O FERNANDO PESSOA POLÍTICO E SOCIAL
DE O BANQUEIRO ANARQUISTA
Rodrigo
Freire
"A
teoria anarquista, a verdadeira teoria anarquista, é só uma.
Tenho a que sempre tive, desde que me tornei anarquista."
Fernando
Pessoa
1 - Uma nova linguagem na literatura pessoana.
Dentro de uma
vasta floresta de heterônimos, conflitando-se com seu próprio
hortônimo, Fernando Pessoa traz, numa linguagem clara e
direta, as idéias acerca de povo, estado, política, revoluções
culturais e, numa proporção menor, misticismo e
religiosidade portuguesa. Poderá estranhar o leitor do
Fernando Pessoa lírico em Alberto Caeiro, o Guardador de
rebanhos, a forma em prosa e o trabalho de disseminação de
idéias contidos quase que explicitamente nas linhas do texto.
O conto em questão
mostra uma face pessoana de alto grau filosófico, no sentido
grego da palavra, em que a política, assim como a palavra e a
retórica assumem um sentido de arte. A necessidade de uma
democracia em consonância com o sinal dos tempos é mostrada
pelo autor em todos seus aspectos: a iminente necessidade de
um novo regime, a degradação da cultura política do povo
português retardando a ascensão plena de Portugal como a utópica
Nação do Futuro ou Supra -Portugal, como o próprio
Supra-Camões a concebia. Estes traços sobre a necessidade de
uma mudança radical já haviam sido postos em pauta na clássica
obra Mensagem. No conto, temos as mesmas idéias explanadas de
uma forma quase crua, sem o uso dos artifícios poéticos de
praxe.
O Banqueiro
Anarquista é uma síntese destes pontos organizados em forma
de um livre diálogo. O conto possui um forte teor de
manifesto político destinado a um público leitor específico,
na verdade é perfeitamente especulável se Pessoa, antes de
querer escrever um conto, não quis escrever um manifesto em
uma linguagem mais informal.
O Banqueiro
Anarquista toma lugar em um cenário bem conhecido dos
intelectuais do início do século XX, um restaurante ou, como
celebrizou-se, o Café, verdadeiros centros de encontro dos
jovens intelectuais para a discussão dos rumos culturais
populares e sociais, celebrizaram-se os cafés londrinos e
parisienses pela sua alta-roda intelectual freqüentadora, e,
por conseguinte, as idéias que mudaram o pensamento humano.
Dentro do
ambiente propício ao debate estão os dois personagens de
todo o texto. A narrativa oscila entre o personagem 1, e o
personagem 2, no caso deste o Banqueiro. Os focos da narrativa
estão concentrados nas visões de cada personagem a ter a
palavra, sendo portanto classificada como Focalização
Parcial Interna, porém com a oscilação flutuante entre
ambos.
Ambos
personagens não possuem nome, o que dá ao texto um caráter
universalizado. A não-nominação dos personagens, suas não
identificações e também a ausência de descrições traz ao
leitor uma identificação completa com o plano das idéias,
os personagens funcionam como meros canais para existir o
conteúdo desenvolvido.
Outro curioso
artifício está na construção do título da obra. Aquilo
que aparentemente pode mostrar um enorme oxímoro se desfaz
logo nas primeiras considerações do personagem 2 sobre a
anarquia. O personagem 2 traz íntegro em si a perfeita
harmonia da monarquia com o bem -sucedido homem de negócios
inserido no plano capitalista global. A própria escolha da
atividade profissional do personagem 2 já é, por si, um ícone
do mundo capitalista, em que este ostenta em breves passagens
o típico homem aculturado do mundo moderno saboreando tranqüilamente
um charuto após a refeição e tendo, devida a sua posição
subordinados proletários.
O debate
torna-se vivo justamente na explicação da Anarquia ser um
ideal de um homem onde a organização e a subordinação de
terceiros é a coluna principal de sua colocação social em
um mundo predominantemente capitalista e burocrático, e,
neste ínterim, suas especulações filosóficas relacionadas
à causa anarquista.
2 - Anarquia como fator de renovação
cultural e a influência da literatura comunista de Marx e
Engels.
Assim como já
posto nos primeiros versos de Mensagem, Pessoa reitera as idéias
de uma forma clara e objetiva. O teor místico e mitológico
do estilo Pessoa hortônimo praticamente não toma parte nesta
obra, a não ser por uma breve colocação do personagem 2 em
forma de uma crítica negativa ao apego a crenças medievais,
Sebastianismo etc.
