, lembrando-a que caso ela queira voltar, tanto a casa dele (barraco), quanto à escola de samba (cordão) que os dois freqüentavam juntos continuam a esperá-la.

Chegando ao fim da canção o poeta vai explicitando o motivo da separação e o porquê do seu amor não ser correspondido mais. Ele explica o seu empenho em dar à amada tudo de melhor que podia: / “Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe/ De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse” /, isso é demonstrado através da locução adjetiva “alta classe” que revela o desejo dele em fazê-la a melhor, e do adjetivo “dourado”, que se trata de outra analogia com o ouro, metal mais valioso que existe. E quando o poeta diz / “Quem brincava de princesa acostumou na fantasia” /, mostra um desejo da dama em ser realmente uma princesa e não viver numa fantasia, um desejo de usar ouro e não dourado.

No final da música o trovador explica, para não deixar dúvidas, o porquê da não correspondência do seu sentimento: / “Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria/ Quero que você me assista na mais fina companhia/”, mais uma vez a relação de luxo e pobreza é feita com as palavras galeria, lugar de destaque nos desfiles das escolas de samba, e pista, lugar menos privilegiado. Quando o poeta diz para ela assisti-lo na mais fina companhia, essa companhia é um homem de uma classe superior à dele, demonstrado através do adjetivo “fina”. E nos últimos versos do poema / “Se você sentir saudade por favor não de na vista/; Bate palma com vontade, faz de conta que é turista”/, deixa claro, mais uma vez a suposta superioridade dela em relação a ela, que caso ela sinta saudade, ela o aplauda como uma turista, fazendo referência direta ao título “Quem te viu, quem te vê”, uma vez que quem a viu antes, a via na pista, sambando e fazendo parte da escola, e não na alegoria como uma turista.

Como vimos anteriormente, a mulher na Idade Média não tinha direito a expressar seus sentimentos, vivendo sempre submissa à vontade e desejos dos homens de sua vida, primeiro o pai, depois o marido. E essa relação de submissão é retratada no trovadorismo, especialmente nas canções líricas, onde a mulher permanece sem revelar seus sentimentos e, quando é mencionada nas canções, ou é vista como um ser inatingível (Canção de Amor), ou até tem seu amor relatado na canção, mas esse amor escrito por um homem e falado/cantado também por um homem (Canção de Amigo).

Hoje a mulher contemporânea tem mais liberdade, podendo expressar seus sentimentos. Essa liberdade teve início na década de 60 com a chamada “revolução sexual” e o surgimento da pílula anticoncepcional. Mas mesmo com toda essa “liberdade”, a mulher do século XXI tem muito de medieval ainda, um exemplo claro é o fato de chamarmos uma mulher casada de “dona”. Essa expressão é originada da Idade Média, onde as mulheres só passavam a ser dona de algo quando casavam, porque depois de casadas elas eram “donas” da sua casa e da sua família, uma vez que os papéis delas eram ser boa mãe, boa esposa e boa dona de casa.

Na canção trabalhada podemos ver como o compositor carioca faz a relação entre a mulher trovadoresca e a contemporânea. Como se trata de uma canção de amor, onde o trovador declara seu amor à dama inacessível e essa dama comunga do mesmo sentimento, não podendo retribuir porque é de uma classe social superior, Buarque traz a mesma temática só que a dama de sua canção se torna inacessível não pela questão social, mas sim porque ela não quer mais o amor do sambista, retratando bem a liberdade da mulher contemporânea que tem o poder de escolher o homem que quer ao seu lado. A cabrocha de “Quem te viu, quem te vê” é trovadoresca quanto posta numa posição inalcançável pelo mestre-sala e moderna quando rejeita o amor do mesmo, decidindo não permanecer mais ao lado dele e, quem sabe, indo atrás de outro amor.

Após o estudo sobre a influência trovadoresca na mulher buarquiana da canção “Quem te viu, quem te vê”, podemos perceber o quão trovadoresco Chico Buarque é. Ele consegue trazer o medievalismo para a atualidade, e faz isso de uma forma tão contemporânea, que para os leigos no assunto, isso passa totalmente despercebido.

É através dessa análise da obra Buarquiana que podemos considerar o músico um trovador, que nada mais é que um poeta que escreve o amor e conjuga essa poesia com a música, fazendo surgir assim, as cantigas. E podemos comprovar essas características medievais na obra de Chico, confirmando a influência trovadoresca sofrida pelo músico.

E essa influência, sofrida pelo músico, faz dele o maior poeta trovador da contemporaneidade. Chico fez algo nunca feito antes na chamada MPB, Música Popular Brasileira, ele conseguiu com que as mulheres se vissem na música. A partir do momento que ele compõe uma música onde a personagem feminina tem voz e expressa seu sentimento perante o sexo oposto e a sociedade, ele permite que as tantas Bárbaras, Terezinhas, Carolinas e tantas outras se sintam vistas e importantes, capazes de expressarem seus desejos, angústias, revoltas, enfim, que possam falar abertamente sobre seus sentimentos.

 

BIBLIOGRAFIA

 

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_______________. A Literatura Portuguesa. 34ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2007.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia e Utopia – Sobre a função social da poesia e do poeta. São Paulo: Escrituras Editoras, 2007.

NICOLA, José de. Língua, Literatura e Redação. São Paulo: Scipione, 1998.

PINHEIRO TORRES, Alexandre. Antologia da Poesia Portuguesa. Porto: Lello e irmãos, 1987.

SILVA, Patrícia Barbosa da. http://www.brasilescola.com/historia/a-situacao-da-mulher-na-idade-media.htm

ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 1999.

 

 

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Roberta Cavalcanti é pós-Graduanda em Literatura Brasileira pela Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE). E-mail: r_cavalcanti21@hotmail.com

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