26 AFORISMAS SOBRE POESIA
Rodrigo Garcia Lopes
1.
Permanece um mistério o fato de que vivemos em estado permanente de linguagem. A poesia é o instrumento ideal para captar este mistério.
2.
Mu Ga não é parar o pensamento: é perceber o pensamento.
3.
Cada vez mais a persistência da idéia de poesia radical entendida em seu sentido etimológico, do latim radix, raiz, base, fundamento. Uma poesia que investiga sua própria ocorrência, ramificações, vis-à-vis seu encontro com o mundo, indo na raiz do problema: para o poema, esta raiz é a palavra.
4.
A abstração é a natureza da mente, não a mente um reflexo da consciência.
5.
O desafio está em não cair numa metalinguagem barata. Ou solipsismo ("não há nada fora de minha mente"). Ao contrário, o poema é um encontro em nosso território comum, nosso habitat.
6.
Poeta é quem que provoca música com os vocábulos. E afasta a afasia. Certa aversão pela idéia difundida pelo senso-comum da vida (e da poesia) como algo continuo. Poemas são seres vacilantes, como animais, ORGANISMOS, e parecem estar o tempo todo querendo incorporar o caráter fragmentário e material da experiência. Por isso, parecem muitas vezes "incompletos".
7.
Se "poesia é a promessa de uma linguagem" (Hölderlin), então o poema é um não-lugar, uma utopia. Seu sentido é seu movimento.
8.
O poema é um ultraje (outrage), um contra-texto.
9.
De olhos fechados: o universo é vermelho.
10.
Você diz
que não há nada de novo
sob o sol.
Isso pode valer para o sol,
mas não para nós.
(apud Apollinaire)
11.
Um "eu" que é um olho, o olho que é um outro, o outro que é um. A consciência da consciência. Um teste de solitude.
12.
Poder pensar, como Paul Cézanne, que as palavras é que se pensam através de mim.
13.
A natureza nos desconstrói sem que notemos, e a noite restaura a memória das percepções que usaremos, no dia seguinte, para reconstruir a natureza e a nós mesmos.
14.
Nos fala, nos media, nos habita. Sempre a caminho. Não há como escapar. Nelas estamos em nossa única casa, ou fora, ou estamos a sós.
15.
Todas as abordagens poéticas (seja através de iluminuras, personas, objetivos correlativos, colagem, simultaneismo, pastiche, ostranenie, ideograma, non-sequitur) desembocam, por operações distintas, na grande questão: o espaço habitado pela poesia enquanto matéria mental, entre palavra e mundo. Entre estar mudo e ser mundo.
16.
O nome do ventríloco era Eulírico. ("Já meu nome é eutro: o intervalo entre palavra e mundo").
17.
O poema nasce enquanto o procuramos.
18.
Como numa história de detetive, o poema, hoje, é um enigma. Seu crime começa já nas primeiras palavras. O poema nada mais é que uma seção de correlatos do sentido suspensos entre pistas falsas, fragmentos de perfis, frustrações de expectativas, que apontam inequivocamente para sua própria aparição & desaparição. O nome dessa luta invisível é o sentido.
Whodunit?
19.
Raízes rebentam o ventre da terra: pensamento selvagem.
20.
A prosa parece se traduzir em ser vidro transparente, enquanto a poesia revela manchas de mão no vidro, trincas, poeira, as imperfeições da superfície.
21.
Talvez poemas devessem ser mais que simplesmente escrita sobre experiências, e sim escrita como experiências.
22.
Produto e processo, num poema, têm que ser pensados juntos. O que e como são siameses. Esmero excessivo desvirtua o palácio da sabedoria.
23.
O desafio tem sido esse: investigar como se dá o processo de transferência do mundo "real" ao mundo "poético". Me interessa este momento único que se dá na percepção: no choque do "dentro" com o "fora" (Como aquilo virou isto?). E o poema seria exatamente a tradução simultânea desta percepção em palavra, energia, usina, poesia. E o poema surge como o resultado desse atrito entre consciência e mundo, fruto dessa tensão e, antes que me esqueça, desse prazer.
24.
O momento em que o poema se fecha é o momento em que ele se abre para o leitor.
25.
A idéia tradicional de prosa, para mim, é que o texto parece nos colar numa temporalidade, um estado absortivo, com as palavras quase parecendo passar transparentemente da página para a mente, ("uma câmera filmando tudo isso", sem erros de continuidade), enquanto a poesia atua com mais freqüência em saltos, cortes, surpresas, desconstruções sintáticas, frustração de expectativas, associações, conexões, disconexões.
24.
Vai ver a poesia seja uma necessidade estética da consciência.
(Apud Macedonio Fernandez)
*
Rodrigo Garcia Lopes nasceu em Londrina (PR), em 1965. Publicou os livros de poesia Solarium (1994), Visibilia (1997), Polivox (2001) e Nômada (2004), além de volumes de tradução de Sylvia Plath, Laura Riding, Whitman e Rimbaud, entre outros autores. É um dos editores da revista de literatura e artes Coyote. É autor do blog www.estudiorealidade.blogspot.com e professor de Português e Literatura Brasileira na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill (EUA). E-mail: rgarcialopes@gmail.com
Leia também outros poemas I e II de Rodrigo Garcia Lopes um ensaio sobre o autor.
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