Publicado no México em 1998 pela editora Fondo de Cultura Económica, Mar aberto, de Horácio Costa, ganha agora merecida tradução e edição brasileira a cargo da Lumme Editor. O livro reúne artigos e ensaios escritos pelo autor entre 1983 e 1996 e publicados, em sua maioria, fora do Brasil e em castelhano. E, apropriadamente, com o subtítulo “volume 1”, indicando que o autor reunirá outros textos que escreveu após 1996 em volumes subsequentes.
A divulgação do livro é oportuna por vários motivos. O primeiro, que o próprio autor esclarece na nota de apresentação, é podermos conhecer outra faceta sua e de modo abrangente: a de ensaísta e crítico literário, pois até agora apenas sua obra poética vem sendo editada sistematicamente no Brasil, afora um ou outro artigo em periódicos e publicações de pequena circulação. Mas, sobretudo, é oportuna pela amplitude do objeto de investigação proposto, cuja presença no Brasil não é corriqueira. Refiro-me ao fato de Horácio Costa manter vários horizontes de investigação simultaneamente e, o mais importante, estar interessado precisamente no ponto de fuga para o qual eles podem convergir. Ainda que cada artigo ou ensaio guarde autonomia, também se evidencia que a reunião deles é como que natural, dando ao volume uma forte unidade não apenas em termos do tratamento dos materiais investigados como também pelo sentido geral que eles tomam em conjunto, pois frutos de uma mesma preocupação de base.
É o próprio autor quem, na Introdução, esclarece esse feixe, que aqui retomo brevemente. Foram três os critérios que nortearam a seleção dos textos. Em primeiro lugar, tratou de temas, autores e obras pertencentes ao que ele chama de “cultura latino-americana contemporânea” (abarcando, nesta noção, também a produção colonial). Em segundo, em vez de um tratamento historiográfico ou informativo, priorizou “uma aproximação tanto crítica quanto pessoal dos tópicos selecionados”, ressalvando que, da literatura portuguesa e brasileira, escolheu ensaios sobre autores com os quais o leitor de língua espanhola já possui alguma familiaridade, enquanto da literatura hispano-americana privilegiou aproximações em torno dos autores que mais o interessaram. O terceiro critério, “dialógico”, sem que faça uso exclusivo de análises comparativas, aponta para “um horizonte de dupla flexão entre as culturas hispano-americana e luso-brasileira”, ressaltando “a praticidade e a oportunidade de colocá-los em contato indireto”. Como sobredeterminação desses critérios, está seu objetivo de experimentar com esses textos uma relação criativa, lúdica, com as modalidades da crítica literária internacional de hoje, inserindo-se assim no “contexto cultural pós-moderno”.
Estamos diante, portanto, de um projeto ambicioso e, até pouco tempo, pouco frequentado pela crítica brasileira, qual seja, o de abordar as literaturas da Península Ibérica e da América Latina a partir do pressuposto de seus inumeráveis contatos, mútuas interferências e mesmo expectativas histórico-culturais em parte comuns. Sem perspectiva globalizante ou ainda setorial, mas abrindo-se para um sem-número de autores, obras, temas e latitudes, o volume adquire uma forte unidade, aquela do diálogo que se estabelece entre essas diversas tradições e que, nas últimas décadas, dá sinais de fortalecimento, de que Mas aberto é, ele próprio, um excelente exemplo, inclusive como “precursor” dessa preocupação contemporânea, que já estava integralmente presente para o autor desde os anos 80.
