ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

Vozes, perspectivas e intromissÕes: a dinÃmica narrativa de “buriti”, novela de joÃo guimarÃes rosa

 

Sarah Maria Forte Diogo

 

 

Os escritores necessariamente devem adotar certas condutas diante da matéria a ser narrada. Essa matéria encontra-se, a princípio, em estado bruto. Para sistematizá-la, transformá-la em estória, o artista tem que perspectivar o que será contado. Essa é uma das estratégias de sistematização. Afinal, a partir de que ponto será narrado? E de que maneira será narrado? Essas questões justificam o estudo do foco narrativo na novela “Buriti” e nos fazem incursionar pelo terreno da perspectiva narrativa. De acordo com Reis:

 

[...] a perspectiva narrativa, enquanto denominação genérica e de certo modo metafórica, pode ser entendida como o âmbito em que se determina a quantidade e qualidade de informação diegética veiculada. [...] a perspectiva narrativa relaciona-se estreitamente com o estatuto do narrador, quer dizer, com a situação narrativa instaurada pelas circunstâncias em que se processa a narração. (REIS, p.279).

 

A perspectiva narrativa, portanto, abrange a estratégia de focalização abraçada pelo autor e concretizada mediante procedimentos técnico-literários sob a figura de um narrador, a entidade ficcional responsável por narrar a matéria. Matéria essa que surge lapidada pela linguagem.

 

As narrativas do século XX procedem à flexibilização do foco narrativo, no que tange à necessidade não mais premente de um narrador emblemático, tradicional, um comandante sempre a estibordo da estória. Segundo Adorno: “[a posição do narrador] hoje, [se caracteriza] por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração.[...] O que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite.” (2003, p. 55-56). A vida, portanto, não pode mais ser concebida como uma existência coletiva, à maneira de um bloco unificado que pode ser representado a partir de uma perspectiva. Para apreender a multiplicidade do mundo, é necessária mais de uma perspectiva, pois somente um olhar, uma voz, uma fala já não são capazes de narrar a polimorfa matéria viva, que exige ao seu dispor estratégias narrativas que ao menos ousem apreendê-la em sua totalidade, o que é impossível. Porém, tentar é lícito. 

 

Em “Buriti”, temos uma estória eivada de curiosos procedimentos literários no que tange ao modo de se contar uma estória. JGR era mestre em construir modos de narrar. Em “Cara-de-Bronze”, é possível observar o mecanismo de construção de uma novela. Temos presente nessa narrativa um personagem chamado Moimeichego – um Eu quadruplicado – que participa da estória lançando perguntas para colher informações acerca do fazendeiro Cara-de-Bronze. Pode-se compreender a figura de Moimeichego como a do autor, em sentido lato que, introduzindo-se nos interstícios literários, tece a estória com detalhes dispersos e, a partir do aparecimento de outros actantes, vai urdindo as diversas estórias, como podemos ler em determinado trecho de “Cara-de-Bronze”:

 

Mas a estória não é a do Grivo, da viagem do Grivo, tremendamente longe, viagem tão tardada. Nem do que o Grivo viu, lá por lá.

 

Mas – é estória da moça que o Grivo foi buscar, a mando de Segisberto Jéia. Sim a que se casou com o Grivo, mas que é também a outra, a Muito Branca-de-todas-as-Cores, sua voz poucos puderam ouvir, a moça de olhos verdes com um verde de folha folhagem, da pindaíba nova, da que é lustrada. [...] Quem conheceu de pero Segisberto Jéia? Quem sabe como ele empurrou, com costas-da-mão, as horas mais pesadas? Pardo palha-de-milho-em-pé, no derradeiro da secura... Sem a existência dele – o Cara-de-Bronze – teria sido possível algum dia a ida do Grivo, para buscar a Moça? O Velho, com a cabeça encalombada de bossas – como se dela fossem brotar idades e montanhas. Ele fez o Urubuquaquá, amontoou riquezas. Mas, o que fazia, era para se esquecer, de si, por desimaginar. [...] O homem envelhece é porque não sabe agüenta viver, ainda não sabe, e tem medo da morte: então, vai envelhecendo. (ROSA, 1984, p. 104-105).

