CALEIDOSCÓPIOS DOS SENTIDOS:
UMA LEITURA DE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS
Rodrigo da Costa Araújo
“As palavras são portas e janelas. Se debruçarmos e reparamos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancarmos as portas, o enredo do universo nos visita. Ler é somar-se ao mundo, é iluminar-se com claridade do já decifrado. Escrever é dividir-se. Cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia outra estação. E os olhos, tomando das rédeas, abrem caminhos, entre linhas, para viagens do pensamento. O livro é passaporte, é bilhete de partida”.
[Bartolomeu Campos de Queirós, 1999, p.23]
“A leitura seria o gesto do corpo (é com o corpo, certamente, que se lê) que, com um mesmo movimento, coloca e perverte a sua ordem: um suplemento interior de perversão”.
[Roland Barthes, 2003, p. 33]
Por que quando pensamos em sorvete ficamos com água na boca? Por que quando escutamos uma música, ficamos com o corpo arrepiado? Por que quando olhamos o mundo sentimos, em muitos momentos, um calafrio no corpo? Por quê? Essas podem ser, e são algumas formas indicadas e lúdicas, das muitas e várias perguntas que nossos sentidos nos proporcionam. E que, de certa forma, podem ser as perguntas iniciais antes mesmo de pensar, filosoficamente, em ler o livro “Os Cinco Sentidos” (1999), de Bartolomeu Campos de Queirós.
Com o verbo “suspeitar” em - “por meio dos sentidos suspeitamos o mundo”- o poeta instiga a entender que em cada sentido “moram outros sentidos”. Isso significa dizer que percebemos o mundo porque nossos sentidos não são meros impulsos nervosos, eles acontecem na, com e através da linguagem e se manifestam de diferentes formas. Tudo no livro reforça que os sentidos não apenas percebem ou enviam sinais aleatórios, mas produzem significações no contexto linguístico e, nesse universo, criam, modificam, revelam o mundo semiótico que somos.
As imagens do livro contribuem para uma certa “sinestesia da percepção”, porque as sensações despertam, em inúmeros cruzamentos de outros sentidos, um mundo semiológico. O corpo, portanto, interage através do intelecto, com diversas linguagens e códigos que usa, querendo ou não, percebendo ou não, sejam através dos olhos, dos ouvidos, do nariz, da boca, da pele, da audição e de muito outros mecanismos.
O “corpo” como encontro/teia de muitos sentidos, surge, no livro como personagem alegórico que se compõe, através de fragmentos metonímicos e metafóricos, das ações dos vários sentidos. Uma espécie de corpo-sentinte, corpo-texto, tempo, corpo-linguagens. Com essas metáforas, esse corpo, que assim lê o mundo em diversos códigos, desenvolverá sua expressão criadora ou sua capacidade de criar, inventar, relacionar, comparar, escolher, optar, desenvolver. Seu percurso será semiológico - o do corpo-sujeito-sentinte.
Assim, nesse jogo, a proposta parece focar o corpo com quem brinca com um caleidoscópio: a cada piscada, ou a cada movimento da mão, pode-se sempre obter uma nova e surpreendente imagem, um novo texto. O corpo do texto, o texto-do-corpo. Os sentidos, neste contexto semiótico em movimento, principalmente quando se fala de corpo vivo,- porque tudo no corpo é semelhante a um jogo de espelhos -, refletem novos ângulos e novas, quase infinitas, combinações, criando um jogo de formas que se organizam e se desmancham em novas formas. Mas incessantemente,- eles, os sentidos-, se embaralham para surpreender o olhar, ou qualquer outra sensação, de quem ousa capturar as sensações sempre em suspenso.
Essa dança do corpo e dos significantes, no poema de Bartolomeu Campos de Queirós se misturam, remetem-se uns aos outros, formando uma rede semiológica entre os sentidos. A cor preta, nessa primeira apresentação, confere ao corpo, ou quem irá ler o texto-corpo, a exploração de todos os sentidos enquanto percepção no mundo, no espaço, nos processos de produção de linguagens e de transmissão de mensagens. O preto, na introdução do poema e nesse contexto sinestésico, portanto, recupera e instaura o valor semântico do “estranhamento”, da aventura exigente dos sentidos e das sensações, e, também, uma forma de ler o texto. Uma leitura sensitiva, portanto, uma leitura com todos os sentidos, uma leitura-escritura do corpo, como Barthes preconizou na epígrafe.
