OS
DIAGRAMAS POÉTICOS DE DÉCIO PIGNATARI
Roland
Azeredo Campos
Nos
idos de 1960 o físico Richard Feynman, inventor da eletrodinâmica
quântica e dos famosos gráficos de partículas que levam seu
nome, encontrou uma inusitada maneira de demonstrar uma assertiva
dos Principia de
Newton referente às trajetórias planetárias (1).
O impacto maior da prova de Feynman consiste no uso
exclusivo da geometria - dispensando recurso à análise e ao
cálculo diferencial - para a obtenção da inexorável forma
orbital elíptica, o Sol fincado num dos focos, o planeta girando
em torno. O constructo envolve uma seqüência de figuras. Aciona,
a cada passo, nossa "acuidade visual", ao contrário da cultivada
e mediata operação analítica. Ganhamos, com tal método diagramático,
o prazer da participação direta e, ao final, o sabor da convicção
íntima.
Na última etapa
da prova de Feynman uma elipse orbital desabotoa
convicta as pálpebras
maliciosas num diagrama circular de velocidades
-
o hodógrafo - compondo assim um "olhógrafo" solar.
Se aqui,
entre focos, olhares e raios solares, figuramos a ótica, também
não ficamos muito longe da semiótica de Peirce, do raciocínio
por similaridade, dos ícones e hipoícones afeiçoados aos processos
criativos, na ciência e na arte. Tampouco estamos distantes
das poesias concreta e visual, com suas propostas de novos
modelos de organização sígnica na página, a exigir do receptor
um olhar mais penetrante.
Décio
Pignatari, um dos protagonistas do movimento concreto (2)
, sempre manifestou pendor "fanopaico". Não à toa, foi divulgador
pioneiro - mas também intérprete original - da teoria dos
signos, e dela extraiu, não resta dúvida, elementos para sua
atividade criadora, que passa também pela prosa (O
ROSTO DA MEMÓRIA, PANTEROS, ERRÂNCIAS ) - talvez
a mais radical, no Brasil, junto com a de Valêncio Xavier,
de Guimarães Rosa para cá - e pela tradução, desde as dos
anos 50 até as da recém-saída coletânea da russa Marina Tsvietáieva.
É, no
entanto, a poesia, ou melhor, a parcela da poesia de Pignatari
mais nitidamente afinada com a "fanopéia" - sem com isso menoscabar
suas composições em verso - , que pretendo focalizar neste
breve ensaio.
Um dos
mais notáveis procedimentos construtivos postos em circulação
pelos concretos foi o de uma organização relacional do poema
em que os signos verbais dialogam com os não-verbais, sendo
estes últimos, na fase ortodoxa, mais instilados do que ostentados.
Dois hits pignatarianos,
Terra (1956) e Life (1957) ilustram isso (3). No primeiro,
a semeadura de letras (t, e, r, r, a) compõe aos poucos opções
de leitura (ter, terra, rara, ara), e eis que dois sulcos,
um vertical e outro diagonal, em convergência, despontam,
conotando a aradura da terra. No segundo, que
avança por páginas seqüentes, se sugere a formação
de um ser vivo (ou da própria vida) por meio das letras de
"LIFE" , com a inversão de ordem de L e I
, para que o crescimento seja progressivo quanto ao número
de traços dos caracteres, aventando a correspondente evolução
de um organismo. O remate, um retângulo bipartido, superposição
das quatro letras, remete à completude do desenvolvimento,
ao auge orgânico que antecede o declínio entrópico. Alcança
também, por suas simetrias, segundo critérios informacionais,
uma alta medida estética (4).
Repare-se
que o I , início da série, pode ser visto como um eixo de
simetria bilateral, característica majoritária na anatomia
dos animais.