 

O vocábulo Moimeichego sugere a estratégia do autor de se imiscuir na estória, um sinal de sua patente existência. Ao lado dessa entidade, desse eu “quadruplicado”, há outra entidade: a do narrador que é parcialmente onisciente, pois que ele mesmo partilha da dúvida que a todos os vaqueiros acossa: quem viria a ser Cara-de-Bronze? O fragmento a seguir mostra a tentativa da construção da imagem do fazendeiro Segisberto Jéia, mediante um mosaico de características, tanto físicas quanto pessoais:

 

Moimeichego: Primeiro, vocês me contem a descrição do Cra-de-Bronze. Tal e Tudo.

O vaqueiro Tadeu (rindo): É deveras, minha gente... Só num mutirão, pra se deletrear. Eh, ele é grande, magro, magro, empalidecido...

O vaqueiro Adino: Muito morenão...

Moimeichego: Mas, é pálido, ou é moreno?

O vaqueiro Doím: Mão de inveja caiou a cara dele!

O vaqueiro Mainarte: Inveja? Só se for inveja mas do que ninguém não tem.

O vaqueiro Sãos: A bom: ele é escuro; mas já foi mais.

O vaqueiro Raymundo Pio: Amarelou no tempo, feito óleo de sassafrás...

Outro vaqueiro: Palidez morena...

Outro vaqueiro: Tem partes, e tem horas... O alto da cara com ossões ossos...

Outro: Ele todo é em ossamenta de zebu: a arcadura...

LADAINHA (Os vaqueiros, alternados):

 - A ponto: ele é orelhudo, cabano, de orelhas vistosas. Aquelas orelhas...

 - Testão. Cara quadrada... A testa é rugas só.

 - Cabelo corrido, mas duro, meio falhado, enralado...

 - Mas careca ele não é.

  - Cabeçona comprida. O branco do olho amarelado.

 - Os olhos são pretos. Dum preto murucego.

 - Os olhos tristes... E os papos-dos-olhos...

[...]

 - Ele não gosta é de nada...

 - Mas gosta de tudo.

 - É um homem que só sabe mandar.

 - Mas a gente não sabe quando foi que ele mandou...

 - Quando olha  e encara, é no firme, jogo-de-sis, com pito e zanga. (idem, p.93-95).

 

Observa-se nesse excerto a presença de Moimeichego e sua curiosidade a respeito do Cara-de-Bronze. É notável ainda o nome de um dos vaqueiros: o vaqueiro Mainarte. Atentemos à primeira palavra que compõe esse nome: Main. Essa palavra nos remete ao pronome possessivo alemão – mein, meu – cuja pronúncia é “main”, seguido de arte. Verifica-se, portanto, mais uma estratégia de inserção do autor na estória: Mainarte – minha arte.

 

O narrador que surge no trecho a seguir e que palmilha “Cara-de-Bronze” está situado fora do grupo de vaqueiros. Sua função parece bem clara: ele orquestra os acontecimentos que se desenvolvem no exterior da cena e tece considerações acerca da matéria narrada:

 

Não. Há aqui uma pausa. Eu sei que esta narração é muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difícil: como burro no arenoso. Alguns dela vão não gostar, quereriam chegar depressa a um final. Mas – também a gente vive sempre somente é espreitando e querendo que chegue o termo da morte? Os que saem logo por um fim, nunca chegam no Riacho do Vento. Eles, não animo ninguém nesse engano; esses podem, e é melhor, dar volta para trás. Esta estória se segue é olhando mais longe. Mais longe do que o fim: mais perto. Quem já esteve um dia no Urubuquaquá? A Casa – (uma casa envelhece tão depressa) – que cheirava a escuro, num relento de recantos, de velhos couros. As grades ou paliçadas dos currais. Os arredores, chovidos. O tempo do mundo. Quem já lá esteve? Estória custosa, que não tem nome; dessarte, destarte. Será que nem o bicho larvim, que já está comendo da fruta, e perfura a fruta indo para seu centro. Mas, como na advinha – só se pode entrar no mato é até ao meio dele. Assim, esta estória. Aquele era o dia de uma vida inteira. (idem, p.103).