Fortemente
influenciado pela política dos manifestos políticos que
infestavam a literatura no início do séc. XX, Pessoa absorve
o texto político e o traz para dentro de sua perspectiva
narrada. Com traços confrontáveis aos textos de Marx e
Engels, a luta de classes, a estagnação política e a lentidão
da renovação da cultura popular são os principais pontos de
análise.
À partir do
ponto de vista povo + renovação, a introdução das idéias
anarquistas se faz por uma visão comparativa aos grupos
sociais e facções em que as camadas sociais das mais
diversas nomenclaturas são concebidas:
"O mal verdadeiro, o único mal,
são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepõe
às realidades naturais -tudo, desde a família ao dinheiro,
desde a religião ao Estado (...) É todas estas coisas em
virtude das ficções sociais. Ora estas ficções sociais são
más por quê? Porque são ficções, porque não são
naturais. Tão mau é o dinheiro como o estado, a construção
da família como as religiões".
As associações
do mundo moderno são vistas pelo autor como círculos
segregadores que acolhem no seu imago certos indivíduos,
excluindo outros. Na visão pessoana, é inviabilizada a evolução
do ser humano enquanto elemento particular, o ser é
valorizado de acordo com o meio social a que pertence,
obviamente, na visão pessoana esta definição é dada pelo
poder econômico do grupo em questão. Quanto mais segregador
mais próximo ao conceito de elite será este, quanto menos
elitizador mais perto de "povo" se encaixa o conceito
geral.
Exemplifiquemos
em um esquema visual a hierarquia desde o nível mais baixo e
geral até o nível mais alto e particular:
Agrupamento
Específico (+ particulares )
|
Agrupamentos
Gerais (- particulares)
|
a)
Proletariado e anarquistas populares:
Tendência
ao geral
|
a) Povo / Ser - agrupado e identificado
|
b)
Burgueses e anarquistas evoluídos:
Tendência
ao particular
|
b) Povo português - ser humano escolhido e
posto na posição messiânica.
|
c) Mitos:
Ulysses, D. Sebastião, Deus
|
-
|
Interessantes
também são os grupos sociais escolhidos pelo autor para
criticar a visão capitalista e sua influencia no pensamento.
Família, representando o mais primitivo grupo social a qual o
homem pertence, freqüentemente invocada como a "Celula
Matre" da sociedade, altamente valorizada pelas correntes
cristãs ocidentais; O dinheiro, elemento crucial na sociedade
moderna, vem ao lado da família para enfatizar que o poder
econômico se traduz em tão grandiosamente importante quanto
o ato de nascer num círculo culturalmente organizado; A
religião, elemento de força cultural dentro da maioria das
civilizações conhecidas a religião, neste âmbito visto não
tão próxima á interpretação de fé propriamente dita, vem
ao lado da organização mais global possível dentro do mundo
moderno, o estado, regido por um conjunto de leis formais e
geograficamente demarcado. Dentro da perspectiva de Estado,
grupo maior, vêm as demais: religião, família, fé e
misticismo em forma popular.
Assim como a idéia
de povo é vista como uma grande, senão a maior, ficção
social, a influência da visão comunista é mister para se
entender o conceito filosófico de ficção social.
"A burguesia, em todas as vezes
que chegou ao poder, pôs termos a todas as relações
feudais, patriarcais e idílicas. Desapiedadamente, rompeu os
laços feudais heterogêneos que ligavam o homem aos seus
"superiores naturais" e não deixou restar vínculo nenhum
entre o homem e outro além do interesse pessoal estéril, além
do "pagamento em dinheiro" desprovido de qualquer
sentimento. Afogou os estases mais celestiais do fervor
religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo
filisteu, nas águas geladas do calculismo egoísta. Converteu
mérito pessoal em valor de troca. E no lugar das incontáveis
liberdades reconhecidas e adquiridas, implantou a liberdade única
e sem caráter do mercado. Em uma palavra, substituiu a
exploração velada por ilusões religiosas e políticas, pela
exploração aberta, impudente, direta e brutal.
A burguesia desnudou a sua auréola toda a ocupação
até agora honrada e admirada com respeito reverente.
Converteu o médico, o advogado, o padre, o poeta e o
cientista em seus operários assalariados.
A burguesia arrancou da família o
seu véu sentimental e reduziu a relação familiar a uma mera
relação de dinheiro."