O princípio
compositivo mencionado acima se assemelha ainda à abordagem
do bootstrap na
fisica: partículas não se definem por si próprias, mas no
contexto dinâmico das interações das quais participam, ou
seja, através da consistência mútua. Nos poemas que exploram
a distribuição de elementos na página importa, igualmente,
a estrutura de rede interconexa e autoconsistente, moldada
por ações recíprocas de signos.
Em
Organismo
(1960), outro biopoema de Décio, a pulsão temporal de
pronto se impõe. A frase "o organismo quer perdurar" anuncia
um anseio aparentemente fadado a fenecer, a longo prazo. No
decurso cinético - o verbo "perdurar"
a seguir substituído por "repet(ir)" - emergem os dois
primeiros "o o" em close, fundidos
afinal num único "O" desbordante, iconizando o orgasmo,
a insinuar o ato sexual reprodutor. O organismo pode, afinal,
sobreviver "repetindo-se"
através de sua descendência. Nesse biocontexto cabe citar
Noosfera, incluído entre os contos de O ROSTO DA MEMÓRIA (1986), mas perfeitamente
apreciável como um poema.
Dignos
de nota, os Poemas semióticos
(1964), teorizados por Décio juntamente
com Luis Ângelo Pinto (5),
revelam uma apropriação preliminar da teoria peirciana, centrada
no problema da codificação, ou das semias substitutivas. A
idéia de se convencionar uma chave léxica para dirigir o significado
de combinações de figuras é ousada, afora de lúdica. Porém
acaba por se mostrar pouco operacional nos
casos de maior complexidade semântica. De
certa forma refoge, apesar do minimalismo extremado, aos princípios do bootstrap
concreto, uma vez que as formações naturais e integradas
lá obtidas dão lugar, aqui, a grupamentos de interpretação
demasiado subjetiva. Os dois poemas
de Pignatari, Agora! e Pelé, sobrepõem
e atritam, arriscadamente,
três conceitos (incluindo até sentenças).
Ronaldo Azeredo, em seu Labor/torpor
(1964), encontrou um caminho de recuperação da legibilidade,
a partir de uma senha binária de oposição denotativa, mas
jogando também com a imantação sonora das
duas palavras-chave. A
posterior corrente do poema-processo, por seu turno, insistiu
na fórmula de inseminação artificial de significações, sem
grande êxito. Valeu, de qualquer modo, a sinalização para
a relevância da semiótica, até então quase desconhecida.
EXERCÍCIO
FINDO (1968)
de Décio Pignatari é um conjunto de poemas que transmite,
pelo título, a impressão de encerramento de um ciclo. E, de
fato, as próximas incursões poéticas do autor só viriam à
tona sete anos mais tarde. O livro em questão, todavia, longe
de franquear um esgotamento, exibe inflexões seguramente inovadoras.
Stèle pour vivre nº4,
por exemplo, que traz acoplado Mallarmé
vietcong, oferece uma sucessão de figuras associadas a
fragmentos, em francês, extraídos do Un
coup de dés. As formas-objetos sofrem mutações graduais.
Um dedo indicador vira uma chave, esta um pênis, etc., até
sobrevir um canhão belicoso (num total de sete imagens), desencadeando
instigantes jogos semânticos. Ao final se lê:
SI
C'ÉTAIT LE NOMBRE
CE SERAIT LE
HASARD
SI SEPT EST LE NOMBRE
CESSERAIT
LE HASARD
O
"sete", que ultrapassa os limites do dado (numerado de um
a seis), reaparece na continuação (Mallarmé
vietcong), prorrogando, com outras conotações, os
trocadilhos.
Mallarmé
vietcong, poema de Décio Pignatari (1968).
Aí os
retalhos do nome do poeta francês, encaixilhados, ganham a
companhia de um dado caprichoso, que estampa no topo, excedendo
seu limite verossímil, sete bolinhas dispostas em cruzeiro,
o qual se repete na macroescala da página, como numa edificação
fractal. Ao rés, sob armas e lágrimas, um mer insurgente flerta com dé.