 

Essas considerações são de caráter metaliterário, pois o narrador incursiona pelos meandros de que como se contar uma estória: afiança ao leitor virtual que é dificultosa, que não é tarefa simples, e pontua que alguns não gostarão da narrativa por necessitarem de um fim, porém esse epílogo não será alcançado tão facilmente, uma vez que a estória é concebida como mato cerrado, cujas trilhas não existem: só pode entrar até o meio. Se o leitor adentra até o meio da estória, do meio para o fim será mais estória. No entanto, se a entrada somente é permitida até o meio, quando se terá noção de um possível final?

 

Essa questão é levantada por esse tipo de narrador roseano. Em “A Estória de Lélio e Lina”, já temos um narrador diferenciado, dotado de onisciência, que a tudo direciona e sistematiza, não se colando totalmente aos personagens:

 

Aqui Lélio apanhou também seu prato de folha e o garfo; e, enquanto comendo, o primeiro rosto amigo que lhe sorriu foi o de um Delmiro, franco – rapaz mesmo de sua idade, que era retaco, de cabeça rapada. Delmiro ajudou-o no desselae o pampa, e guiou-o até ao quarto-dos arreios. [...] Lélio se estendeu, feliz de seu bom descanso. Já se abençoava de ter vindo para o Pinhém; principalmente, se conseguia solto, dono de si e sem estorvo. Era um novo estirão na sua vida, que principiava. Antes, nos outros lugares onde morara, tudo acontecia já emendado e envelhecido, igual se as coisas saíssem umas das outras por obrigação sorrateira – os parentes, os conhecidos, até os namoros, os divertimentos, as amizades, como se o atual nunca pudesse ter uma separação certa do já passado; e agra ele via que era dessa quebra que a gente precisava às vezes, feito um riachinho num ribeirão ou rio precisa de fazer barra. A tanto sentia falta de uma confusão grande, que ajudasse a um não carecer de curtir a confusão pequena das coisas de todo o dia da gente, derredor. (idem, p. 145).

 

É de se notar que o conhecimento que temos do personagem Lélio é mediado pelo narrador, ou seja, não é o conhecimento da persona através de outra ou mediante si mesma, mas de uma entidade que atua na estória com uma função reconhecida: contá-la aos narratários. O narrador não cede bruscamente a voz aos personagens, mas utiliza sinais para isso: aspas e travessão, ou seja, temos uma consistente marcação da passagem de um discurso a outro.

 

Em todas as outras seis novelas que compõem Corpo de baile é patente a instância narrativa modelada pelo narrador: há uma voz que comanda claramente os demais personagens, deles se aproximando, mas a eles não cedendo por completo as rédeas da estória. O conhecimento que detemos dos personagens dessas narrativas nos surge filtrado, num primeiro momento, pelo narrador. É evidente que esse narrador não assume para si a pesada função de narrar toda a matéria, porque isso seria, logicamente, impossível nos tempos de hoje, haja vista a fragmentação do sujeito pós-cartesiano e da história que vivencia. No entanto, esse narrador vai tecendo a trama em que os actantes atuam e é por ele que conhecemos os personagens, não por outras personas.

 

Segundo Reis:

 

[...] a focalização pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético; conseqüentemente, a focalização, além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços etc.) atinge a sua qualidade, por traduzir um certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação. (REIS, 1986, p.246).