E reitera:
"...Pelo aperfeiçoamento rápido de todos os
instrumentos de reprodução , pelos meios de comunicação
imensamente facilitados, arrasta todas as nações, até a
mais bárbara, para a civilização. (...) Compete a todas as
nações, sob pena de extinção, a adotar o modo de produção
burguês. Compele-se a introduzirem o que chamam de civilização
no seu meio, ou sejam, a se tornarem burguesas. Resumindo,
cria um mundo a sua imagem"
O trecho mostra um traço de fundamental
importância para a compreensão do conto. Os principais
segmentos sociais tais como a religião representada pela
figura do padre; o idealismo nobre no salvar de vidas
representado pela figura do médico; a justiça representada
pela figura do advogado; a arte mercantilizada representada
pela figura do poeta, o desenvolvimento das ciências latu
sensu que deveriam servir ao bem estar do homem
representado pelo cientista. A burguesia tem, pela força
monetária, o poder de transformar atividades vistas como
sublimes em "capitalismo selvagem". Repare-se que todos os
profissionais colocados em pauta possuem uma simbologia,
representam ciências que deveriam servir ao ser-humano, e,
conforme mostra o desenvolvimento das idéias, são restritos
às classes altas com a capacidade de efetuar o "pagamento
em dinheiro", maior símbolo do mercado capitalista moderno
segundo Marx e Engels. Também se confere a necessidade do
resgate dos ideais nobres do Romantismo, que, em detrimento em
relação aos ideais extremamente Realistas, perderam sua força
e tornaram-se "obsoletos". Já o estrato em seguida traz
uma atualidade latente aos nossos dias. A exploração e a
"aculturação" de povos para dentro de um contexto burguês/
capitalista selvagem. Neste trecho a burguesia, figura que
hoje de uma forma mais ampla é chamado de Poder Econômico ou
Poder Imperialista, em nome da restauração da ordem, proteção
mundial, antiterrorismo, apela para a mais antiga prática de
enriquecimento: a invasão
territorial, prática utilizada em larga escala pelo
império romano e que se perpetua até nossos dias.
Depois da divagação
sobre a formação social, o autor traz as primeiras reflexões
sobre a evolução social e a necessidade da anarquia dentro
do contexto. A anarquia se torna quase que um canal para se
atingir os objetivos do texto, um meio de se analisar
sociologicamente as desvantagens do meio (por Pessoa):
"Por que é que o sistema
anarquista não seria realizável? Nós partimos, todos os
avançados, do princípio, não só que o atual sistema é
injusto, mas que há vantagem porque há justiça, em substituí-lo
por outro mais justo. Se não pensamos assim,não somos avançados,
mas burgueses. Ora de onde vem este critério de justiça? Do
que é natural e verdadeiro, em oposições às ficções
sociais e às mentiras da convenção"
A convenção
citada é algo próximo de conceitos ou padrões sociais
estabelecidos. As convenções aceitas pelo meio social, ou
ficções, passam a ser criticadas como um meio injusto,
combustível de um "capitalismo selvagem" em formação. A
sociedade ficcional se forma com seus cânones nestes
conceitos também ficcionais na visão pessoana. Entendamos
ficcionais de uma forma não tão ficcional, com fortes tendências
para o concreto. O autor rotula esta sociedade de ficcional
justamente por considerar as suas conseqüências como inaceitáveis,
a condição de pobreza de uns, mesmo entrando em franco
contraste com traços característicos do personagem 2, é o
centro da discussão em que o banqueiro usa sua própria posição
de destaque como uma destas injustiças traçadas pela ficção.
A sociedade
portuguesa, segundo a visão política e engajada, uma
estreita relação com a luta de classes que rodeia o mundo
capitalista já desenvolvido. A visão da possibilidade de
vencer pelo trabalho e sua conseqüente valorização já são
latentes, porém, seguido de extremas dificuldades como as
apresentadas pelo personagem 2. Também a influencia do
Manifesto Comunista está presente de uma forma claramente
perceptível. Analisemos os trechos:
"Homem livre e escravo, patrício
e plebeu, senhor e servo, chefe de corporação e assalariado;
resumindo, opressor e oprimido estiveram em constante oposição
um ao outro, mantiveram sem interrupção uma luta por vezes,
por vezes aberta - uma luta que todas as vezes terminou com
uma transformação revolucionária ou com a ruína das
classes em disputa"
"A sociedade burguesa moderna,
que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os
antagonismos das classes. Estabeleceu novas classes, novas
condições de opressão, novas formas de lutas no lugar das
antigas."
Além da clara
alusão a Revolução Francesa o extrato de Marx e Engels traz
uma problemática aparentemente insolucionável: a eterna
renovação e perpetuação entre a luta de classes e suas
implicações de relações de poder, submissão e dominação.