Um leque de acepções se abre ao receptor. É notável a assiduidade
do não-verbal, num lance guerrilheiro que, pintando o sete,
semeia novas
possibilidades de poetar.
Cumpre
lembrar a ocorrência da intensificação do uso de signos icônicos,
por volta da mesma época, também na obra dos concretos Augusto
de Campos (Popcretos,
1964), e Ronaldo Azeredo (O
sonho e o escravo, 1966).
O
estreitamento das ligações entre as categorias de signos intervenientes
no poema converte-o numa espécie de diagrama, ainda que invulgar,
contaminado das surpresas e ambigüidades pertinentes à arte.
Na representação dos fenômenos naturais é comum - e, às vezes,
fundamental - o recurso aos gráficos. Eles combinam o simbólico
(palavras, números, etc.), o indicial (setas, aclives, etc.)
e o icônico (linhas de corrente, desenhos de órbitas, etc.).
São, de acordo com Peirce, na referência ao objeto, um tipo
de hipoícone, representando analogicamente relações entre
as partes. Considerados em si mesmos, no quadro classificatório
da semiótica são sinsignos icônicos. Apontam, como os signos
heurísticos, como os signos estéticos, para a iconicidade.
Temos
no diagrama acima, à esquerda, os símbolos das partículas
próton (p), nêutron (n) e píon (p+). As setas indiciam
o processo virtual de troca de carga entre o próton e o nêutron,
mediado pelo píon. Este modelo foi sugerido por H. Yukawa
para explicar a estabilidade do núcleo atômico, objeto-evento
aludido. À direita está uma figuração do cone de luz no espaço-tempo
de Minkowski, em que os fótons (quanta
da radiação luminosa) avançam rumo ao futuro, sobre a superfície
do cone.
No
alto, à esquerda, se vê um dos Ideogramas verbais , ladeado por uma das três versões de Dom
Quimorte, ambos extraídos do EXERCÍCIO
FINDO. No original, cada um ocupa uma página. Em
Ideograma verbal
reaparecem os temas da cópula e da reprodução, com os dois
"o o" - letras-ícones, tal qual no
anterior Organismo
- agora diagonalizados simetricamente em torno da acoplagem
central (que é também bilíngüe,
amalgamando "homem-woman").
Na caligrafia livre de Dom
Quimorte o
cavaleiro, engastado em sua montaria mortal, parece lancear,
quixotesco, a margem do papel, ferindo a fronteira do vácuo,
desafiando-nos a desfiar o mistério da meada. É o exercício
final, o último poema do livro.
Em sua
retomada dos projetos poéticos, a partir de 1974-75, Pignatari
bifurca seu campo de atuação, de um lado revisitando o verso,
como em Três poemas
ideológicos de amor (anos 80) e em Paraversos
(anos 90), de outro lado voltando a inventar "diagramas":
Somos como, Zenpriapolo,
Chips líricos, Danças, Paracores...
Somos
como (1975) mostra uma mensagem com cesuras longitudinais
geradoras de ambigüidades de leitura. E, na última linha,
em tipografia diferente, fragmentos de palavras compõem uma
frase incompleta. Há certo ar de escrita codificada, ou mesmo
de inscrições ancestrais indecifradas. O fracionamento sugere
também a propagação de frentes de onda. A mensagem principal,
iniciada com as palavras do título do poema, parece provir
de um signo que, incorporando a dicção humana, proclama sua
similitude com o homo
sapiens. Tal idéia recorda a concepção peirciana segundo
a qual o homem, ele próprio, é um signo. O fruidor, com seu
olho-intérprete, pode montar associações a partir de díades
- presentes ou abduzidas - como "semeion/sêmen",
"como somos/cromossomos", "símil/símio", "anthropon/tropo",
"homem/mesmo". A quase-frase derradeira constata, entrecortada,
a súplica sígnica por ser - numa perspectiva vivencial. Sim,
os representames, tal qual o DNA (constituinte dos cromossomos)
- estruturado em código, como percebeu com clarividência o
físico Erwin Schrödinger, nos anos 40, antes da descoberta
de Watson e Crick -, vinculam-se à transmissão de informações
e à criação, artística ou científica. A voz e a vez dos signos.