 

Desse conceito, é possível depreender que, a partir de um campo de consciência X, temos a focalização sobre determinado elemento da narrativa. Essa focalização não é imparcial, uma vez que não surge isenta de valorações afetivas e ideológicas. A focalização seleciona o que será narrado – quantidade – e como será narrado – qualidade. É nesse segundo tópico que habitam as valorações de ordem afetiva, a saber: ao transpor o foco narrativo às mãos de um personagem teremos uma perspectiva diferente daquele adotada pelo narrador, resultando em posicionamentos que são o substrato do plano frasal, ou seja, a focalização modula estilisticamente o tipo de discurso, daí a diferença entre a dicção dos personagens.

 

A cessão de voz a que procede o narrador de “Buriti” produz uma escritura de caráter polifônico, haja vista as vozes que perpassam a singular estória de amor entre Miguel, rapaz vacinador, e Maria da Glória, a filha do fazendeiro. Além de poder ser denominada de novela polifônica em função deste aspecto – as rédeas da narrativa passam por diferentes mãos – há também outro fator relevante que nos permite reforçar tal classificação, a saber: Bakthin, em seu estudo sobre a poética de Dostoievski, conceitua os textos do escritor russo como romances polifônicos, ou seja, o autor de Os Irmãos Karamazov constitui um modo de narrar em que a tônica dominante recai sobre a existência de vozes díspares, cada uma narrando o mesmo conflito ou conflitos diversos no coração da prosa romanesca. Em Crime e castigo, por exemplo, num sobrevôo de leitura, é possível observarmos esse recurso: há a perspectiva do bêbado Marmeladov, do jovem Raskolnikov e da prostituta redimida Sonia. Em A Crônica da Casa assassinada, Lúcio Cardoso orquestra algumas vozes narrativas que giram em torno dos conflitos emocionais vivenciados no espaço físico da casa, que surge impregnada de uma memória afetiva plena de culpa, através de diários, cartas e “desabafos” dos personagens, inclusive André, personagem principal, o protagonista de uma relação aparentemente incestuosa.

 

A matéria narrativa, nos casos citados, é dividida, nem sempre equitativamente, entre as personagens que, a partir de suas situações narrativas, vão esboçar a sua noção do outro. Dessa forma, há a articulação do discurso, de modo que os seres ficctícios possam recortar essa matéria em fatias diversas, o escritor, assim, passa a dispor de múltiplos focos para contar uma estória e administrá-la.

 

Roncari, em “Patriarcalismo e dionisismo no santuário Buriti”, tece as seguintes considerações acerca do narrador em “Buriti”:

 

Já a própria natureza do foco é complexa, quer dizer, nunca ele é inteiramente objetivo, com o campo de visão do narrador amplo e o seu ponto de vista descolado da perspectiva do herói ou de alguma outra personagem escolhida; porém, também ele nunca é completamente subjetivo, de tal forma que não deixe passar mais nada ao leitor além do que é percebido pelo protagonista, ficando restrito à sua versão dos fatos e limitado pelos seus juízos e interesses. [...] Nada é narrado a partir de um ponto de vista inteiramente objetivo, mas também nada do que é dito é inteiramente subjetivo, revelando apenas interesses e estreiteza de visão, da qual o leitor não tenha o que tirar, nenhuma dose de verdade. (in: SCARPELLI, 2008, p.148-149).

 

Ao delegar o foco narrativo de 3ª pessoa, onisciente, para um personagem, que passa a narrar em 1ª pessoa, dando-se ao conhecimento do outro ao passo que fala, o autor produz o que apontamos como efeito de presente. De acordo com Santos, em A construção do Romance em Guimarães Rosa: “O escritor está diante de um fenômeno de alteração do foco narrativo em que o narrador-autor perde seu posto para o personagem-narrador. Fenômeno que permite o relato dos acontecimentos do romance no momento de sua instauração, isto é, como acontecimento acontecendo” (SANTOS, 1978, p. 33). (grifo nosso).