Entender os sentidos, nessas metáforas aparentemente simples, é percorrer por situações (ou poros) infinitamente densas, intricadas, complexas, cheia de cores, sons, sugestões, vibrações (pulsações) de todo o tipo, aromas e formas infinitamente multiplicadas - cada recôndito esconde um segredo. Mas entrar nesse mundo, sugere nessa primeira aproximação, “ficar no escuro”, ou aceitar ser tomado por inquietações, aproximar-se das regiões sombrias, de horrores, do inaceitável, de penumbras que a vista não alcançará; ouvir sons estranhos que o ouvido não distinguirá completamente. Trata-se de uma leitura-desafio.
UM OLHAR INQUIETANTE
O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
[Manoel de Barros. Livro sobre nada. 1997, p.75]
Do mundo das sensações, explorado pelo poema, o primeiro dos sentidos é a visão (p.4), que através de uma linguagem lúdica diz: “Olhar é fantasiar/ sobre aquilo que está escondido/ atrás das coisas”. O olhar surge, na maioria das vezes, imbricado com outros sentidos, e por isso mesmo, pode, segundo Toussaint (p.48) ser chamado, dentro das classificações semiológicas de sinais majoritários, ou seja, sinais audiovisuais e icônicos. Talvez seja por isso que o poema reforça: “Os olhos têm raízes pelo corpo inteiro” (p.5).
“Têm olhares que nos acariciam. / Têm olhares que nos machucam”, afirma categoricamente outro fragmento. De qualquer forma, ver, fitar, observar são sinônimos para um sentido complexo, que remete a valores codificados culturalmente e a códigos particulares. É uma forma de comunicação imbricada com outros códigos, outras linguagens para construir significações.
Olhar, também, está associado aos códigos audiovisuais ou icônicos. Quanto ao primeiro, segundo Toussaint (p.49) “só existe através das formas tecnológicas de animação da imagem e de restituição do som por um processo a que se chama registro magnético” Quanto aos sinais icônicos, segundo o estudioso da semiologia, “o significante icônico escapa-nos sempre” (p.52). “Fala-se das imagens (que existem, que nós vemos, que analisamos), mas não da imagem, o que explicaria a profusão das semióticas da iconicidade” (p.53).A imagem, portanto, pode ser pictural, cinematográfica, televisual, fotográfica, narrativa etc., e, sempre interpretada através de uma rede complexa sobre o sentido e com suas sintaxes específicas.
Em síntese, a gramática especulativa do olhar desempenha um papel substancial na percepção, mas os resultados de seu processo não são nunca determinados apenas pelo estímulo físico. A visualidade, seguida da audição, é o sentido que orienta o ser humano no espaço, e é significativamente responsável por seu poder de defesa e sobrevivência no ambiente em que vive, e por isso mesmo, assume uma dominância em relação aos outros sentidos, segundo Santaella (1998).
“Seriam o olho e o ouvido premiados pela invenção de exterior que lhes aumentam o potencial?” Esta é a pergunta chave que a estudiosa lança em seu livro “A Percepção: uma teoria semiótica” (1998). Este predomínio do olhar e do ouvido em relação aos outros sentidos permite Lucia Santaella dizer que “só o olhar e o ouvido são órgãos do sentido diretamente ligados ao cérebro, ou melhor, são buracos que se conectam diretamente com o cérebro, em oposição aos outros sentidos, que são buracos ligados às vísceras” (p.12).
A visão e a audição, segunda a leitura de Santaella, constroem aparelhos biológicos altamente especializados. Eles são verdadeiros órgãos codificadores e decodificadores das informações emitidas e percebidas, de modo que parte da tarefa do cérebro é completada por eles dois.
PARA OUVIR OS RUMORES DO MUNDO
“Le texte n’est que la liste ouverte des feux du langage (ces feux vivants, ces lumières, ces intermittentes, ces traits baladeurs disposés dans le texte comme des semences)”.
[Roland Barthes. Le plaisir do texte. pp. 29-30]
Escutar, segundo Bartolomeu Campos de Queirós, “é também um jeito de ver” (p.7). “Com os ouvidos nós escutamos / o silêncio do mundo”. “E dentro do silêncio moram/ todos os sons: canto, choro, / riso, lamento”.
A comunicação auditiva “dá informação na vida de todos os dias, são os ruídos que nos rodeiam e que podemos gravar, e, portanto, culturalizar” (p.47). Dentro desses ruídos, a música será evocadora ou não passará de um puro significante visual. “Quando nós escutamos, / imaginamos distâncias, / construímos histórias, / desvendamos novas paisagens” (QUEIRÓS, p.7).
Metaforizando sobre os sentidos, o poeta nos apresenta as várias dimensões desses códigos. Se através deles aprendemos o presente, é também, da mesma forma, que a memória do passado o atualiza e, ainda, é por meio dos sentidos que divisamos o futuro. Os sentidos, pois, apoderam-se do tempo.