Zenpriapolo
(1974-75) projeta no plano três dimensões de significados/significantes.
A tríade OM/FALLOS (falo)/OMFALLOS (umbigo) referencia outra:
ZEN/PRIAPO/APOLO. Eis o poema:
Apesar
da simplicidade da configuração, um melhor entendimento
requer consulta às notas do autor (6), onde
encontramos, inclusive, a explicação para o "E"
deitado" encimando a pilastra dos "om": "estava
gravado a ouro sobre as colunas do vestíbulo do templo (de
Apolo, em Delfos): as portas do céu".
Da série
Paracores destacamos
Espaztempo/speacetime
(1990), integrante da exposição
de hologramas Triluz (7), e Vocogramas
(1985), ligado pelo motivo a Colombo
(1988). No primeiro, o trocadilho
- isomorfo em português e inglês - se perfaz em uma conformação
de dupla hélice (característica do DNA), avivada pelo arranjo
holográfico.
Já os
vocogramas são - literalmente, no caso - diagramas de voz
produzidos na locução de sílabas. Assim, associadas a
"a-me-ri-ca la-ti-na li-ber-tad" surgem dez estampas,
traduzindo um clamor libertário. A última delas evoca,
ironicamente, a estátua da liberdade...
Diagrama final de Vocogramas (1985)
Liberdade
(anos 80), outro poema do autor:
"AVE
SEM ASAS/ SE VOU DÁ-LAS/VOA".
Liberdade.
Vida. Vôo. Aventura. Vetores de um inventor. De Décio Pignatari.
NOTAS
(1) Goodstein, David &
Judith A lição esquecida de Feynman,
Lisboa, Gradiva (1997). Feynman mostrou, em suma, que a existência
de uma força da gravidade central e proporcional ao
inverso do quadrado da distância do Sol ao planeta acarreta,
em vista de propriedades geométricas, uma órbita
plana e necessariamente elíptica.
(2) A cinqüentenária
poesia concreta, fundada por Augusto e Haroldo de Campos,
além de Décio, alargou o espectro das alternativas
poéticas, estimulando pesquisas mais audazes no âmbito
da visualidade. Por uma dessas aprazíveis sincronias,
surgiu na mesma época da já citada eletrodinâmica
quântica, para a qual também contribuíram
Julian Schwinger e Shinichiro Tomonaga.
(3) Estes e os demais
poemas do autor abordados no presente artigo encontram-se
em: Poesia, Pois É, Poesia, São Paulo,
Ateliê Editorial/Ed. Unicamp (2004).
(4) Faz-se aqui referência
à macroestética de Max Bense, que utiliza como
medida o quociente de Birkhoff, função de conceitos
como ordem e complexidade.
(5) "Nova linguagem,
nova poesia", publicado em 1964 no "Correio da Manhã",
acompanhado de poemas de Décio e Luis Ângelo,
e republicado no mesmo ano no "Estado de São Paulo"
com novos poemas de ambos e mais o de Ronaldo Azeredo, referido
na continuação. In: Teoria da Poesia Concreta
Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo
de Campos, São Paulo, Brasiliense (1987), 3ª ed.
(6) Veja-se a p.210 do
livro citado na nota 3.
(7) Este poema holográfico
foi apresentado pela primeira vez na exposição
TRILUZ (Museu da Imagem e do Som, 1986) e reexposto na mostra
IDEHOLOGIA (Museu de Arte Moderna de SP, 1987) cf.
Código 12 Arteciência, Salvador, Bahia
(1989-1990).
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