 

Esse efeito de presente, ou de acontecimentos acontecendo, é responsável por construir uma dicção narrativa constantemente atualizada, infensa aos vácuos textuais que recordações podem acarretar. O personagem lembra o que aconteceu, mas seu discurso não se volta somente para a lembrança. A partir de sua fala, é possível depreender sua situação no presente da enunciação. A estória, em função desse artifício de “presentificação” do leitor, também devido à existência de mais um foco narrativo, não perde seu tônus, constituindo-se num constructo estético polissêmico – pois que podemos eleger uma das personagens como chave de leitura – numa urdidura textual que pode ainda ser concebida como um laboratório de experimentação dos modos de narrar uma estória, num estilo de mosaico, em que cada fala acrescenta um novo elemento, ou mesmo rediz algo outrora já dito, mas de outro ponto de vista.

 

Observemos o seguinte trecho da narrativa, em que temos a utilização do pretérito e a focalização a partir do campo de consciência de Miguel:

        

Depois de saudades e tempo, Miguel voltava àquele lugar, à fazenda do Buriti Bom, alheia, longe. Dos de lá, desde ano, nunca tivera notícia; agora, entanto, desejava que de coração o acolhessem. Receava. Era um estranho; continuava um estranho tornara a ser um estranho? Ao menos, pudesse recebê-lo com alegria maior que a surpresa. Mas, para ele, aproximar-se dali estava sendo trocar o repensado contracurso de uma dúvida, pelo azado desatinozinho que o destino quer.[...] Na última noite passada no Buriti Bom, Miguel tinha conversado a respeito de coisas assim. O que fora: [...] De repente, reconheceu, remoto, o barulhinho do monjolo. De par em par de minutos, o monjolo range. Gonzeia. Não se escuta sua pancada, que é fofa, no arroz. Ele estava batendo, todo o tempo; eu é que ainda não tinha podido notar. (ROSA, 2001, p. 117-119). (grifo nosso).

 

Ao início da narrativa é possível verificar o uso do pretérito imperfeito, o que sugere a idéia de ação iterativa no passado ou mesmo de ação de caráter previsível: “Depois de saudades e tempo, Miguel voltava àquele lugar, à fazenda do Buriti Bom, alheia, longe”. E, a seguir: “Agora, entanto, desejava que de coração o acolhessem”. Há nesse plano inicial o jogo com os tempos, expresso através do parelelismo verbal: ora imperfeito, ora mais-que-perfeito, ladeado por um advérbio que traz em seu bojo a noção de presente, o “agora”. Essa alternância prossegue durante a etapa inicial do retorno de Miguel, até o momento em que é deflagrado o flashback, em que o personagem retorna à sua primeira noite na fazenda e a linguagem assume um tom mais ágil, devido o foco passar a Miguel. Porém, Miguel assume a narração raras vezes, sendo majoritariamente um personagem a que os outros se referem.

 

Eis o primeiro golpe de vista que é dado sobre a fazenda Buriti Bom. Golpe esse efetuado pela visão de um narrador imbricado em Miguel. Visão essa afetiva, cujo ponto principal é a moça Glória: “O que fora: Na sala-de-jantar. A lamparina, no meio da mesa. Nos consolos, os grandes lampeões. O riso de Glória. Iô Liodoro jogava, com Dona Lalinha. Glória falava. Ele, Miguel, ouvia.” (idem, p. 119).

 

A partir desse ponto, teremos a introdução do conhecimento de um personagem a respeito dos outros. Os actantes que surgem nessa cena são aqueles que estão enanelados num círculo, no seio familiar, a saber, a fazenda Buriti Bom.

 

Nhô Gualberto Gaspar, dono da fazenda Grumixã, é detentor de um ponto de vista impregnado de senso comum, por vezes curioso e pleno de malícia. Ele julga explicitamente os personagens, sugerindo que Lalinha está no Buriti Bom por interesses econômicos: “a bem que ela calculava os outros resultados: que eram, pelo seguro, não sair de lá, ir engambelando todos e se cravando de sempre fazer parte, isso com lindos olhos na herança. [...] Moça da cidade raciocina muito. [...]” (idem, p. 131-133). Gualberto aponta que Behú é “tisna, encorujada, com a feiíce de uma antiguidade” (idem, p.130). Já para Miguel, Behú semelha sua mãe.

