SIGNIFICANTO:
AS PALAVRAS E O SILÊNCIO DA AURORA
Ruth
Silviano Brandão
A teoria da mímesis
entre os gregos afirma que para haver mímesis
há que existir a dobra da pa-lavra, há que haver
pelo menos duas escritas em contraponto. Da época micênica
à arcaica, numa sociedade aristocrática e guerreira,
pode-se falar de uma palavra una, em que a verdade seria pensada
como inconteste, única e universal: a palavra do aedo,
palavra eficaz, palavra-ato, em que logos e alethéia
seriam simétricos ou percebidos como tal, apesar de
seu caráter disjuntivo, dissimétrico, por estrutura.
O intervalo que sempre
existiu entre as palavras e as coisas é esse território
em que reverbera a potência das sombras, mesmo que o
poeta se julgue portador de uma palavra eficaz ou uma palavra
fundante.
A essa palavra pensei
em atribuir um novo atributo que faz ressoar velho canto que
sempre habitou os dentros da poesia: um significanto, um canto
auroral, com todo o frescor que ela sugere ou faz supor. Assim,
dessa forma, se pode pensar a aurora do mundo grego, o mundo
de nossa nostalgia melancólica, nostalgia do Um de
uma palavra verdadeira, porque advinda de Mnemosyne, a deusa
da memória. Essa deusa, que esteve presente numa poesia
mais antiga que a de Homero ou Hesíodo, era causa de
uma poesia tecida de pura luz de aurora, de uma luz sem sombras.
Entretanto, para isso,
é preciso esquecer o esquecimento, esquecer que Mnemosyne
sempre carregou Lethes em seu corpo. E esse corpo julgado
inteiro e imortal já tinha a marca da noite e da morte
e por isso, talvez, se possa aproximar Lethes ao real lacaniano,
que fulgoriza por instantes, quando se abre a potência
de uma outra palavra. que ressurge nos territórios
insabidos do sujeito e o atravessa numa experiência
que poderíamos dizer epifânica, essa epifania
que volta a iluminar a contemporaneidade e seu deus feito
só de palavra.
Na contemporaneidade,
vivemos a nostalgia desse UM que se exibe no desejo de certa
literatura que tenta se desvestir dos ornamentos retóricos,
buscando desornamentar o discurso dos excessos: excesso de
verdades construídas pelas ideologias, sejam ela políticas,
religiosas ou literárias. Literatura que quer renascer
de um olhar auroral, cuja morada sempre foi a poesia, ou a
escrita do real, sem referente nos saberes constituído
pelos séculos afora. Séculos que parecem estar
pesados de um saber tornado inútil, inerte e pouco
produtivo, já que alimentado por um coral absurdo de
vozes babélicas. Tudo isso me faz lembrar um poema
de Hilda Hilst:
Que as barcaças
do Tempo me devolvam
A primitiva urna de palavras.
Que me devolvam a ti e o teu rosto
Como desde sempre o conheci: pungente
Mas cintilando de vida, renovado
Como se o sol e o rosto caminhassem
Porque vinha de um a luz do outro.
Que me devolvam a noite,
o espaço
De me sentir tão vasta e pertencida
Como se éguas e madeiras de todas as barcaças
Se fizessem matéria rediviva, adolescência e
mito.
Que eu te devolva a fonte de meu primeiro grito.
O que perpassa esse poema
é o desejo de uma escrita que não passe pela
representação, que chegue à coisa em
si - assim se poderia afirmar que o escritor pode ser um sujeito
não totalmente assujeitado à mimese.
Entretanto, mesmo nos
textos ditos de representação, um furo está
presente, algo impossível de dizer, pois a linguagem
não recobre o mundo. Impossível falar de completude
num tecido de teias, que são as palavras que se interligam,
entretecem.
Os poetas sempre souberam
da força do significante e da letra, ela sempre esteve
na poesia, no som sem significado da lira, no ritmo dos pés,
na respiração que move o corpo que escreve,
pois a escrita é corporal. Alguns escritores sabem
mais a respeito disso: da coisa material que está para
além ou para aquém do significante.
