BARTOLOMEU
CAMPOS DE QUEIRÓS E O CAMINHO DO MEIO
Rosane Villela
Pensar sobre O olho de vidro de meu avô é pensar
sobre paradoxos. Pensar sobre paradoxos é refletir o
humano e suas contradições. E fazê-lo com maestria
criativa é dom da poética de Bartolomeu Campos de Queirós.
O autor arma-se da lembrança de sua própria história para
clarear o mundo para o leitor. Um mundo de
idiossincrasias, onde cada ser é único e igual ao mesmo
tempo, onde cada ser vive com suas limitações e suas
conquistas. Todo ser é e não é, e assim ele se faz
inteiro. Este é o caminho que perfaz toda a obra de
Bartolomeu Campos de Queirós - O Caminho do Meio.
Na leitura vivencial que o autor-menino faz do olho de
vidro de seu avô, repousa a intenção autoral de usar o
objeto como uma barreira que ora filtra a luz, ora aguça a
escuridão. O olho como objeto côncavo, pensado translúcido
de dentro para fora, que se abre para interpretações, e
como objeto convexo, de fora para dentro, visto na sua
opacidade de vidro que tranca e barra os limites da
compreensão. O olho que estabelece o Caminho do Meio e que
personifica o avô, assim como estabelece o mesmo passo
para o neto que se espelha e se identifica com o avô.
Mas o que está por trás de um olho de vidro? Meio mundo ou
mundo inteiro? Certezas ou questionamentos? Completudes ou
carências? "A vida é muito mais complexa do que os moldes
em que a enquadramos", escreveu o jornalista e
escritor José Castello, e "A verdade é uma espécie de
mentira bem pregada, das que ninguém desconfia", disse
Emília, a personagem de Monteiro Lobato. Duas visões, em
tempos distantes, que compartilham a mesma idéia do
efêmero, do transitório da realidade e da verdade que
repousam, apenas e tão somente, na voz de cada ser humano,
em suas vivências e sensibilidade. E Bartolomeu nos premia
com esta noção existencialista através de sua fábula,
sincera, de um menino que tem, no avô de olho de vidro, a
sua maior fábula.
"A fábula não diverte - encanta", escreveu Gaston
Bachelard, completando que "para redescobrir a linguagem
das fábulas, é necessário participar do existencialismo do
fabuloso, tornar-se corpo e alma de um ser admirativo,
substituir diante do mundo a percepção pela admiração".
Admirar para poder perceber; e perceber para
redescobrir, num continuum. E, ainda em Bachelard,
"admirar para receber os valores daquilo que se percebe.
E, no próprio passado, admirar a lembrança".
O outrora nas lembranças e a imaginação de Bartolomeu... O
que é lembrança e o que é imaginação? "Os olhos só
acariciam as superfícies.(...) O pensamento atravessa as
cascas e alcança o miolo das coisas", ele avisa logo na
primeira página do livro. Estaria somente falando de seu
avô ou aludindo ao seu próprio processo criativo? Mas...
"Quem toca o bem dentro de nós é a imaginação"(...), diz
ele logo a seguir e cabe aqui uma reflexão. Por que o
autor escolhe o pronome quem ao invés de o que?
Quem
lê Bartolomeu
e sabe de seu domínio da escrita, da sua história
literária, se indaga, e o que me ocorre é que a imaginação
como quem, é o seu próprio processo criativo, pois,
inseparável da sua pessoa, da sua historia de vida. É ele
também, mas dividido. E dentro de nós, é escolha
sutil para, além de reforçar a mesma idéia, servir como um
convite ao leitor para também se dividir na leitura de seu
texto, com sua própria história e imaginação. O autor com
a imaginação que o divide na sua própria história pessoal,
e que alimenta o seu processo criativo, e o leitor, também
dividido, com sua história e imaginação. E o Caminho do
Meio englobando tudo: o olho de vidro que personifica e
divide o avô; as reflexões divididas que o neto faz; o
processo criativo de Bartolomeu; e o nosso envolvimento na
leitura.
A história que Bartolomeu relata situa-se no meio de suas
lembranças, mas é a maneira como ela é contada, numa
linguagem de luzes e limbos, numa dialética que premia a
infância de água e sombra, que faz com que o leitor se
sinta envolvido com sua própria imaginação e se torne
partícipe da história, reportando-a para seu próprio
universo, e vivenciando a "Infância como um Mundo
Ilustrado, com suas cores primeiras e verdadeiras. O mundo
da primeira vez.", como reforça Bachelard. Um mundo que
encanta, enternece, e é universal porque faz a nossa
própria infância despertar.
*
Rosane Villela,
graduada em Letras (PUC-Rio), publicou Navalha no verso
(2000- 7Letras). Em 2008, o livro infantil
Apanhando a lua... será publicado pela Paulinas.