 

A voz narrativa de Lalinha é uma das mais dúcteis vistas nas novelas roseanas. A linguagem verbal da personagem é notadamente reflexiva, por vezes enrodilhando-se num torvelinho de indagações e fluxos de consciência. Quando o foco narrativo passa às mãos de Lala, o texto adquire um tônus aquoso, flexível, sinuoso. O olhar de Lalinha difere da perspectiva de Miguel e da perspectiva de Gualberto nesse sentido: a narrativa, quando focalizada por esses homens, é mais objetiva, quando tecida pelos fios de Lala adquire nuances mais detalhadas. O próprio narrador, ao se referir à personagem, destina-lhe períodos em que analisa sua personalidade:

 

“Mas eu não estou triste... É diferente...” – Lalinha se dizia. Ela era para se dizer coisas assim. “Talvez mesmo eu não seja capaz de ficar triste, de verdade...” Todavia estivesse triste, aquela hora. Mas, pensou, e, no primeiro momento, ia querendo se envergonhar da descoberta, como de uma falta. Porém, pronto a seguir, o que a tomava era uma satisfação – vagamente pressentindo que a vontade de não aceitar a tristeza mais fosse um bem valioso, e uma qualidade. “Minha sorte ainda não é má. Ainda não vivi...” – se afirmava. Já de sua afirmação tirava um fino orgulho. Comprazida também de se saber esquisita e tão de estranhos segredos, que ela mesma, de si, ia aos poucos descobrindo. O que, entretanto, ainda a fazia gostar mais de Maria da Glória, que era dada e toda clara, que radiava. (idem, p.192).

 

Mulher de estranhos segredos, Lalinha mantém com Maria da Glória, sua cunhada, uma curiosa relação de “amizade”. A beleza de Glória é do sertão, é pura, “dada e toda clara”, sem segredos, já a de Lalinha é uma beleza nos moldes citadinos, lapidada, plena de mistérios.

 

Concluímos que em Corpo de baile não temos a figura de um narrador dotado de ações demiúrgicas, que tudo sabe e tudo vê, comandando sozinho os personagens, como se eles fossem títeres. É visível a existência de uma instância narrativa que demanda outras vozes para contar o acontecimento, porém, numa narrativa como “Buriti”, esse tipo de narrador é remodelado, espraiando-se dinamicamente pela novela a ponto de ceder sua voz aos personagens, de modo que passamos a conhecer os actantes mediante o discurso de outros seres ficcionais, ou seja, de dentro do cerne da estória. Esse recurso é diferenciado do tipo de focalização “tradicional”, em que uma entidade exterior aos acontecimentos nos narra os fatos, pois aqui temos os personagens, já imersos em suas situações narrativas, que discursam acerca dos outros, forjando assim seu autoconhecimento, uma vez que através do discurso de alguém posso conhecê-lo, mesmo que esse alguém não esteja necessariamente falando de si, e o conhecimento acerca de outro personagem.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: DORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed.34, 2003.p.55-56.

 

REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. Lopes. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

 

RONCARI, Luis. Patriarcalismo e dionisismo no santuário Buriti Bom. In: SCARPELLI, Marli de Oliveira Fantini. (Org.). A poética migrante de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 169-175.

 

ROSA, João Guimarães. Cara-de-Bronze; A estória de Lélio e Lina. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

 

______. Buriti. In:______. Noites do sertão. 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.p.117-316.

 

SANTOS, Wendel. A Construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1978.

 

 

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Sarah Maria Forte Diogo é mestre em Literatura Brasileira. E-mail: sarahfortebr@yahoo.com.br

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