Não é o caso, aqui, de tentar resumir neste breve espaço o conteúdo dos 34 textos publicados, cada um deles denso e aberto para diversos problemas. Nem seria interessante meramente listar todos os autores abordados, pois isso daria uma enorme série de nomes. Basta termos em mente que Costa aborda tanto Camões quanto Gôngora, ou Octavio Paz e Guimarães Rosa, Sor Juana Inés de La Cruz, Borges, Severo Sarduy, Fernando Pessoa, José de Alencar, Graciliano, Saramago, Drummond, Haroldo de Campos, para notarmos o espectro amplíssimo de sua investigação. Mas é curioso ressaltar, como se vê pelos nomes citados, a presença de diversos prosadores entre seus objetos e que representam metade dos textos do volume. Isso porque não é assim tão comum que um poeta se dedique à interpretação da prosa e possua instrumentos para tal. Contudo, se pensarmos na obra poética de Costa, não é casual esse interesse. É só termos em mente poemas de sua autoria como“Marat” (do livro Quadragésimo) ou “Para ser lido no mínimo duas vezes” (publicado no primeiro número da revista Poiesis), entre tantos, para verificarmos que Costa vem desenvolvendo um poesia pouco usual no panorama brasileiro contemporâneo, com fortes traços narrativos (digamos, uma poesia situada num terreno experimental entre a poesia e a prosa, mas sem ser “poema em prosa”), a lembrar, por exemplo, um livro como Quatro caprichos, do poeta português António Franco Alexandre. Com certeza, os vinte anos passados fora do Brasil e o contato com a literatura mexicana e portuguesa dão à sua obra poética traços diferenciais em relação aos poetas brasileiros de sua geração, bem como alimentam sua capacidade crítica para a abordagem de obras em prosa.
Outro modo de nos aproximarmos desses textos é observando que quase todos tratam de autores e obras específicos. Apenas os dois ensaios iniciais são panorâmicos e mesmo eles não têm a natureza de uma recensão histórico-literária, pois antes se organizam a partir de problemas da crítica, sobressaindo a preocupação com a dimensão sincrônica do fenômeno literário e a pesquisa em torno de autores que possam pertencer a um cânone que se configure pelo critério de uso inventivo e criativo da linguagem. Praticamente todos os demais textos giram às voltas de autores e obras específicos, encerrando-se o volume com três importantes intervenções de Costa. Elas não tratam mais de autores e obras, mas do problema geral das relações entre as literaturas abordadas. Salta aos olhos, aqui, o caráter programático desses textos, a pertinência política da intervenção do autor no que se refere à tentativa de se instituir com solidez um espaço de diálogo entre, particularmente, as literaturas da América Latina. Se nas últimas décadas é notável o crescente interesse no Brasil pela literatura de outros países da América Latina, podendo o país agora já contar com muitas traduções e mesmo um pequeno grupo de especialistas na área, a inversa ainda não se verifica claramente e por diversos motivos que esses textos finais buscam esclarecer.
Entre tantos aspectos de obra tão vasta, escolho um que me pareceu particularmente rico: a preocupação do autor com o conceito de “série” ao abordar autores e obras de diversos quadrantes. Não a pesquisa de “influências”, como ele próprio deixa claro, mas a investigação sobre horizontes problemáticos comuns, tanto no âmbito da história vivida pelos diversos países dessas tradições culturais, quanto naquele da forma literária propriamente dita. É assim que se tornam visíveis fios nem sempre suspeitados a aproximar autores e obras como Borges e Guimarães Rosa, ou José de Alencar, Simões Lopes Neto e Rosa, ou Rulfo, Rosa e Borges, ou Camões e Gôngora. Nesse âmbito também se insere seu curioso estudo sobre as possíveis relações entre Peregrinação (1614), do português Fernão Mendes Pinto, e Infortunios de Alonso Ramírez (1690), do mexicano d. Carlos se Singüeza y Góngora, iluminando aspecto pouco estudado, o da presença literária portuguesa na literatura que surgia no Novo Mundo espanhol. É sobretudo nessas aproximações, me parece, que mais podemos verificar aquele horizonte comum de destino a unificar a Península Ibérica e a América Latina, quando então nos damos conta do que há de semelhante na herança cultural que nos formou e dos dilemas históricos que nos são comuns, tanto em suas dimensões regionais quanto continentais. Diante de investigações e problemáticas tão ricas, é de se esperar para breve que um segundo volume desse mar aberto venha à luz. |