Lituraterra é um
complexo conceito lacaniano, com o qual pode-se pensar o estilo
como rearranjo de restos fantasmáticos, como aquilo
que cai da representação, aquilo que é
ilegível, o que não tem sentido nem significação,
mas causa a escrita e por isso ela pode ser infinita.
Pensei em renomear essa
força da o escrito como significanto, que é
uma voz que não perde o cristal de seu som, sua pureza
ancestral, seu silêncio estrutural, que volta a fazer
ressoar a singularidade de seu timbre, mesmo que para essa
empresa se exijam finos ouvidos que a ouçam ou uma
a fina lâmina do estilo que a escreva.
Conheci um autor recentemente
que fala disso poeticamente e revela um fato que marcou e
é causa de sua escrita: o rosto estático de
sua mãe quando lhe faltava uma palavra: a palavra na
ponta da língua, a língua da mãe, a língua
mátria.Todas as crianças da casa ficavam petrificadas
diante desse silêncio materno. É a experiência
vívida do silêncio que habita a palavra, não
se opondo a ela. Pascal Quignard, ele também, perdeu
a voz aos 18 meses. E depois outras vezes. Passou pelo real
com a mãe. E conheceu a Medusa. Sua obra ficou para
sempre com esse silêncio, que ele afirma que está
na música, nas palavras e na sombra, seu correlato.
E ele pôde então dizer: A noite está na
fonte das palavras.
Num outro registro, pensamos
no texto que se traduz, passando pelos territórios
opacos, silenciosos da intraduzibilidade, sabendo-se, ou não,
que algo resiste nos intervalos culturais, que um silêncio
insiste nas passagens, barragens ou desfiladeiros que existem
entre-textos, entre-escritas, entre os sujeitos.
Por isso, queremos afirmar
com Jean-Michel Rey:
Assim é preciso
dizer que o tradutor é aquele que deve notar, no texto
estrangeiro, o que não se enuncia de forma explícita,
levar esse texto para além dos limites que ele se dá,
sondá-lo em seu insabido, captar seu avesso, compreender
que o original é móvel. O tradutor é,
ao mesmo tempo, o futuro leitor - aquele que não saberia
se restringir ao estrito uso de sua língua materna
- e o escritor, aquele que aspira nascer do que faz, de sua
poiésis.
O texto estrangeiro é
aquele, então, que me leva para o insabido de outra
cultura, que de uma certa forma me faz viajar nesse corpo
heteróclito que é a literatura, feito de mapas
que estranhamente se modificam, que me diz que os museus não
são congelados, que as línguas mantêm
um diálogo que nem sempre se ouve, já que seu
tecido é feito de sons, ruídos e silêncios
que existem entre os significantes, antes mesmo da opacidade
da letra que os sustenta.
Talvez aí mesmo
que a escrita possa nascer do real, nascer de uma outra língua
articulada de outra forma. Parece que é desse nascimento
que Jean-Michel Rey fala, quando relata a travessia que Artaud
fez, atravessando o burburinho das vozes que tentou traduzir,
das vozes de que se apropriou, a partir das quais reconstruiu
sua assinatura, dando-lhe um outro estatuto, pois uma volta
ao mesmo não é mera repetição
ou imitação, pois traz em sua superfície
os traços que marcam uma diferença.
Algo dessa diferença
podemos chamar de "novo", mas na medida em que ele
nasce de um velho território, cujo duplo é aquele
tecido cheio de furos e rasuras, ou aquele velho mapa cheio
de imprecisões e correções, como um palimpsesto
fantástico que é potência do novo, por
encobrir e desvelar antigos traços, velhas pegadas.
Ou velhos sons que se retomam paradoxalmente no silêncio
de vozes por muitos anos caladas, mas sempre permeadas pela
potência de seu significanto.
*
Ruth Silviano Brandão
é professora de
Literatura na UFMG. Publicou os livros Pássaro em
vôo (poesia, 1994), Para sempre amada (romance,
1999), Flor da pele (contos, 2000) e A mulher escrita
(ensaios, 2004), esse último escrito em co-autoriacom
Lúcia Castello Branco.
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