No escrito do Manifesto, assim como no conto pessoano, as
desigualdades são fator fundamental para a existência de
classes dominantes e dominadas, assim como pré-requisito para
a existência da anarquia propriamente dita. O próprio
personagem 2 (o banqueiro) reconhece esta condição para
poder existir sua condição de capitalista bem-sucedido, e
embora com uma certa revolta no discurso, não abdica de sua
posição de destaque "em nome de uma causa nobre",
sustenta suas idéias mesmo parecendo se encontrar em posição
de franca demagogia, que este faz questão de desfazer.
Como em todo o desenvolvimento no caso de "O
banqueiro..." estritamente há a aproximação dos oxímoros
de uma forma bem curiosa: conforme no texto de José Augusto
Seabra esta prática na poética e também conferida neste
ponto é profundamente estudada e classificada como Ad
Infinitum, uma forma de aprofundar-se nos paradoxos que se
completam de forma perfeitamente harmoniosa, criando uma marca
de estilo profundamente psicológica.
3 - A ordem social como produto de um novo pensamento.
Fernando Pessoa,
em sua extensa e complexa obra literária, sempre ostentou uma
idéia como fundamental para a evolução de Portugal: A
ditadura militar.
Tópico sempre
polêmico e dito contraditório dentro das idéias pessoanas,
por muitas vezes o caráter ultranacionalista do autor pode se
transformar até em um tabu, principalmente dentro da cultura
portuguesa, em que Fernando Pessoa por muitos é amado e por
muitos é odiado. Mesmo hoje em dia ainda se encontram contrários
radicais às idéias de Fernando Pessoa. De certo,
radicalismos á parte do autor, a Ditadura Militar, mesmo com
suas contradições reconhecidas, é posta na posição de
transição entre o antigo governo monarquista medieval e o próximo
governo democrático que traz o futuro, a Ditadura serviria
para organizar este estado ainda imaturo para caminhar
independentemente.
" (...) Ora um regime revolucionário
quer dizer uma ditadura de guerra., ou, nas verdadeiras
palavras, um regime militar despótico, porque o estado de
guerra é imposto á sociedade por uma parte dela - aquela
parte que assumiu revolucionariamente o poder. (...)
A idéia, que
conduziu os revolucionários, o fim, a que visaram,
desapareceu por completo da realidade social, que é ocupada
exclusivamente pelo fenômeno guerreiro. De modo que o que sai
de uma literatura revolucionária - e tanto mais
completamente sairá, quanto mais tempo essa ditadura durar
- é uma sociedade guerreira de tipo ditatorial, isto é, um
despotismo militar(...) O que saiu das agitações de Roma? O
império romano e seu despotismo militar. O que saiu da revolução
francesa? Napoleão e seu despotismo militar. E você verá o
que sai da revolução russa... Qualquer coisa que vai atrasar
dezenas de anos a realização da sociedade livre... Também,
o que era de se esperar de um povo de analfabetos e místicos?".
Um pouco fatalista nesta linhas acima, há um misto de
desesperança e perspectiva de imutabilidade. Mesmo ocorrendo
uma ditadura militar, estatalmente organizada, o resultado
final em Despotismo não fugirá a Portugal, mesmo se este se
transformar na grande potencia prometida. Mesmo a maior
referencia imperial e cultural de todos os tempos, o Império
Romano, não foge ao destino do militarismo despótico e à
criação de uma oligarquia militar de força com proporções
épicas. Seria um desabafo do ostracismo a que a pátria pode
cair, ou seria apenas um alerta ?
As divagações de Fernando Pessoa sobre o tema são
concisas, bem definidas e diversas. A estagnação econômica
como fruto da voracidade da máquina capitalista até o
messianismo místico herdado dos primórdios da história
portuguesa e aflorado na era medieval são postos como fatores
de não-evolução do estado português visto pelo ponto de
vista da capacidade de um povo de se organizar. Embora o autor
veja numa possível ditadura o primeiro passo para a anarquia,
esta é o caminho para a "sociedade livre", a sociedade
perfeita em todos os termos. Um lar edênico muito diferente
da terra prometida da cultura judaica-cristã ocidental, que
no texto recebe, inclusive uma conotoção abstrata,
simplesmente levando-se a crer que o mundo ideal e paradisíaco
é um mundo que não está distantemente prometido e perdido,
o mundo perfeito na visão do poeta engajado é o mesmo em que
vivemos agora com uma diferença crucial: o equilíbrio econômico
sem se criar desigualdades, uma utopia pré-planejada por um
projeto romântico frustrado e que se estende no pensamento
atual pela forma de cobrança por soluções.
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