DO GOSTO E DA MEMÓRIA
O paladar explorado no mundo poético do livro, mistura-se com outros sentidos para compor uma espécie de poesia do corpo, e por isso mesmo, “o sabor escuta o tempo,/ Descobrimos que cada gosto guarda uma história” (QUEIRÓS, 1999, p.10). Gosto e memória intercalam-se como sensações importantes para a comunicação humana. Com efeito, enquanto comemos, racionalizamos e culturalizamos nossas impressões naturais, aperfeiçoamos e refinamos os nossos métodos de transformação de alimentos, diz Bernard Toussaint (p.42) ao falar dos signos gustativos.
Para Bartolomeu Campos de Queirós “o gosto do doce nos traz o barulho/ do fogo queimando os gravetos./ Traz a música das águas escorrendo pelo ralo da pia”. (p.11). Portanto, imbricam-se com os outros sentidos para construir uma semântica da lembrança. O gosto semiológico da culinária, próximo às lembranças da infância opera a leitura do discurso da memória: “o doce de leite nos revela/ o retrato da cozinha da infância” (p.11).
Além desse mundo semiológico da gastronomia, a poesia remete às imagens cinematográficas, forçando o leitor a imaginar a cena, o recorte, o olhar que acompanha a descrição do cenário preso à memória. E por isso mesmo, feito os outros sentidos, “ a boca tem raízes, pelo corpo inteiro”.
Na escrita literária de Bartolomeu Campos de Queirós, o discurso não aponta para referentes-coisas, referentes-fatos, mas para imagens que se materializam linguisticamente em metáforas, isto é, convertem-se em discursos. Entre a “coisa” e a “representação” está a imagem; podemos dizer ainda, que está a sensação, que está o homem e seu corpo. Ao elaborar metáforas - suporte de imagens, sem as quais não apreendemos o mundo - o escritor forma propósitos emotivos, estilísticos, cria em seu discurso o espaço para o mundo do sensível.
Ao estudar o discurso e a memória na obra de Bartolomeu, a pesquisadora Maria Lilia Simões de Oliveira afirma que a literatura circunscreve-se no universo da infância sem, contudo, transformá-lo em “refugo” ou mote para uma literatura menor, moralizante, “servil” (2003, p.117).
DO TATO COMO LEITURA
Na relação que nos une a qualquer objeto existe uma relação tátil. Esta sensação pode assumir diversas significações dependendo da intenção na comunicação do falante. Dentre elas está o complexo código que é a linguagem amorosa, onde os sistemas semiológicos (olfação, tato, gestual) se misturam profundamente para darem origem a um grande código de comunicação sensorial, que ainda é dominado pelos códigos linguísticos e visuais. “Se pegarmos na mão da pessoa/ amada, nosso coração dispara/ e nosso corpo entra em festa” (QUEIRÓS, 1999, p.13).
Segundo Toussaint, “como acontece com as codificações da olfação, as significações táteis (as impressões táteis) são censuradas pela ideologia ocidental” (p.41). Por isso, junto a esta sensação surgem expressões do tipo: “não mexa”; “ não olhe”. Mas de qualquer forma, a sensação desejosa do tato tenta perceber o mundo, muitas vezes, transgredindo alguns códigos. O tato sempre procura a suavidade, o calor, a beleza, ou contrariamente, a dureza, a aspereza, a textura do mundo. As significações táteis permitem classificar várias zonas significantes do universo, das coisas percebidas por este sentido, isto é, uma forma de ler.
“A pele é raiz cobrindo o corpo inteiro”, diz o poeta-filósofo na tentativa de explicar o tato nas metáforas insólitas que fogem a um padrão, a um significante que o resume. Por que, como ele mesmo diz: “a metáfora cria arestas, faces, dúvidas” (QUEIRÓS, 2002, p. 160).
O CORPO-TEXTO, ENFIM
A frase final do livro, escrita em duas páginas e em letras grandes e pretas “Em cada sentido moram outros sentidos” (pp.14-15) encerra o poema e resume, por excelência, o “deslizamento” (ou deslocamento) sobre as insuficiências e as incertezas dos sentidos.
O universo das sensações ocupa lugar privilegiado na obra de Bartolomeu. Essa característica aproxima sua prosa da poesia, transforma-se, em seus textos, em imagens poéticas muito mais sugeridas que explicadas pela razão lógica. Para Stella Pellegrini (2005, p.42) em outros livros dele, fica explícito o modo pelo qual foram produzidas suas significações. A atitude de expectativa, o olhar profundo, a capacidade de percepção acentuada, em todos os níveis, indicam essa postura de ler o mundo de forma abrangente.
Então, quanto mais se busca nas metáforas ou no poema a singularidade de algum sentido ou sensação, tanto mais se depara a realidade aparentemente simples e multifacetada que a constitui. É como ver a infinitude dos sentidos caleidoscopicamente. Como num caleidoscópio, - sugerido no título desse ensaio-, cada mudança de ângulo, cada perspectiva, cada nuança, cada forma transforma nosso ponto de vista, filtra nossa visão de mundo e multiplica nossa cosmovisão. Cabe ao leitor reconhecer nos sentidos o sinal da força semiológica e a direção que esse sentido, imbricado a outros, impõe ativamente no campo das interpretações.
Ler os sentidos do corpo, nesse caso, produz um efeito lúdico: se lê e se relê não para encontrar um significado, o significado último, mas para fazer multiplicar os significantes. Por isso esse desaparecimento é que faz cintilar a linguagem como tal e é o que permite apreciar o plural de um texto, o prazer do texto, como quis Barthes. Nesse lógica, semelhante ao pensador francês, a literatura nunca é sentido, a literatura é processo de produção de sentidos, isto é, significação.
Eis por que a linguagem de Bartolomeu Campos de Queirós, como a barthesiana, não é uma linguagem transparente, uma linguagem-meio, mas uma linguagem opaca de escritor, sutil, elegante, envolvente. Seu estilo é metafórico, envolve o objeto pouco a pouco, assim como envolve o leitor. Seu discurso adere-se perfeitamente à plasticidade das imagens. No seu reino poético, instauram-se o tempo sem tempo e a ausência de espaço; nele, a fantasia domina soberana, concretizando-se imageticamente. Redimensionando a palavra, o poeta instala-se no reino da imaginação criadora; ao liberá-la, o escritor torna-se livre e reencontra-se, recria o mundo ao sentir a impossibilidade de permanecer no já feito e consumado.
Os sentidos, nesse contexto, não se delimitam, misturam-se, como o mundo do real e do imaginário, o corpóreo e a lembrança, o sentir e o pensar. Vê-se um pelo outro, sente-se um pelo outro, respira-se e experimenta-se o corpo inteiro configurado na poesia. Entretidas com sua própria presença, as palavras matizam, deslizam, podem significar o presente e o ausente, as cores, os cheiros, a visualidade entre temas do viver e do sentir.
O espetáculo do corpo, o gesto mais simples e sutil, o corpo-comunicante, assumem certos circuitos que o livro tenta traduzir. A retórica do corpo, vamos dizer assim, “do sentir” é poeticamente representada no poema como significante depositário de cultura de que participa o ser humano, e, portanto, depositário de informação, sendo assim, no sentido de Lotman, um texto de muitos subtextos.
O corpo e os sentidos, entendidos como textos, não são um amontoado amorfo de signos, pelo contrário, assumem significações numa rede cultural, numa estrutura textual semiótica, como concebeu Lotman.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro. Record. 1997.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo. Martins Fontes, 2003.
______. Le plaisir du texte. Paris. Seuil. 1973.
LIMA, Ebe Maria de. Literatura sem fronteiras. Uma leitura da obra de Bartolomeu Campos de Queirós. Belo Horizonte, Miguilim. 1998.
LOTMAN, Yuri. A Estrutura do Texto Artístico. Estampa: Lisboa. 1978.
OLIVEIRA, Maria Lilia Simões de. A Língua e o Discurso da Memória: a semântica da infância revisitada em Bartolomeu Campos de Queirós. Belo Horizonte: Miguilim, 2003.
PELLEGRINI, Stella de Moraes. Caminhos e encruzilhadas: percursos poético e político de Bartolomeu Campos de Queirós, da formação do leitor à formação de leitores. Belo Horizonte. RHJ, 2005.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Os Cinco Sentidos. Belo Horizonte: Miguilim, 1999.
_______. O livro é passaporte, é bilhete de partida. In: PRADO, Jason; CONDINI, Paulo (orgs.). A formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro: Argus, 1999, p. 23-24.
_______. Literatura: leitura de mundo, criação de palavra. In: YUNES, Eliana (org.) Pensar a leitura: complexidade. Rio de Janeiro. Ed. PUC-Rio. São Paulo: Loyola, 2002.
SANTAELLA, Lucia. A percepção: uma teoria semiótica. São Paulo: Experimento,
1998.
TOUSSAINT, Bernard. Introdução à Semiologia. Lisboa, Europa-América, s/d.
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Rodrigo da Costa Araújo é professor de Literatura Infantil na FAFIMA – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé, Mestre em Ciência da Arte pela UFF e Doutorando, também, pela UFF. E-mail: rodricoara@uol.com.br.
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